É mais um detalhe do negócio da compra pela EDP da empresa Home Energy, que está a ser investigado pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) no âmbito do chamado caso EDP. Nenhum dos auditores contratados pela EDP para escrutinar em 2010 o ativo criado pelo Grupo Martifer e por Miguel Barreto analisou o possível conflito de interesses que poderia existir na realização de um negócio que obrigava a pagar cerca de 1,4 milhões de euros pela posição de 40% detida por um ex-diretor-geral da Energia que tinha tomado importantes decisões sobre a principal elétrica nacional durante o seu mandato entre 2004 e 2008.

Este negócio, que foi concretizado em dezembro de 2010, está a ser investigado pelo DCIAP, nomeadamente a alegada relação entre o mesmo e a atribuição da licença não vinculada da Central de Sines em 2007 por parte de Miguel Barreto. Para já, o DCIAP decidiu constituir Miguel Barreto como arguido por suspeita da alegada prática dos crimes de corrupção passiva, tráfico de influências e participação económica em negócio.

De acordo com um conjunto vasto de informações a que o Observador teve acesso, é possível reconstruir as diferentes fases da operação de aquisição da Home Energy pela EDP e perceber os principais pormenores do negócio que envolveu a soma total de 3,4 milhões de euros. Sendo certo que a EDP entrou no mercado de eficiência e certificação energética em 2007 com a aquisição de 55% do capital social da sociedade QEnergia e, em 2010, da totalidade do capital social da empresa QEEngenharia — uma segunda sociedade com acionistas comuns à primeira empresa.

Miguel Barreto constituído arguido no processo das rendas da EDP

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Atividade de compliance não estava desenvolvida em 2010

A Morais Leitão, Galvão Teles e Soares da Silva (MLGTS), um dos habituais fornecedores de serviços jurídicos à EDP, foi o escritório responsável pela auditoria jurídica à Home Energy. Ao que o Observador apurou, o relatório entregue a 16 de dezembro de 2010 pela MLGTS evidencia uma análise pormenorizada de todos os documentos societários, laborais, comerciais, prediais, de licenciamento e dos empréstimos bancários realizadas pela Home Energy, assim como de subsídios, litígios, seguros e propriedade intelectual contratualizada pela empresa fundada pelo Grupo Martifer e por Miguel Barreto.

Contudo, o trabalho de campo realizado entre 24 de novembro e 10 de dezembro de 2010, a pedido da EDP Serviços – Sistemas para a Qualidade e Eficiência Energéticas (a entidade compradora), não incluíram a análise dos potenciais conflitos de interesse. Isto apesar de estar evidenciado logo na introdução do referido relatório que a Home Energy pertencia à Martifer Solar (60%) e a Miguel Barreto (40%). O relatório, contudo, não refere uma informação que era do conhecimento geral e dos representantes da EDP que fizeram o negócio: Miguel Barreto tinha sido diretor-geral de Energia e Geologia entre 2004 e 2008.

O Observador questionou a EDP sobre as razões que explicam esta situação, tendo recebido uma resposta sintética de fonte oficial da elétrica: “A EDP nunca negociou nada com Miguel Barreto mas sim sempre com a Martifer, que foi quem nos apresentou o negocio”. Ou seja, no entendimento da empresa liderada por António Mexia não se coloca nenhuma situação de conflito de interesse, visto que o processo negocial realizou-se com a Martifer — e não com Miguel Barreto. Apesar de ser claro que a EDP pagou à Martifer cerca de 2 milhões de euros e a Barreto a soma de cerca de 1,4 milhões.

Já o escritório Morais Leitão não quis prestar esclarecimentos por “razões deontológicas”, afirmou fonte oficial.

O Observador contactou diversos advogados habituados a colaborar na área do compliance para perceber se essa atividade já estava implementada em 2010. Trata-se de uma área de negócio desenvolvida recentemente por escritórios de advogados que visa escrutinar determinado negócio à luz da lei, regulamentos e códigos éticos ou deontológicos.

Paulo Saragoça da Matta, criminalista e professor da Faculdade de Direito de Lisboa, é claro: não estava implementada. A área do compliance nasceu “na actividade bancária e financeira em 2008/2009”, explica o advogado, fruto da obrigatoriedade legal de passar a transmitir informação bancária aos reguladores e à Justiça sobre transações suspeitas à luz das novas regras de combate ao branqueamento de capitais, corrupção e terrorismo. Contudo, o desenvolvimento e implementação estrutural do compliance só ocorreu alguns anos depois. “Ninguém, no ano de 2010, poderia dar qualquer parecer no âmbito daquilo que então era ‘o compliance’ (âmbito, escopo, conteúdo) nos termos que hoje seriam exigíveis à luz dos atuais normativos (fruto da experiência trazida pelo tempo), pois não só as regras são outras, como, o que é mais importante, a própria noção, âmbito e princípios do compliance mudaram imenso na última década”, afirma o sócio do escritório Saragoça da Matta & Silveiro de Barros, fazendo questão de referir que as suas declarações são feitas de forma abstrata e não a partir do caso concreto da EDP/Miguel Barreto.

Hoje a situação seria completamente diferente. Mesmo seguindo a posição oficial da EDP de que negociou apenas com a Martifer, o facto de a elétrica nacional transferir (como transferiu) uma quantia de cerca de 1,4 milhões de euros para um ex-diretor-geral de Energia e Geologia seria previamente escrutinado pela própria empresa e respetivos advogados à luz da lei penal e de conflitos de interesse.

Interesse da EDP pelo setor iniciou-se em 2007

O interesse da EDP pelo setor da eficiência e certificação energética iniciou-se em 2007, com a aquisição de 55% da sociedade QEnergia por cerca de 650 mil euros. Ao que o Observador apurou, o administrador Jorge Cruz de Morais, da EDP Comercial, propôs em maio de 2007 a aquisição de tal participação com o objetivo de promover um crescimento da área de prestação de serviços energéticos do Grupo EDP. O conselho de administração da elétrica, que já era liderado por António Mexia, aprovou a operação com o objetivo de chegar posteriormente ao domínio da companhia que emitia certificados energéticos na área industrial — e não na área doméstica, como a Home Energy.

Tal só veio a acontecer, contudo, em 2010 com a aquisição da totalidade do capital social de uma segunda sociedade designada de QEEngenharia. Esta sociedade foi fundada pelos acionistas da QEnergia e na mesma foi concentrado “o desenvolvimento e implementação de produtos associados à qualidade e eficiência energética”, de acordo com uma fonte próxima do processo.

De acordo com a mesma fonte, depois de adquirir a totalidade do capital da QEEngenharia, o Grupo EDP mudou o nome da sociedade para “EDP Serviços”. O Registo Comercial, contudo, não evidencia esta mudança de nome.

O processo de negociação entre a EDP e a Martifer para a compra da totalidade do capital social da Home Energy (isto é, para a compra dos 60% pertencentes à Martifer e dos 40% titulados por Miguel Barreto), ter-se-á iniciado durante o primeiro semestre de 2010.

DCIAP investiga negócio de 1,4 milhões de ex-diretor-geral da Energia com a EDP

Na mesma altura, a EDP contratou a consultora Euro Praxis Consulting para apresentar as suas ideias para o desenvolvimento de novos negócios. Serviços como a EDP Box (que agora se chama EDP Ready), a geração elétrica distribuída ou a certificação energética foram algumas das áreas recomendadas num relatório da Euro Praxis apresentado em maio de 2010. Os consultores acreditavam que seria possível ter incrementos de 110 milhões de euros em receitas, cerca de 16,9 milhões de euros só nos primeiros 5 anos, na área da certificação energética — mercado este que era avaliado em 32 milhões de euros em 2009.

Para o desenvolvimento desta área, a consultora apresentou duas soluções:

  • Criação dentro do Grupo EDP de uma empresa de raiz;
  • Aquisição de uma operação que já existisse no mercado.

Os consultores terão sinalizado que a segunda hipótese seria a mais interessante para a EDP, já que permitia chegar a líder do mercado com uma maior rapidez.

Compra por um terço do preço inicial

Foi neste contexto que surgiu a hipótese de a EDP comprar a Home Energy. Os primeiros contactos remontam a um período que antecede o estudo da Euro Praxis, mas só tiveram desenvolvimentos significativos no segundo semestre de 2010.

Em setembro de 2010, a Martifer fez uma apresentação da empresa que detinha a 60%, tendo descrito a Home Energy da seguinte forma:

  • Líder do mercado de certificação energética de usados com uma quota de 20% e cerca de 80 funcionários;
  • Mais de 20.000 certificados emitidos;Líder do mercado de microprodução com uma quota de mercado de 7%;
  • + 450 sistemas de solar térmico instalados.

E com uma faturação com os seguintes valores:

  • 2008 — 2,19 milhões de euros;
  • 2009 — 8,72 milhões de euros;
  • 1.º Semestre de 2010 – 4,81 milhões de euros.

Em termos de previsão de faturação, a Martifer entendia que a receita deveria subir de 13,3 milhões de euros em 2011 para 18,2 milhões em 2015. Resumindo: a Martifer avaliava o seu ativo num intervalo entre 11,1 e os 8,9 milhões de euros.

Depois de um processo de negociação, o conselho de administração da EDP veio a aprovar, a 2 de Novembro de 2010, por proposta do administrador Jorge Cruz Morais (EDP Serviços), o estabelecimento de negociações formais para a aquisição da Home Energy. Ao que o Observador apurou, o principal órgão de gestão da elétrica analisou o negócio no pressuposto de que o acionista maioritário da Home Energy (a Martifer), estava num processo de optimização do seu portfólio de negócio, pretendendo vender aquele ativo. Por outro lado, a administração de Mexia entendia que a aquisição permitiria potenciar o crescimento da EDP Serviços, já que o ativo a comprar encaixava operacionalmente na sua estrutura de negócios.

Numa primeira análise, os auditores financeiros da EDP consideraram que o valor máximo da Home Energy apontaria para cerca de 9,7 milhões de euros, enquanto o valor mínimo rondava os cerca de 3,6 milhões. Após o processo de negociações, a EDP e a Martifer acordaram um valor de compra de 4 milhões de euros — menos de metade do valor mínimo ponderado pela Martifer. Realizadas todas as auditorias (que custaram à EDP cerca de 200 mil euros), o preço baixou mais um pouco, visto que foram identificados cerca de 90 mil euros em contingências e 516 mil euros em descapitalização. Assim, o preço foi ajustado para 3 milhões e 418 mil euros.

Ao que o Observador apurou, a minuta do contrato de compra e venda com a Martifer Solar (a empresa do Grupo Martifer que detinha formalmente o ativo) e Miguel Barreto com a data de 30 de dezembro previa assim o pagamento de dois valores:

  • 1.367.210 € (um milhão, trezentos e sessenta e sete mil e duzentos e dez euros) a Miguel Barreto, a pagar na data da conclusão do negócio, como contrapartida pela cedência de 20 mil ações (que representavam 40% do capital social) da Home Energy. Esse valor incluía igualmente cerca de 80 mil euros de créditos que o ex-diretor-geral da Energia tinha a receber da empresa por si criada;
  • 2.050.814 € (dois milhões e cinquenta mil e oitocentos e catorze euros) à Martifer, a pagar na data da celebração do negócio pela transmissão das ações representativas de 60% do capital social. Tal como aconteceu com Barreto, esse montante incluía cerca de 170 mil euros de créditos que o Grupo Martifer tinha a receber da Home Energy.

A minuta do contrato previa ainda um possível ajuste final após a efetivação da compra, caso se se verificasse um incumprimento do pagamento de dívidas de clientes à Martifer Solar. O que veio a acontecer no montante de 150 mil euros. Assim, esse valor veio a ser descontado nos valores pagos pela EDP aos dois sócios fundadores, tendo em conta a respetiva percentagem de ações tituladas. Ou seja, o valor final da compra foi de 3 milhões e 268 mil euros.

Um valor que os auditores financeiros da EDP consideravam muito positivo, tendo em conta que calculava que o valor da Home Energy subiria para os 8,4 milhões de euros após a compra e incluídas as sinergias por incorporações no Grupo EDP.