O clima de guerra civil na Venezuela é evidente: o rescaldo das eleições de domingo para a Assembleia Constituinte, que levaram Nicolás Maduro a cantar vitória, deixa antever cerca de 1 milhão de votos manipulados; o número de mortes nos protestos deste fim de semana não é claro, nada é claro, mas haverá 14 vítimas mortais e milhares de feridos; desde abril já morreram perto de uma centena de pessoas nos protestos antigoverno. Logo a seguir ao Brasil, é na Venezuela que se concentra o maior número de imigrantes portugueses da América Latina, com cerca de meio milhão de lusodescentes, a maioria provenientes da Madeira. Desses tantos, cerca de 3 mil a 4 mil estão a regressar ao arquipélago à força. Os EUA de Donald Trump já aprovaram sanções económicas para a Venezuela de Maduro, depois de apelidarem as eleições de “uma farsa”. Mas como está a política em Portugal a olhar para o que se passa neste país?

A verdade é que a chamada “geringonça” divide-se neste tema, como de resto em todos os que impliquem relações internacionais e compromissos europeus. Se o PCP entende que o ato eleitoral de domingo, onde participaram “41% dos eleitores”, foi uma “mensagem coletiva de defesa da paz, da democracia” e pede “respeito” pela soberania da Venezuela, o BE diz que o voto por si só não chega para classificar o ato eleitoral como democrático. E o Governo? O Governo português pouco adianta, remetendo a posição para Bruxelas — sobretudo depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros ter procurado desmentir uma notícia do El País que dava conta de que Portugal era o único país que se opunha à aplicação de sanções. Agora, Augusto Santos Silva assume que Portugal não reconhece a Assembleia Constituinte, mas não diz claramente se é a favor ou contra a aplicação de sanções ao regime venezuelano, chutando tudo para uma posição conjunta alargada.

Esta quarta-feira, em declarações aos jornalistas, Augusto Santos Silva deixou pela primeira vez claro que, à semelhança do que está a ser feito pela União Europeia, como um todo, e pelos Estados-membros, individualmente, Portugal não reconhece a Assembleia Constituinte saída das eleições, da qual fazem parte por exemplo a mulher e o filho de Nicolás Maduro.

Portugal não reconhece Assembleia Constituinte eleita na Venezuela

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Sobre a questão das sanções, Santos Silva afirmou que tem que ser analisada a “nível europeu”, e que Portugal não vai tomar uma posição unilateral sobre o assunto. “O Governo pontua a sua política externa no sentido de uma enorme responsabilidade”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, sublinhando que esse tipo de discussão sobre a posição externa da UE é tido nos “canais próprios” e que o governo português não vai “queimar etapas”. Mais: a preocupação primordial de Portugal é a segurança e bem-estar da comunidade lusófona. “Definimos sempre a nossa posição e o nosso silêncio a partir de uma pergunta principal, que é o que é que ajuda mais e o que prejudica a comunidade portuguesa e luso-venezuelana”, disse.

Já antes, num comunicado emitido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros logo após o ato eleitoral, o gabinete de Augusto Santos Silva tinha dito que nas eleições de domingo não foi dado “nenhum passo para a resolução da crise política naquele país” e que era preciso um “compromisso inclusivo” entre as duas partes para encontrar uma solução que conduzisse à “normalidade constitucional” e ao “respeito pelos direitos humanos e pela separação de poderes”. De resto, o Ministério dos Negócios Estrangeiros optava por fazer suas as palavras da Comissão Europeia — que não reconheceu a Assembleia Constituinte saída das eleições.

“Uma Assembleia Constituinte eleita em condições duvidosas e com frequentes circunstâncias violentas não pode ser parte da solução. [A Assembleia eleita] aumentou a divisão e deslegitimará mais as instituições eleitas democraticamente na Venezuela”, disse na segunda-feira Mina Andreeva, porta-voz da Comissão Europeia numa conferência de imprensa em Bruxelas. “A Comissão Europeia expressa sérias dúvidas sobre se o resultado da eleição poderá ser reconhecido”, acrescentava ainda. Agora, dois dias depois, o Governo português assume a mesma posição.

PCP e BE, duas posições diferentes sobre a “democracia” e a “ditadura” venezuelana

Mas é uma posição, ainda assim, cinzenta e prudente — uma prudência, aliás, partilhada pelo PSD de Passos Coelho, que este fim de semana defendeu que, embora a situação na Venezuela seja “muito preocupante”, as autoridades portuguesas têm vindo a acompanhar “de forma correta e adequada” a situação dos portugueses e luso-descendentes que lá moram. “No essencial, do que vou vendo, o Governo tem vindo a atuar com prudência nesta matéria e todo o esforço diplomático que tem vindo a ser feito tem sido canalizado para apoiar os que mais precisam”, disse o líder do PSD em Barcelos.

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Já a líder do CDS, Assunção Cristas, tem sido muito crítica da atuação (ou falta dela) do Governo português nas reuniões comunitárias sobre a análise da situação naquele país onde vivem “500 mil portugueses”, ainda que em todas as intervenções públicas sobre o tema o CDS se insurja sempre contra a “ditadura carnavalesca” de Nicolás Maduro e contra a “violência de Estado” que se assiste na Venezuela, como apelidou o deputado Telmo Correia numa discussão no Parlamento.

Mais divergente é mesmo a posição do PCP — ainda que seja coerente com todas as suas posições sobre o assunto. Enquanto o Bloco de Esquerda disse esta semana que as eleições não foram um “ato democrático” porque “não estão garantidas condições de liberdade e de pluralidade”, reforçando que “o BE nunca confundiu a democracia com o ato formal de voto”, e que em Angola por exemplo também há eleições e não há democracia, o PCP saudou o “ato de afirmação democrática” e exigiu “respeito pela soberania do país”.

O facto de existir hoje na Venezuela um ato em que as pessoas vão votar não significa que seja democrático, porque as condições da democracia exigem liberdade de expressão, pluralidade de opiniões, imprensa livre, e que haja capacidade dos próprios países tomarem decisões”, disse Catarina Martins este domingo.

O PCP, contudo, emitiu um comunicado esta segunda-feira muito diferente da visão do BE e do Governo socialista. Na nota, os comunistas saudavam o “ato de afirmação democrática” da Venezuela nas eleições de domingo para a Assembleia Constituinte, assim como exigiam que o Governo português tivesse uma “atitude de respeito pela soberania” do país. O PCP sempre foi contra a “ingerência” dos Estados na soberania dos outros. “É ao povo venezuelano que cabe decidir o seu próprio futuro e a forma de organização do Estado”, continuava a ler-se, com o PCP a defender que “os interesses e a segurança da comunidade portuguesa residente na Venezuela implicam a condenação das ações desestabilizadoras, terroristas e golpistas”.

A defesa dos interesses e segurança dos cidadãos portugueses e luso-descendentes é comum às posições de todos os partidos. Mas, quanto ao resto, a posição do Bloco de Esquerda diferente substancialmente da do PCP. Num artigo publicado dia 14 de julho no site oficial do BE, a deputada Joana Mortágua classifica o regime venezuelano como uma “ditadura de caudilho”, e mostra como a esquerda de que faz parte “nunca foi ambígua sobre a condenação de regimes que oprimem o povo e sufocam a democracia”, incluindo aqui o regime angolano e o regime venezuelano. As críticas são muitas. “O chavismo que mobilizou a esperança de multidões de ex-pobres morreu afogado num poço de petróleo”, começa por dizer a deputada bloquista, continuando a afirmar que, “com uma Assembleia dominada pela oposição, Nicolás Maduro passou a governar por decreto presidencial com a cumplicidade do Supremo Tribunal”. Daí que “os abusos contra os restantes partidos se tenham tornado constantes” indo desde a “inutilização da Assembleia à ameaça de ilegalizar o Partido Comunista da Venezuela”.

“O regime manobra contra todos os instrumentos democráticos constitucionais, incluindo o referendo revogatório, que permitiria ao povo expulsar o presidente a meio do mandato. A última farsa foi a convocação de uma assembleia nacional constituinte sem sufrágio universal nem participação dos partidos, uma verdadeira assembleia corporativa como a que conhecemos por cá no tempo da ditadura”, escreve Joana Mortágua, que termina a dizer que “o chavismo passou de projeto do povo a ditadura de caudilho, e não há democrata no mundo que aceite pactuar com isso”.

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Prova desta diferença de posições é a forma como decorrem as discussões em torno dos votos de pesar ou condenação que dão entrada no Parlamento português relacionados com o tema Venezuela. Nem sempre o Bloco de Esquerda vota ao lado do PCP, sendo que PS, PSD e CDS aparecem aqui sempre alinhados. O que acontece sempre é uma discussão acesa entre a esquerda e a direita. Ou melhor, entre o CDS e o PCP.

A última vez que aconteceu foi no início de julho: o PCP apresentou um “voto de condenação dos atos de violência contra a República Bolivariana da Venezuelana e do povo venezuelano”, onde “condenava a ação violenta dos grupos golpistas contra cidadãos venezuelanos, órgãos de soberania e instituições públicas da República Bolivariana da Venezuela, e património público e privado”, e, paralelamente, o CDS e o PSD, juntamente com o PS, apresentaram um “voto de pesar e de apelo ao diálogo democrático na Venezuela”, apelando às autoridades venezuelanas para que, “num quadro de diálogo democrático, desenvolvessem as ações políticas indispensáveis para acabar com todas as situações de violência e de insegurança, que pusessem em causa vidas humanas e os princípios fundamentais do Estado de Direito”.

O voto de condenação do PCP foi chumbado pela maioria, embora contando com os votos favoráveis do BE, PEV e PAN, enquanto o voto de pesar foi aprovado pelo PSD, CDS e PS. Mas não sem antes os partidos se terem envolvido numa acesa discussão ideológica, com o deputado do CDS Telmo Correia a dizer que “aquilo que todos os dias está a acontecer é repressão generalizada, e só tem um nome: violência de Estado”, e a sublinhar que o voto apresentado pela bancada do PCP “não envergonha o parlamento português, mas deveria envergonhar muito quem o apresenta”. Já o líder parlamentar do PCP, João Oliveira, acusou o CDS de “solidariedade com terroristas”, “milícias” e “terroristas golpistas” que estariam na origem de “ataques a órgãos de soberania”. O caso de que se falava naquela altura era o ataque ao Parlamento venezuelano a 5 de julho, desencadeado por civis afetos ao regime e, como referiu o PCP, “prontamente denunciado pelas autoridades venezuelanas”.

Antes, em abril, o BE juntou-se aos partidos da direita e ao PS para aprovar um voto de condenação pelo agravamento da situação de instabilidade e insegurança na Venezuela, da autoria do CDS, sendo que só PCP e PEV votaram contra. O mesmo aconteceu com um outro voto também do CDS, onde o BE votou a favor de dois pontos:

  • o que “condenava e expressava preocupação pela situação política, económica e social na Venezuela, resultante da perturbação da ordem democrática, com consequências graves para o povo venezuelano e em particular para a comunidade portuguesa residente naquele país”;
  • e o que se associava “às vozes que instam o regime venezuelano a instaurar um clima de confiança, diálogo e estabilidade e à reposição imediata da ordem constitucional e democrática naquele país”.

O BE chumbava apenas o ponto que dizia respeito à “ajuda internacional” e ao “acesso a diversas iniciativas internacionais em prol dos cidadãos”.

Certo é que o PCP se mantém fiel à sua posição e vota sempre contra qualquer voto de condenação pela situação de instabilidade na Venezuela por recusar qualquer “ingerência” num Estado soberano.

Quanto ao árbitro Marcelo Rebelo de Sousa, a sua posição tem sido coincidente com a do Governo português. Esta segunda-feira, o Presidente da República recordou que o Governo emitiu um comunicado onde demonstrava a sua preocupação e onde dizia “que o passo dado no domingo acabou por não facilitar o caminho que tem de ser de concórdia, um caminho de acordo, de entendimento e com um calendário eleitoral claro”. Marcelo repetiu ainda uma mensagem que tem sido também a do governo português, “que é de acompanhamento, solidariedade, apoio e compreensão” .