“Isto não é uma guerra porque as guerras acabam”, é uma frase da lendária série The Wire, que, ao longo de cinco longas temporadas, contou a história da violência em Baltimore, no Estado de Maryland, onde, apenas nos primeiros seis meses de 2017, 190 pessoas foram assassinadas com recurso a armas de fogo.

Numa tentativa de valorizar a comunidade, e evitar que quem cresce no meio daquela violência não cresça a achar que não existe mais nada além disso, um grupo de cidadãos de Baltimore está a organizar um fim-de-semana sem tiros: “Nobody Shoot Nobody” — ou “Quem ninguém dispare sobre ninguém” — é o nome da iniciativa que já recolhe apoios um pouco por toda a cidade.

Baltimore é uma das cidades mais perigosas dos Estados Unidos. Não chega ao “top 25” mundial, mas em 2016, numa cidade de 621,849 habitantes, 318 pessoas foram assassinadas — ou 51.1 por cada 100 mil pessoas. Este ano de 2017 está a caminho de ser tornar o mais violento de sempre, com quase 200 pessoas mortas até ao meio do ano. Em 2015 foram mortas 344 pessoas, mas antes disso não se entrava na casa das centenas há muitos muitos anos — o ano mais mortífero tinha sido 1993, quando morreram 139 pessoas.

Leite e água escorrem da cara de um dos manifestantes que ocuparam as ruas de Baltimore em Maio e Abril de 2015, depois da morte de Freddie Gray, alegadamente por ferimentos sustidos durante custódia policial Chip Somodevilla/Getty Images

Esta fase negra começou um pouco depois do funeral de Freddie Gray, um jovem negro que morreu enquanto se encontrava sob custódia policial, com danos na espinha dorsal que ainda estão por explicar. Muitos cidadãos de Baltimore, principalmente da comunidade negra, tomaram este como mais um exemplo daquilo que consideram abuso de poder da polícia sobre as minorias étnicas da cidade e saíram para a rua num verão de fúria, protestos, pilhagens e violência.

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A taxa de homicídios cresceu 150%, com 1.3 pessoas assassinadas por dia ou uma a cada 19 horas, como conta ao Observador uma das organizadoras deste fim-de-semana sem tiros. Ellen Glee, de 34 anos, faz parte do grupo de seis pessoas que, um dia em maio se sentaram à volta de uns donuts e uns ice teas a pensar no papel da sociedade civil no combate a esta violência generalizada.

“Chegámos a um ponto em que era normal as pessoas continuarem o seu caminho mesmo com um tiroteio a acontecer um pouco mais à frente ou numa rua paralela. Mas Baltimore é uma cidade incrível, cheia de gente boa, e começamos a pensar em como utilizar esse sentido de pertença e comunidade para o bem”, diz a ativista.

Foi assim que surgiu a ideia do “Cessar Fogo de Baltimore”, cujo objetivo é fazer com que, durante os dias 4, 5 e 6 de agosto, ninguém dispare sobre ninguém na cidade. Em vez disso, estes dias são para celebrar a cultura, a diversidade e as coisas boas de Baltimore numa série de concertos, debates, apresentações de livros, churrascos, preces coletivas e marchas pacíficas.

A semente deste projeto começou com uma interrogação. “O que é que aconteceria se conseguíssemos transformar esta ideia do cessar fogo num desafio no qual estivessem envolvidas milhares de pessoas não a lutar não entre si, mas com o objetivo comum de garantir que, naqueles dias, não haveria violência?”

Bater a todas as portas

Foi assim que os seis amigos se fizeram às várias ruas de Baltimore, dedicando todo o seu tempo livre à promoção desta iniciativa. “Foi muito ambicioso. Passámos meses a ir a todas as lojas de conveniência, escolas, empresas, paragens de autocarro, sindicatos, instituições de assistência social, meios de comunicação social e agora a nossa mensagem está em todo o lado: os taxistas dão aos passageiros os nossos panfletos, na rua há pessoas com as nossas tshirts, os políticos locais tiraram fotos com os nossos voluntários para o Instagram”, conta Glee, que trabalha na secretária de uma escola e é também promotora de eventos.

Mas o grupo também enfrenta algumas críticas. “Algumas pessoas diziam-nos que isto já tinha sido tentado, que devíamos estar a lutar por um cessar fogo imediato, naquele momento e não a planear algo para agosto, ou então que o problema era político, que as autoridades tinham que ser mais punitivas. Isto pode ser discutido mas nós achamos que só com algum tempo de campanha é que seria possível informar decentemente as pessoas e criar uma expectativa que servisse de motor a este cessar fogo”, argumenta Glee.

https://twitter.com/brittuniverse/status/891393913650597889

No passado, nem sempre estas iniciativas conseguiram mesmo parar as balas. O grupo Mães de Filhos Assassinados pediram um cessar fogo para o dia da mãe, este ano, mas, nesse fim-de-semana, quatro pessoas foram atingidas por tiros, duas morreram.

David Jones, carpinteiro de 43 anos nascido e criado em Baltimore, diz que não vai participar um nenhum dos mais de 50 eventos já programados para este fim de semana. Numa conversa com o Observador através do Facebook, este habitante de Baltimore diz que toda a gente está “consciente do problema da violência”, e que “não é preciso alertar ninguém para isso com iniciativas sociais”. O que é preciso é “mudar a política na cidade, que há anos é dominada pelas mesmas pessoas que não fazem nada”. Para Jones, o problema é a falta de emprego, que empurra os jovens para uma vida de “biscates aqui e ali” que não lhes permite viver uma vida completamente independente do “mundo da droga”. Fala da “permissividade” dos políticos, que continuam a “a tratar o problema como uma coisa que simplesmente acontece, como business as usual“.

A educação, diz, “é central para preparar os miúdos para o mundo no trabalho”, mas “se olharmos para o problema do ponto de vista dos mais jovens o que entendemos é que é inútil dizermos para estudarem bastante quando o que os espera é o desemprego”. E cita os britânicos The Smiths para explicar a ligação da falta de emprego com a proliferação do tráfico de droga: “Nunca ouviste aquela música que diz que o diabo se encarregará de encontrar trabalho para mãos desocupadas?”.

Os problemas de Baltimore não começaram agora

Dia 7 de abril de 1968, dois dias depois do assassinato de Martin Luther King, o estado de Maryland publicou as conclusões à investigação sobre os distúrbios que se seguiram à notícia da morte do ativista na cidade de Baltimore. Algumas das linhas podiam ser parte de um relatório escrito já na segunda década dos anos 2000:

As condições sociais e económicas nas áreas pilhadas constituem um claro padrão de desigualdade dos Negros comparativamente com os Brancos (…). A nossa investigação chega à conclusão que os protestos em Baltimore podem ser atribuídos a dois fatores: racismo e opressão.

A indústria pesada do Rust Belt estava a deixar a cidade e, com ela, centenas de milhar de pessoas. Só na manufatura, Baltimore perdeu mais de 100 mil empregos entre 1960 e 1990. Para trás ficaram as pessoas que não tinham possibilidade de se mudarem, uma base de população ativa contribuinte mirrada e um tecido comercial e empresarial em farrapos.

Entre 1970 e 1980, a população de Baltimore decresceu dos 900 mil habitantes para os 780 mil. Em 2010 viviam na cidade 620 mil pessoas. Nos anos 70, a droga entrou em força na cidade de Baltimore, e alguns dos “carteiros” preferidos dos barões que dominavam o negócio eram crianças, que não seriam presas se fossem apanhadas e que também ganhavam bem menos que os adultos. Havia em Baltimore adolescentes “desempregados” com fortunas comparáveis à de grandes magnatas do imobiliário. “Tornou-se uma espécie de carreira. Na América as pessoas têm a mania que têm que ser muito ricas e muito famosas e procuram o caminho mais simples”, comenta David Jones.

Um mural com a cara de Freddie May, em Baltimore, um ano após a sua morte BRENDAN SMIALOWSKI/AFP/Getty Images

A este ciclo juntou-se a crise de 2008: os empréstimos impossíveis de pagar, as hipotecas, os negócios a fechar. “Hoje em dia há ruas e ruas de casas entaipadas, onde este negócio da venda de droga se faz às claras sem que ninguém tenha coragem de lá entrar”, continua Jones que considera essencial limpar a cidade porque, “se não, nunca mais teremos grandes empresas a regressar a Baltimore, apenas uma quantidade enorme de jovens desempregados a fazer fila pelos lugares no armazém da Amazon”.

Foi numa cápsula com todos este problemas que Freddie Gray cresceu. Uma análise do Departamento de Saúde de Baltimore, citado pela revista Slate, nota que, no bairro de Sandtown-Winchester, o desemprego afeta uma em cada cinco pessoas, e a criminalidade é duas vezes superior à registada no resto da cidade. Um terço das famílias vive na pobreza e metade dos agregados recebe menos de 25 mil dólares por ano. Há mais adolescentes presos deste bairro do que em qualquer outro em qualquer outra cidade do estado de Maryland.

Mas este fim-de-semana, diz Glee, também foi desenhado para “devolver às pessoas de Baltimore algum orgulho de pertencerem a esta cidade, que tem muitos recursos que as pessoas nem sabem que existem, além de uma comunidade bastante unida e preocupada e atenta aos problemas uns dos outros”. Para esta ativista, o “Cessar Fogo de Baltimore”, antes de acontecer, já é um sucesso. “A nossa intenção era por as pessoas a falar disto e esse objetivo foi atingido e ultrapassado por milhas. O entusiasmo é palpável, consegues ver a forma como a energia mudou, vês as pessoas cheias de expectativa para este fim-de-semana, há uma semente de esperança que já está a germinar”, diz.

A cidade tem várias iniciativas previstas para controlar os níveis de crime, tal como brigadas que atuam em ruas específicas, uma colaboração próxima com os agentes federais, programas de intervenção na escola, e milhares de dólares investidos em programas de reintegração dos presos na sociedade, mas não parece estar a resultar. Será porque os polícias, temendo eles mesmos a prisão, deixaram de patrulhar ruas e prender criminosos? É uma das teorias.

Em 2014, o presidente da Câmara de Nova Iorque, Bill De Blasio, criticou o Departamento da Polícia da cidade por causa da morte de Eric Garner, que morreu por ter sido asfixiado e o seu peito pressionado durante uma prisão particularmente violenta. Como resposta, a polícia organizou uma espécie de greve não oficial. Numa semana as prisões caíram 56%, e os mandados criminais cerca de 90%. No dia 1 de maio, a polícia de Baltimore também se mostrou algo desconfortável quando o chefe do Departamento, Anthony Batts, disse publicamente que os agentes tinham violado as regras quando prenderam Freddie Gray.

O sindicato culpou Batts publicamente pelos protestos que tomavam conta das ruas, e ele acabou despedido pelo Presidente da Câmara.

Ellen Glee não acredita que a polícia se esteja a escusar a fazer o seu serviço, simplesmente que a criminalidade é elevada e que os processos se acumulam o que dá a ideia de a justiça não está a ser feita.

“A América é inerentemente violenta”

Há menos de duas semanas, a presidente da Câmara de Baltimore, Catherine Pugh, lançou mais uma série de medidas para combater a violência. Na opinião de Pugh, “não há apenas uma forma de combater a violência na cidade e é preciso envolver toda a gente”.

O pacote de medidas envolve um reforço da capacidade tecnológica da polícia — dotando os carros-patrulha com computador portáteis, uma lei que criminaliza com pena obrigatória de prisão quem seja apanhado duas vezes com uma arma não registada e uma nova ação para promover o emprego: uma espécie de Instituto do Emprego móvel, com carrinhas que circularão pelas zonas mais complicadas da cidade informando os jovens quanto às possibilidades laborais mediante o seu grau de instrução, facilidade de transporte e zona de residência.

Mas nem sempre a polícia é sinónimo de paz, independentemente das suas intenções, e por vezes há membros de gangues que são os únicos que têm o poder de gritar “trégua!” e serem ouvidos. Pouco depois do funeral de Freddie Gray, quando a cidade entrou numa espiral de violência que não se via há anos, Ben Jacobs, repórter do diário The Guardian natural de Baltimore dava conta, durante os protestos, através do Twitter, que os gangues foram, naqueles dias, os únicos a conseguir impor à confusão “uma certa aparência de ordem”. Vários outros repórteres, incluindo do jornal local Baltimore Sun, falaram da “proteção” que receberam de homens conotados com o crime organizado. Enquanto isto, a polícia de Baltimore falava em “organização criminosa” para “neutralizar a polícia”.

O bairro onde Freddie May cresceu é o que, de todo o estado de Maryland, mais jovens envia para a prisão Chip Somodevilla/Getty Images)

“É complicado”, diz Jesse Milford, estudante de Contabilidade e Finanças na Universidade de Baltimore ao Observador pelo telefone. O pai é reformado da polícia. “Eu sei que os polícias fazem tudo o que podem e não querem maltratar ninguém, acho extraordinário ter que andar a dizer isto às pessoas mas entendo que o que passa para a comunicação social são apenas os momentos em que um ou dois polícias são violentos”.

Com 22 anos de Baltimore, Jess diz lembrar-se de uma cidade muito menos violenta, mas reforça o que outras pessoas de Baltimore também disseram: “Baltimore tem um sentido de comunidade muito forte, e toda mas toda a gente quer que as pessoas dos bairros mais complicados façam parte da vida da cidade”. Considera que tem que haver mais integração: “Só se tivermos alguma coisa é que achamos que temos alguma a perder”. Emprego, sempre o emprego, mas não qualquer emprego. “Têm que existir incentivos fiscais e outros e garantias do governo de que a criminalidade está controlada, para que haja empresas grandes que queiram aqui estabelecer-se. Não se pode esperar que venham para aqui grandes marcas quando os assaltos e os tiros são uma realidade diária.”

Jess considera que muitos dos problemas da cidade advêm de “anos e anos de segregação e incompreensão” entre “brancos e pretos”. Admite que pode parecer uma formulação simplista e frisa que não é culpa nem de uns nem de outros, mas “é assim” e volta ao tema da educação: “Se não dermos oportunidades exatamente iguais a toda a gente, incluindo aos que já foram condenados a penas de prisão para que encontrem outros caminhos que não o muito lucrativo mundo da droga, isto vai sempre ser esta bola de neve”.

Um ciclo que, na opinião de Ellen Glee, começou há séculos, na formação dos Estados Unidos como os conhecemos. A violência é “endémica” e “uma parte da nossa cultura”, refere a ativista. “Está na cultura americana, não é só aqui em Baltimore, somos inerentemente violentos, as armas, as guerras do século XX, a guerra da Secessão antes disso, a linguagem que utilizamos uns com os outros, a violência da nossa programação televisiva, o que valorizamos acima de tudo é a segurança e para isso estamos dispostos a tudo”, diz Glee. “Uma arma é apenas uma das muitas maneiras em que expressamos essa cultura centenária centrada na defesa violenta das nossas terras e dos nossos bens”, acrescenta.