Jan Morris compra um bilhete de ida e volta para Casablanca em Julho de 1972 com o objetivo de fazer uma operação de mudança de sexo. Tem 45 anos e passou a última década a tomar comprimidos com hormonas femininas. Uma vez em Marrocos, dirige-se à clínica de Georges Burou, famoso cirurgião francês que desde 1953 operou centenas ou talvez milhares de transexuais.

Burou é um homem “extremamente atraente”, “baixo, moreno, de expressão penetrante”, “muito bronzeado”, um médico que “não se preocupava muito com o diagnóstico nem com tratamentos preliminares” para os transexuais, apenas “exigia um pagamento chorudo e adiantado” e “não fazia perguntas nem impunha condições, que no plano legal quer no plano moral”. Jan Morris entrega-se nas mãos dele sem “nenhum arrependimento e nenhuma indecisão”.

Despe-se, rapa a zona púbica, deita-se numa cama e pouco depois de receber a anestesia ainda tem tempo para se fitar ao espelho. “Fui despedir-me de mim”. Acorda no escuro, incapaz de se mexer por estar atada à cama, e “assombrosamente feliz”. Fica a recuperar na clínica e passadas duas semanas apanha um avião de volta a Londres.

Escreve dois anos depois, em 1974:

“Já não me considerava um híbrido ou uma quimera, era um ser harmonioso. […] Sentia-me, acima de tudo, deliciosamente limpa. As protuberâncias que fora detestando cada vez mais tinham-me sido arrancadas do meu corpo. Tornara-me, a meus próprios olhos, normal. […] Tinha a certeza absoluta de ter tomado a decisão certa. Era um desenlace inevitável e profundamente satisfatório. […] Conferia-me uma maravilhosa sensação de calma, como se um fardo físico, enorme mas nebuloso, me tivesse sido retirado dos ombros, e quando acordava sentia-me resplandecente na minha libertação. (…) Uma das odisseias mais fascinantes que um ser humano alguma vez viveu.”

O relato surge em Enigma: História de uma Mudança de Sexo, livro de memórias publicado há 43 anos em Inglaterra e agora traduzido para português — por Paula Faria, para a editora Tinta da China.

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Ex-oficial, ex-cavalheiro

Lenda viva do jornalismo e da literatura de viagens, transexual reconhecida no mundo de língua inglesa, ex-oficial do exército britânico, com estudos em Oxford, mãe de cinco filhos, a britânica Jan Morris tem hoje 90 anos e já não dá entrevistas, razão por que o agente literário informou o Observador que seria impossível uma conversa telefónica, a propósito desta edição.

Nascida em 1926, a escritora foi durante anos desconhecida do público português. A partir de 2009, a Tinta da China traduziu quatro volumes de sua autoria: Veneza, Hav, Espanha e agora Enigma.

Em rigor, trata-se de uma segunda tradução, já que em 1975 a escritora portuguesa de origem angolana Wanda Ramos (1948-1998) assinou a primeiríssima versão portuguesa de Enigma, baptizando-a Conudrum: O Enigma, o que se aproximava do título de origem: Conudrum (palavra inglesa para problema intrincado, ou seja, um enigma). De resto, até 2009 a vasta obra de Jan Morris esteve inédita no mercado editorial português.

Enigma tem um lugar especial na história trans e na literatura. Lido à distância de mais de quatro décadas mantém a atualidade — na descrição do sentir de uma transexual, por exemplo —, ao mesmo tempo que se constitui objeto de museu — a visão da autora sobre o que é a identidade sexual e o feminino, por exemplo.

“Enigma: História de uma Mudança de Sexo”, de Jan Morris; Ed. Tinta da China; 220 páginas; 16,90€

O livro é composto por 19 capítulos, mas só a partir do 12º surge de forma explícita o tema da mudança de sexo. Até lá, Jan Morris faz aquilo que melhor sabe e a tornou conhecida: um livro de viagens, na primeira pessoa.

Começa por falar da infância e da classe social privilegiada em que cresceu. “Tinha três anos, talvez quatro, quando me dei conta de que nascera no corpo errado.” Em 1936, aos 9 anos, ingressou na Escola do Coro de Christ Church, em Oxford. Depois, integrou o Colégio de Oficiais de Lancing e como militar no ativo esteve no 9º Regimento de Lanceiros da Rainha, um corpo de cavalaria mecanizada onde foi oficial de informações nos últimos anos da II Guerra Mundial. Até abandonar o exército, por se sentir feminil e pouco integrada, esteve em Itália, na Áustria, no Egipto, na Palestina, no Curdistão.

James Humphrey Morris, nome de batismo, haveria de se tornar o mais famoso jornalista britânico da sua geração. Nos anos 50 e 60, ao serviço do Manchester Guardian, do Times e da Agência Noticiosa Árabe no Cairo, viajou por todo o mundo e nenhuma dessas aventuras terá sido tão épica quanto a das reportagens que fez da primeira expedição britânica ao cume do Evereste, em 1953, o que surge no livro com grande destaque.

Sem descrições pormenorizadas de erotismo e sexualidade, o que em certa medida pode dever-se ao perfil conservador que autora revela, Enigma traz passagens sobre a vida íntima de Jan Morris, incluindo a revelação, para quem desconhece, de que se casou com uma mulher e teve cinco filhos (uma delas morreu em bebé). Todos são descritos por Morris como seus aliados no processo de transição.

Fascínio e um apelo

Na estante das autobiografias de transexuais — um espaço meio vazio mas cada vez mais valorizado no mundo editorial anglo-saxónico — Enigma salta bem à vista, sendo considerada uma obra canónica. Assim foi descrita em artigo recente do New York Times dedicado ao levantamento histórico da “trans memoir” em língua inglesa. O artigo destacou duas obras novas — The Secrets of My Life, de Caitlyn Jenner (escrita por Buzz Bissinger); e Surpassing Certainty, de Janet Mock, ambas de 2017 —, e apontou como exemplos históricos o livro de Jan Morris, bem como A Personal Autobiography (1967), de Christine Jorgensen, entre outros.

Talvez fosse impensável uma mulher transexual escrever hoje um certo pedido de desculpas, como aquele que Jan Morris ensaia nas primeiras páginas de Enigma: “Compreendo que aos olhos do leitor possa haver algo de grotesco no impulso transexual, mas a mim nunca me pareceu ignóbil, nem sequer antinatural.” Mas também é preciso notar que o volume agora publicado inclui uma introdução assinada por Morris, para uma reedição inglesa em 2001, em que a autora reconhece tratar-se de “uma obra datada”.

“Se é certo que o passar dos anos conferiu a certos trechos do meu livro um cariz pitoresco e anacrónico, as suas ideias centrais conservam toda a pertinência. Emendei somente meia dúzia de palavras nesta nova edição, todas respeitantes a pormenores factuais. Nunca achei que o meu enigma se situasse nos limites restritos da ciência ou das convenções sociais. Sempre me pareceu uma questão espiritual, uma espécie de alegoria divina, cujas explicações não eram, afinal, muito relevantes”, escreveu em 2001.

Este aspeto é talvez dos mais importantes na obra. Vale a pena sublinhar que nos anos 70 já se dizia que sexo e género são conceitos distintos, como hoje prevalece. Jan Morris nota a diferença e elabora sobre ela, mas todo o livro é uma feliz e esotérica declaração de fascínio perante o apelo da transexualidade.

“Para mim, o género nada tem de físico, é totalmente imaterial. […] é a vida e o amor de um modo mais genuíno do que qualquer combinação de órgãos genitais, ovários e hormonas. […] Macho e fêmea são sexos, masculino e feminino são géneros, e embora os conceitos obviamente se sobreponham, estão longe de ser sinónimos”, escreve no início do livro. “O anseio transexual, pelo menos como eu o experimentei, é bem mais do que uma compulsão social, é antes biológica, imaginativa e essencialmente espiritual”, acrescenta nas últimas páginas.