As abelhas não deveriam ser capazes de voar. Quando o fazem, estão a violar as leis da Física. Na realidade, não é bem assim — a Física é perfeitamente capaz de explicar porque é que as abelhas conseguem voar, por muito improvável que pareça ser, tendo em conta o tamanho do corpo e das asas. Ainda assim, o mito urbano de que as abelhas não deveriam ser capazes de voar — mas voam — foi usado pelo presidente do BCE, para fazer um discurso que se adivinhava rotineiro mas acabou por ser histórico. Foi há cinco anos, a 26 de julho de 2012, que Mario Draghi tirou o euro do precipício ao prometer “fazer tudo o que for necessário, dentro do mandato”, para preservar a união monetária — “e, acreditem em mim, será suficiente“.

Há cinco anos, os tempos eram tudo menos fáceis. Portugal e Irlanda estavam relativamente resguardados porque tinham as necessidades financeiras asseguradas pelos respetivos programas de resgate, desde que cumprissem os programas. A Grécia parecia um pouco mais estabilizada, depois do perdão “voluntário” da dívida que lhe foi concedido no início do ano e, também, depois da eleição do conservador Antonis Samaras (que viria a ser derrubado em 2015 por Alexis Tsipras), o que também terá ajudado a dar algum respaldo à declaração de Draghi.

Em julho de 2012, os investidores pediam mais 10 pontos percentuais de taxa de juro para comprar (uns aos outros) dívida portuguesa do que dívida alemã. Temia-se a desagregação da união monetária.

O principal receio estava, contudo, em Espanha e Itália. Espanha já tinha tido um programa para que a banca recebesse ajuda, mas a pressão dos mercados — receosos quanto à solvabilidade do país — tornava provável que o país vizinho tivesse de pedir um resgate pleno (não só para a banca mas para todo o Estado). Em Itália, por outro lado, desde os tempos de Silvio Berlusconi que era enorme o ceticismo dos investidores quanto ao estado da banca e da economia do país.

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Os juros dos dois países tinham disparado para mais de 6% (7%, mesmo, em Itália), um sinal de que Itália e Espanha pareciam caminhar para o resgate por parte dos fundos europeus. Só havia um problema: não havia dinheiro para resgatar um país da dimensão de Itália, o país mais endividado da zona euro depois da Grécia, e muito menos os dois países. Nem havia disponibilidade política para ter dois dos maiores países da zona euro sob resgate, além dos outros três (Grécia, Irlanda e Portugal).

O euro é como uma abelha. A abelha é um mistério da natureza porque não devia voar, mas voa. O euro tem sido uma abelha que tem voado bem, ao longo de vários anos. E agora — julgo que agora as pessoas estão a perguntar: como? — provavelmente havia algo na atmosfera, no ar, que fez com que a abelha voe. Agora parece que algo terá mudado no ar, e sabemos o quê, depois da crise financeira.”

Mario Draghi defendia que, tal como a abelha, também a zona euro tinha conseguido sobreviver tantos anos apesar das suas diferenças — de política, de cultura ou de língua, por exemplo.

“Acreditem em mim, será suficiente”

Diz-se que foi de improviso. Que só horas antes Mario Draghi decidiu dizer o que viria a dizer. O discurso não surgiu numa das conferências de imprensa periódicas, após a reunião do Conselho do BCE, mas sim numa palestra em Londres, perante uma plateia de investidores e analistas de mercado.

Muitos desses investidores e analistas de mercado duvidavam do “poder de fogo” dos fundos europeus, mas não teriam tantas dúvidas em relação ao “poder de fogo” de um banco central como o BCE. Os constrangimentos legais do banco central também suscitavam muitas dúvidas entre os analistas — que, no fundo, o BCE não tivesse condições políticas e de mandato para fazer o que era preciso — mas, com o seu inglês com sotaque italiano, Draghi procurou desfazer quaisquer dúvidas a esse respeito.

Dentro do seu mandato, o BCE está pronto para fazer o que for necessário para preservar o euro. E, acreditem em mim, será suficiente”, atirou Draghi.

Esta frase foi o pré-anúncio do programa que seria anunciado semanas depois — o Outright Monetary Purchases (OMT). Em causa estava um programa de compras de dívida que o BCE admitia fazer quando achasse que a diferença entre os juros dos países era demasiada. Ou seja, se as taxas de juro de Espanha, por exemplo, se afastassem muito das taxas da Alemanha, o BCE iria intervir no mercado para comprar títulos e, assim, suportar os preços (e travar os juros implícitos).

O BCE já tinha comprado dívida dos países anteriormente, ainda no tempo de Jean-Claude Trichet, mas foi ao abrigo de um programa que sempre se disse ser “limitado e temporário”. Um programa assim, mesmo sendo promovido pelo BCE, nunca chegaria para convencer os investidores de que o BCE não permitiria que um dia acordássemos e a dívida espanhola, que estava em euros, tinha passado a ser denominada em pesetas; ou a dívida portuguesa em escudos, por exemplo, e por aí fora — era o chamado risco de redenominação.

O OMT nunca chegou a ser usado — não foi preciso. Nos mercados financeiros, é melhor um programa ilimitado que nunca é usado do que um programa que é usado mas é, por definição, limitado.

O discurso de Draghi foi recebido pelos analistas como “música para os ouvidos” de quem queria ver a crise do euro, finalmente, resolvida. Os mercados reagiram rapidamente mas levou algumas horas até que toda a gente se apercebesse do alcance das palavras históricas de Mario Draghi.

“O euro é irreversível”. Será?

Entre as expressões mais marcantes do discurso de Mario Draghi estava a garantia de que “o euro [era] irreversível“. Na altura, foi uma frase com grande importância, ajudando países como Portugal a atraírem, novamente, investidores privados para a sua dívida — no chamado caminho de regresso aos mercados, que acelerou em 2013 e permitiu concluir o programa da troika, em 2014, sem mais programas de assistência, mesmo que apenas cautelares.

Contudo, a crise na Grécia em 2015 demonstrou que, até certo ponto, esta foi uma garantia frágil. Mario Draghi poderia estar, em julho de 2012, encorajado pela eleição de um Governo conservador na Grécia. E até Angela Merkel, a chanceler alemã, poderá ter dado algum conforto político a que Draghi desse garantias aos investidores de que a crise da zona euro seria resolvida. Mas a realidade é que, alguns anos depois do discurso histórico de Draghi, a Grécia esteve com um pé fora da zona euro.

Nasceu uma nova zona euro: a zona euro reversível

A saída da Grécia da zona euro acabou por ser evitada, com a capitulação de Alexis Tsipras, a saída de Yanis Varoufakis e a assinatura do terceiro resgate. Mas a realidade é que a maior proatividade do BCE foi suficiente para garantir que, mesmo nessa altura, a turbulência se centrasse, nesse verão quente de 2015, apenas na Grécia.

No início de 2015, entretanto, o BCE lançou mais um programa de compras de dívida mas com outro objetivo — estimular a inflação. O efeito prático tem sido também, contudo, que as taxas de juro dos países têm vindo a convergir: resta saber se a tendência se irá manter após o final do programa (no próximo ano).

As compras de dívida pelo BCE têm sido decisivas para que países e empresas (e, claro, famílias) paguem menos pelos seus empréstimos. Mas tudo começou com aquele discurso em julho de 2012, quando a maioria dos analistas achava que a zona euro não duraria muito mais.

Mario Draghi foi o bombeiro quando a zona euro estava a bater no fundo, mas sempre sublinhou que a política monetária apenas poderia “ganhar tempo” e que os governos tinham de aproveitar para fazer reformas estruturais que aumentassem a competitividade e a produtividade das economias. Este é um aviso que Mario Draghi repete todos os meses, e quase sempre que lhe colocam um microfone à frente da boca, cinco anos após esse discurso que tirou a zona euro do abismo.