No meio de uma exposição de marcas de roupa nacionais e internacionais deparamo-nos com umas sweatshirts com o rosto do cantautor José Afonso sob umas fitas negras e as palavras “Anti-Herói”. O rosto grave de Zeca naquela peça de roupa desportiva causa impacto independentemente dos gostos musicais de cada um. Sobretudo porque, no meio de tantas roupas indiferenciadas, pressentimos logo que há ali uma proposta diferente, que é mais do que moda: é política e é arte, é um desafio. É Repto, uma marca de roupa sediada no Algarve, criada e desenvolvida por um designer de comunicação que um dia foi expulso de uma escola na África do Sul por se recusar a cantar o hino daquele país.

“Era pequeno, nem sabia o que estava a fazer, mas sabia que era português e portanto não podia cantar aquilo”, conta Bruno Fonseca, o ideólogo da marca “made of Portugal” onde recupera símbolos da cultura e da História portuguesas.

Uma das peças emblemáticas da coleção “Anti-Herói”, uma homenagem a Zeca Afonso. © Divulgação

Repto quer dizer desafio mas também provocação, instigação, e Bruno Fonseca, 39 anos, designer de comunicação e responsável pela agência Triplesky, tem um confesso problema com o facto de os portugueses não se orgulharem o suficiente da sua história, da sua cultura e dos seus heróis. É deste desconforto que cria, em 2014, uma marca de streetwear que “pretende vestir os portugueses não com roupa ou acessórios mas com História”. Assim a Repto assume uma forte carga política porque cada uma das suas peças tem uma história, exige um posicionamento e uma indagação: o que é que eu estou a fazer por este país? Por outro lado, quer ser suficientemente provocadora para não ser fácil de usar. O seu desafio afinal são vários desafios ao mesmo tempo e não se esgotam nas frases bem intencionadas: a Repto quer que os portugueses tenham orgulho de si mas também é um manifesto contra a fast fashion, a indústria da moda em geral e as ditaduras do bom gosto em particular. Bruno Fonseca faz-nos saber os princípios da marca:

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  • Não criam roupas, contam histórias;
  • As peças são feitas em Portugal mas sobretudo são feitas de Portugal;
  • Não têm, sobre o país, um olhar “turístico” mas conceptual;
  • Não são óbvios, cada objeto sintetiza vários símbolos da cultura portuguesa que é preciso descodificar;
  • As roupas são caras porque mais vale usar uma marca portuguesa cara do que uma marca estrangeira barata;
  • Não seguem as tendências da indústria da moda nem as regras das estações do ano, fazem coleções temáticas;
  • Rejeitam as cores ditadas pela moda de cada estação e propõem-se descobrir as cores de Portugal;
  • A sua geografia é o hip-hop, o fado, as tribos urbanas das bicicletas, das motas e do skate;
  • Não são retro mas querem rever a memória de Portugal com olhos de futuro.

O esplendor de Portugal

O verso de Alexandre O’ Neill “Portugal, questão que tenho comigo mesmo” cabe à Repto, e a Bruno Fonsesa, na perfeição. O país é a sua grande questão, a relação de amor/ódio que ele conta assim: “Nasci em Lagos mas passei a infância na África do Sul, para onde os meus pais emigraram nos anos 80. Quando saímos do país ganhámos uma consciência muito maior do que significa ser português, ganhámos orgulho, tudo o que era de Portugal era vivido com enorme intensidade. A comunidade de portugueses juntava-se toda para ver os jogos de futebol — eram os momentos mais importantes da vida dessas pessoas que gastavam todos os outros minutos no trabalho. Por isso, quando voltei não percebia, e não percebo, porque é que os portugueses têm vergonha de si mesmos. Porque é que dizem mal de tudo o que é português, porque é que não se valorizam uns aos outros mas usam uma bandeira dos Estados Unidos estampada na t-shirt.”

Portanto, logo de caras a Repto ostenta como logótipo uma cruz de Cristo como a que foi usada nas caravelas, mas inclinada, o que faz com que pareça um X. Como explica Bruno Fonseca, “é ao mesmo tempo um dos símbolos das nossa História mas significa também o encontro de um lugar incerto, desconhecido que se assinala”. Para além do logótipo, a marca sinaliza a sua presença em centros comerciais, feiras, eventos, etc. com um UMM 490 modelo 4×4 restaurado. Este carro fabricado pela União Metalo-Mecânica foi o único carro de fabrico português, corria o ano de 1977.

A primeira coleção nasceu ainda com ecos da crise económica e financeira, sob o nome “Novos Deuses”. A grande inspiração era a Revolução do 25 de Abril mas também a aventura das Descobertas, Luís de Camões ou a nota de 20 escudos com o rosto do aviador Gago Coutinho: “Levantem o vosso esplendor e cumpram o destino de serem deuses do vosso mundo”, era o desafio anunciado neste vídeo com uma forte carga poética.

Coleção de homenagem aos combatentes da Guerra Colonial, portugueses e africanos. © Divulgação

A segunda tinha como tema a Guerra Colonial e estilizava os camuflados dos combatentes portugueses, ostentando uma bandeira que Bruno criou a partir das bandeiras de todos os países que estiveram envolvidos na guerra do Ultramar. Sendo que, como diz o filósofo Eduardo Lourenço, Portugal recalcou a Guerra Colonial e com isso apagou da História todos os que nela combateram, esta coleção é, mais do que um gesto comovente, um gesto profundamente político que, infelizmente, quase só ficou conhecido entre compradores estrangeiros que são os principais clientes da loja em Faro, da Pop Up Store no Fórum Algarve e da loja online, no site da marca.

À terceira foi a vez de “As Nossas Cores”, uma coleção que tratava de reinterpretar as tonalidades da bandeira portuguesa, remetendo também para as diferentes raças que constituem o Portugal contemporâneo. A quarta, que acaba de sair, chama-se “Anti-Herói” e nasceu a partir da letra homónima de uma música do rapper Valete. A primeira parte da coleção de streatwear é uma homenagem ao cantautor Zeca Afonso usando uma estampagem do seu rosto na parte de trás das camisolas. A segunda parte deverá ter rostos de bombeiros portugueses anónimos pois “eles são os anti-heróis por excelência, os seus atos não os tiram nunca do anonimato”.

Uma das várias t-shirts da Repto que ostentam frases provocadoras não para fazer rir mas para fazer pensar na nossa condição de portugueses e de cidadãos do mundo. © Divulgação

As peças da Repto são feitas pela empresa Têxtil Nortenha, que detém o fabrico de marcas internacionais como a COS ou a Acne Studios. Esta pareceria é um grande orgulho para Bruno Fonseca porque, diz, “eles acolheram o nosso projeto sem exigir nada em troca, acreditaram em nós desde o início”. Apesar desta parceria a Repto tem tido alguma dificuldade em entrar em lojas multimarca e em sair do Algarve. Os seus principais clientes são estrangeiros e turistas de passagem e até já existe uma loja nos arredores de Paris que lhes compra parte das coleções. Mas o designer considera que “é ainda muito pouco para todas as suas potencialidades”. E enquanto não chega o momento de dar o salto vai fazendo este tipo de peças provocadoras e irónicas que recorrem à mundividência das redes sociais para falar de coisas mais sérias.

Nome: Repto
Data: 2014
Pontos de venda: loja online, Fórum Algarve, Faro (Parque da Pontinha)
Preços: 30€ a 89,95€

100% português é uma rubrica dedicada a marcas nacionais que achamos que tem de conhecer.