Chris Froome conquistou o quarto Tour da carreira, terceiro consecutivo. Ficou apenas a uma vitória de Jacques Anquetil, Eddy Merckx, Bernard Hinault e Miguel Indurain. Mas nem por isso consegue emergir como um verdadeiro herói nacional na Grã-Bretanha, como foi Bradley Wiggins. Porquê?

As respostas começam a ser conseguidas recuando cinco anos, até 2012. O ano mais marcante de sempre da história do ciclismo, que alterou o paradigma da modalidade. Com um nome: Lance Armstrong. Houve um antes e um depois no desporto após o escândalo de doping em que o americano se viu envolvido e que ganhou maiores proporções quando o corredor que tinha ganho sete vezes o Tour disse que voltaria a fazer o mesmo. Estávamos no final desse ano e o texano, que anos antes tinha superado um cancro, desistiu de lutar, assumiu o que tinha feito e chocou o mundo com uma entrevista a Oprah Winfrey.

Foi em 2012, mas antes da confissão de Armstrong, que Bradley Wiggins ganhou o primeiro e único Tour, tendo como principal escudeiro Chris Froome. E foi também nesse ano que, depois da desilusão de Mark Cavendish na prova de ciclismo dos Jogos Olímpicos de Londres, o inglês ganhou a medalha de ouro no contrarrelógio. Tornou-se um herói nacional, com um estilo e uma maneira de ser às vezes inadequada para um atleta de alta de competição mas que atraía ainda mais o fascínio dos fãs, como aconteceu por exemplo numa entrega de prémios da BBC, onde foi definido como “rei do bar aberto”. Era (ou é) intocável, e quando era apanhado com um copito a mais até se achava piada.

Poder-se-á pensar que os ingleses ligam pouco ao ciclismo. Esqueça isso. Foi nessa ocasião, durante os Jogos, que vistámos um bar no centro de Londres dedicado apenas à modalidade, com uma série de réplicas de camisolas antigas, livros, DVDs, televisões sempre a passar provas. Perguntámos por Agostinho, para atestar o grau de fiabilidade, e sabiam toda a sua vida e obra. “Há muita gente a juntar-se aqui para ver o Tour, o Giro ou a Vuelta. O ciclismo tem cada vez mais seguidores e Wiggo [Bradley Wiggins] atraiu ainda mais gente”, explicaram-nos na altura. Hoje, as pessoas devem continuar a juntar-se. E é natural que apoiem Froome. Mas nunca mais se voltou a ver a empatia com um corredor como houve com Wiggins e até Mark Cavendish, o rei das vitórias ao sprint que este ano foi empurrado por Peter Sagan, num passado recente.

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Chis Froome ganhou o primeiro Tour em 2013, aparecendo como um sucessor natural de Wiggins. Nascido em Nairobi, no Quénia, filho de um antigo jogador de hóquei em campo inglês que emigrou para cuidar de uma fazenda, fez a primeira corrida de bicicleta organizada (e com cariz social) aos 13 anos, altura em que conheceu o seu grande mentor, David Kinjah. Aos 14, foi para a África do Sul, tendo mesmo chegado a frequentar durante dois anos o curso de economia na Universidade de Joanesburgo. Foi nesse país que enveredou a sério pela modalidade, representando o Quénia no Mundial de 2006 na categoria de Sub-23.

Tornou-se profissional no ano seguinte, nos sul-africanos da Team Konica Minolta, foi contratado pela Barloworld em 2008 e assinou pela Team Sky em 2010. Em 2011, começa a afirmar-se com um surpreendente segundo lugar na Vuelta. No ano seguinte, além do segundo lugar no Tour carregando Wiggins para a vitória, conseguiu ainda uma medalha de bronze no contrarrelógio dos Jogos Olímpicos, já como representante do Reino Unido. Uma história louvável e uma subida a pulso que acabou por perder-se no meio do escândalo Armstrong. Sim, porque quando ganhou a primeira Volta a França, em 2013, deixando Nairo Quintana a mais de quatro minutos e Purito Rodríguez a cinco, a primeira pergunta foi: ‘Quando será apanhado?’.

A vitória levantou questões, mas por cada questão havia mais do que uma resposta. Por trás da subida a pulso estava também uma verdadeira luta contra várias doenças, que o levaram a recorrer a oito médicos, seis clínicas e hospitais e quatro países em três anos. Da esquistossomose à urticária, passando pela tifóide ou pela asma, Froome lutou contra tudo e todos dentro e fora das estradas. E ganhou, até porque a própria UCI, que gere o ciclismo mundial, permitiu a utilização de um corticoide para fins terapêuticos por considerar que era necessária para combater o problema da asma e em nada melhorava a performance do corredor nas competições (mas já voltamos a este assunto um pouco abaixo nesta história). E para acabar com as polémicas, a própria Team Sky mostrou publicamente os resultados dos exames ao corredor.

Em 2014, o inglês não conseguiu defender o triunfo em França após uma série de quedas que deixaram demasiadas marcas para prosseguir em prova (ganhou Nibali). Voltou no ano seguinte e ganhou o Tour, com menos 1.12 minutos do que Quintana (Valverde ficou a mais de cinco minutos), mas não essas dúvidas que se foram levantando sobre o seu rendimento. Mesmo quando se percebeu, e isso aconteceu, que era “humano” e quebrava em algumas subidas, algo disfarçado por um grande trabalho de equipa da Sky.

O fisiologista Pierre Sallet deu o tiro de partida nessas interrogações, apresentando as suas estimativas a uma televisão francesa sobre a potência de Froome na subida ao Soudet e argumentando que “era um indício de doping”. Uma semana depois, Antoine Vayer, técnico francês que trabalhou na Festina e luta há duas décadas contra os resultados adulterados, afirmou que “se visse os dados de Froome num dos meus corredores, diria para ir para casa porque não o queria na equipa”. O inglês, que sempre se mostrou um crítico aceso perante o fenómeno do doping, fez testes independentes numa clínica e os resultados foram de novo apresentados publicamente.

Com 1,89 metros e apenas 69 quilos quando chega a França para o Tour, aquilo que esses exames realizados no Laboratório GlaxoSmithKline Human Performance de Londres em agosto de 2015 mostraram é que Chris Froome é tão humano como Indurain ou LeMond, tendo um nível máximo de VO2 (quantidade de oxigénio que o corpo pode consumir num determinado tempo e a potência que é capaz de gerar) de 84,6 ml/kg/min (com o seu peso devia ser 88,2), mais do dobro de uma pessoa sem treino mas “normal” entre alguns dos maiores do ciclismo. Em paralelo, o inglês tem uma percentagem de massa gorda de 9,8%.

Chegamos a 2016 e Froome ganha pela terceira vez o Tour com uma enorme vantagem sobre Romain Bardet e Nairo Quintana (mais de quatro minutos). Neste caso, mais do que nos outros anos, houve muitos trabalhos sobre a dieta do inglês, nomeadamente o facto de ter quase abdicado do glúten e reforçado as proteínas, as frutas e os legumes. Mas foi de sol de pouca dura e, em outubro, o seu nome surge numa longa lista de desportistas que viram os seus processos surgirem na praça pública após um ataque informático do grupo de hackers Fancy Bear à Agência Mundial Anti-Dopagem. Bradley Wiggins, Michelle Carter e Petra Kvitova foram outros dos mencionados.

O que diziam os tais documentos? No fundo, confirmavam algo que já tinha sido falado em 2013 e 2014 e que tinha a ver com o tal corticoide que tomara com conhecimento e aprovação da Agência. No entanto, a substância foi detetada no Critério de Dauphiné de 2013 e na Volta à Romândia de 2014 e não no Tour, como se escreveu. Froome não se mostrou minimamente preocupado com a situação e comentou até que esse ataque informático tinha o condão de provar o que defendia desde 2013: que nunca se tinha dopado.

O inglês já ia na terceira vitória na principal prova anual de ciclismo, aquela que atrai milhões e milhões de pessoas nas estradas ou agarrados aos televisores, e recebeu a Cruz da Ordem do Império Britânico (só aí, em 2016). Mas esse reconhecimento acabou por ser quase uma exceção, e o facto de ter ficado novamente de fora dos três primeiros nos prémios de Personalidade do Ano do Desporto da BBC gerou algumas críticas (os galardões foram para o tenista Andy Murray, para o triatleta Alistair Brownlee e para o saltador Nick Skelton). Até hoje, só quatro atletas ligados ao ciclismo receberam o galardão desde 1954: Tom Simpson (1965), Chris Hoy (ciclismo de pista, 2008), Mark Cavendish (2011) e Bradley Wiggins (2012).

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Este ano, Froome conquistou pela quarta vez o Tour num percurso que estava claramente traçado para aparecer a figura de Romain Bardet, francês que terminou na segunda posição em 2016. Neste aspeto, pela forma como foi controlando distâncias e gerindo a vantagem, comparam-no a Jacques Anquetil, quando venceu também a quarta de cinco Voltas a França na década de 60. Mas já antes, mesmo na antecâmara da prova, teve novamente de demarcar-se de uma polémica em torno de doping, neste caso a investigação feita à Team Sky pela alegada utilização de triamcinolona com alguns corredores após ter ficado provado que encomendou 55 doses do corticoide entre 2010 e 2013. “Só posso falar da minha experiência e a mim nunca me propuseram utilizar isso nem me apercebi que circulasse pelos meus companheiros”, defendeu o chefe-de-fila.

A Sky pode ser outra das justificações para tanta antipatia com um campeão, até no próprio Tour, onde ainda agora foi assobiado ao terminar o contrarrelógio depois de ter sido atingido com urina em 2015 por um espetador. Além de ser uma equipa com todas as regalias e condições de preparação bem acima da concorrência, tem corredores como Mikel Landa, Michal Kwiatkowski ou Vasil Kiryienka que dão totais garantias a Froome. Merckx ou Indurain são venerados pelo que faziam como corredores, o inglês ainda luta um pouco contra o estigma de ser um campeão “fabricado” pela melhor equipa e com melhores condições. E ninguém gosta disso.

Apesar de ter um perfil reservado, de ser uma pessoa educada, de estar a tentar aproximar-se dos franceses falando na sua língua e de não entrar em picardias com os rivais diretos, o ‘Queniano Branco’, um humano como qualquer humano, ainda não é visto como tal. Ao contrário de Wiggins, o último herói vestindo a camisola da Sky. E nem o facto de ter sido atropelado em maio conseguiu “humanizá-lo” o suficiente.

Ser discreto, educado e transparente na abordagem a todos os assuntos ainda não foi suficiente para sair da sombra. Mas já conta com quatro vitórias no Tour. E está a uma de ser o melhor entre os melhores. Além de condições físicas excecionais, o verdadeiro segredo de Froome ficou bem evidente neste Tour de 2017: a inteligência com que consegue gerir três semanas de prova. É certo que tem a melhor equipa, com escudeiros capazes de lutar eles próprios pela vitória, e goza de condições de topo na Sky, mas ganhou vantagem, aproveitou a quebra de Aru e geriu esse avanço sem nunca ser colocado verdadeiramente em causa.

Foi assim que, como é habitual, fez hoje a última etapa a um ritmo de passeio, saudado por adversários, a brindar com os companheiros, a resolver um problema mecânico na bicicleta sem o mínimo de preocupação (até houve um pedido de casamento de um corredor, através de um papel mostrado para as câmaras de televisão). O holandês Dylan Groenewegen venceu ao sprint a 21.ª e última etapa, mas todas as atenções estavam focadas em Froome, que foi abraçar a mulher e o filho mal passou a meta.

Mesmo sem ganhar uma única etapa, o que aconteceu apenas pela sétima vez no Tour em mais de 100 anos (os outros foram Firmin Lambot, Roger Walkowiak, Gastone Nencini, Lucien Aimar, Greg LeMond e Óscar Pereiro), o inglês ganhou pela quarta vez a prova e tornou-se o primeiro depois de Indurain, na década de 90, a vencer três edições consecutivas.

Froome já entrou na história. E está a um triunfo de igualar os melhores dos melhores. Mesmo que, às vezes, o caminho que tem vindo a trilhar desde 2012 não seja devidamente reconhecido.