As demissões e substituições sucedem-se umas a seguir às outras na Casa Branca. Já foram 16 ao todo desde que Donald Trump assumiu a presidência há precisamente 191 dias. Muito se escreve sobre o sentido das mudanças e o rumo que a administração Trump está a (ou pretende) tomar, mas a verdade é que para já conhece-se mais sobre as personalidades individuais do que sobre a estratégia mais algargada. General na reforma, John Kelly, 67 anos, começou por ser secretário da Segurança Interna, mas passou esta segunda-feira para a dependência direta do Presidente, assumindo o cargo de secretário-geral da Casa Branca — uma espécie de chefe de gabinete ou, a bem dizer, de braço direito do Presidente.

Na origem da mudança de pasta está a demissão de Reince Priebus, que ocupava aquela função de liderança até ter sido demitido na passada sexta-feira, no culminar de uma semana no mínimo atribulada (que envolveu também a demissão do diretor de comunicação da Casa Branca, Anthony Scaramucci, que estava no cargo há apenas 10 dias). A verdade é que Scaramucci e Reince Priebus tinham desentendimentos evidentes, com o primeiro a acusar o segundo de ser a fonte de várias fugas de informação, e a chamá-lo de “esquizofrénico” e “paranóico”. Feitas as contas, saem os dois. Entra John Kelly, que foi anunciado para o cargo apenas na passada sexta-feira, mas que terá dado logo um murro na mesa numa das suas primeiras reuniões no cargo, esta segunda-feira: disse que não queria Scaramucci como diretor de comunicação. E Scaramucci saiu.

E agora? Agora acredita-se que Kelly vá usar a sua vasta experiência militar para lidar com todas as divergências internas na equipa, com as várias investigações à administração Trump e até com os atrasos significativos na agenda legislativa. A tarefa não será fácil, mas os mais de 40 anos que serviu nos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, incluindo três missões no Iraque, deverão servir para alguma coisa.

Um “grande líder”, uma “verdadeira estrela”. Ou um pulso militar para pôr ordem no caos

Quando, na sexta-feira, Donald Trump anunciou via Twitter a nova “contratação”, desdobrou-se em elogios: um “grande americano”, um “grande líder”, que fez um “trabalho espetacular” na Segurança Nacional. Em suma, John Kelly tem sido, disse, uma “verdadeira estrela” da sua administração.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Antes, quando anunciou que John Kelly seria o secretário de Estado da Segurança Nacional, isto é, a pessoa responsável por uma das pastas mais importantes da administração norte-americana, já Donald Trump tinha sido elogioso. “As décadas de serviço militar do general John Kelly, assim como o seu profundo compromisso em lutar contra o terrorismo dentro das nossas fronteiras faz dele a escolha ideal para o departamento da Segurança Nacional”, disse na altura, enaltecendo a sua missão de travar a imigração ilegal e de garantir a segurança das fronteiras. Era John Kelly que estaria também encarregue de dar forma ao polémico muro há muito prometido por Donald Trump, na fronteira dos EUA com o México, sendo que Kelly concordava com Trump na génese da ideia.

Agora vai mudar de posto e tentar impôr ordem no caos que é a equipa de pelo menos 26 assistentes de Donald Trump (Obama tinha 22 e George W. Bush apenas 17). Certo é que hierarquia e pulso firme são expressões que lhe são muito familiares.

Kelly serviu no Exército durante quase cinco décadas, tendo ocupado várias funções de relevo. Foi o caso da chefia do Comando do Sul (durante quatro anos), que inclui a vasta zona da América do Sul, América Central e Caraíbas, tendo sido responsável pela controversa prisão de Guantanamo, em Cuba. Foi também assistente sénior dos secretários da Defesa Leon Panetta e Robert Gates, e elo de ligação do ramo militar ao Congresso, funcionando como assistente legislativo, em meados de 2000. Para além disto, esteve em missões no Iraque e Afeganistão. Descrito como leal e respeitador da hierarquia, sempre trabalhou para governos, embora nunca de forma direta e sem nunca ter assumido pastas políticas. É militar na reforma há apenas oito meses, altura em que Trump o convidou para o departamento de Segurança Nacional.

Nascido e criado em Boston, formado na Universidade de Massachusetts, viu um filho morrer em combate no Afeganistão, em 2010, quando comandava um pelotão. Apenas quatro dias depois da morte do filho, Kelly fez um discurso emocionado — e depois muito partilhado — sobre o sacrifício militar, embora não tenha mencionado diretamente a sua tragédia pessoal. “A luta deles é a nossa luta, se alguém pensar que pode de alguma forma agradecer-lhes pelo serviço que prestam e não apoiar a causa pela qual eles lutam — que é o nosso país — então está a mentir a si próprio”, disse na altura.

Mais tarde, em 2016, falou diretamente sobre o que é perder um filho — “não há nada pior do que isso” — e do que é perder um filho em combate — “há um certo orgulho, um orgulho que me diz que ele não tinha de estar lá mas estava porque queria estar, porque se voluntariou para estar”. Para John Kelly, os pais que perdem filhos em cenários de guerra não se devem perguntar se “valeu a pena”. “Não é essa questão que devemos fazer enquanto pais. Aquele jovem rapaz achou que valia a pena estar lá, e essa é a única opinião que importa”, disse na altura, a única vez em que falou especificamente sobre o filho.

Em janeiro de 2016, quando ainda exercia funções de comando no Comando do Sul norte-americano, John Kelly saltou para os holofotes por ter questionado a decisão do então presidente Barack Obama de permitir a entrada de mulheres na linha de combate do exército. Na altura, Kelly mostrou-se preocupado com o facto de os militares terem de vir a baixar os seus padrões para aceitar mulheres lado a lado. “Haverá uma grande pressão, quer seja no espaço de um ano ou quatro, porque a questão irá surgir: porque é que pusemos as mulheres nestes papéis? Porque é que não as deixamos nas outras funções?”, questionou na altura.

Tudo o que Trump não é (mas não o tente mudar)

Com vários pontos em comum mas personalidades muito distintas, multiplicam-se as análises sobre o futuro da Casa Branca com Kelly aos comandos, mas a conclusão é similar: John Kelly é tudo o que Donald Trump não é, mas que não tente mudá-lo.

De acordo com um artigo desta segunda-feira da The Atlantic, John Kelly tem sido em toda a sua carreira tudo o que Trump não foi: passou por dificuldades e provas de superação que “Trump não imagina”, mostrou “virtudes que Trump nem entende”, como “franqueza, coragem e disciplina”, e isso fez soar indícios de que talvez Donald Trump estivesse a “aprender” e que, quem sabe, talvez até os tweets matinais do Presidente norte-americano pudessem estar prestes a desaparecer, com um pulso forte a impor ordem na Casa Branca.

Mas não. É na verdade pouco provável que mude alguma coisa significativa na postura e atitude do presidente norte-americano. Segundo a mesma análise da Atlantic, Trump terá escolhido Kelly não tanto por causa das suas capacidades políticas e administrativas, mas porque olha para ele como um “killer” (assassino). Ou seja, sem qualquer intenção de moderar o tom ou a atitude.

Na CNN, também o antigo diretor de campanha de Trump e conselheiro de todos os dias, Corey Lewandowski, faz uma análise semelhante, sugerindo que John Kelly não deve tentar mudar Trump. Nem o fará. “O que o general John Kelly deve fazer é não tentar mudar Donald Trump. Tem que se deixar Trump ser Trump, porque foi isso que o fez ser bem sucedido nos últimos 30 anos e foi para isso que o povo americano votou. Quem pensar que consegue mudar Donald Trump não conhece Donald Trump”, disse.

Resta por isso saber que tipo de poder John Kelly vai ter dentro da Casa Branca, e se os vários conselheiros e assistentes que compõem a vasta equipa de 26 pessoas que rodeiam o presidente (entre familiares e homens fortes) irão reportar diretamente a Trump ou se passarão, como deviam, pelo general John Kelly. Certo é que a sua primeira atitude enquanto chefe de gabinete, ao lutar pela demissão do diretor de comunicação, que não queria estar às suas ordens, foi indicativa de um pulso forte.