No início do ano, o funcionário ligado ao River Plate que toma conta do mítico Estádio Monumental teve a genial ideia de ir vasculhar uns escritórios secundários que existiam no recinto. Ninguém ligava nenhuma a essa zona, que era uma espécie de local onde iam ficando pequenos cadáveres históricos do clube na forma de pastas e arquivos com umas fotografias e documentos de outra era. Sabendo da “descoberta”, os dirigentes da equipa argentina quiseram dar vida a esses pedaços de qualquer coisa e chamaram a dupla que está responsável pelo Museu. Grande parte tinha interesse zero. Mas ali, numa luta desigual para sobreviver aos ácaros, estava o documento que podia ter mudado a história do futebol mundial e que sobreviveu a 64 anos de esquecimento.

“Transferência do jogador Alfredo Di Stéfano para o clube de futebol Barcelona”, dizia uma folha já amarelada com o cabeçalho do Club Atlético River Plate. Batido ainda nas máquinas de escrever antigas que de vez em quando largavam um pouco mais de tinta nos espaços entre as palavras, tinha bem legível a data de 7 de agosto de 1953. E o que tinha? A confirmação final da transferência daquele que foi um dos melhores jogadores de sempre para o conjunto catalão, algo que nunca viria a acontecer e que chegou mesmo a envolver as mais altas patentes estatais da FIFA e de Espanha. Mas recuperemos este achado para explicar tudo o resto que se viria a passar mais tarde.

Como conta o La Nación, são mais de 30 páginas de documentos oficiais, telegramas e comprovativos de pagamentos entre quatro clubes, datados entre maio e setembro de 1953: os argentinos do River Plate, os colombianos do Millonarios – onde o avançado jogava nessa altura – e os espanhóis do Barcelona e do Real Madrid. “É uma operação tão complexa que ainda hoje se mantém num mistério”, argumenta a publicação. Ainda assim, há algo que fica ali clarinho: os blaugrana conseguiram mesmo comprar o jogador que viria a estrear-se em setembro desse mesmo ano pelos rivais merengues.

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O que se passou então de errado? A 2 de maio de 1953, o Barcelona assinou um papel onde dava o poder a Domingo Valls Taberner de negociar ‘La Saeta Rubia’ (‘A Flecha Loira’). O avançado estava no Millonarios, por cedência do River Plate, numa fase em que a Liga colombiana era uma espécie de El Dorado para quem queria fazer dinheiro no futebol. No entanto, depois de se ter filiado de novo na FIFA, isso ia acabar e todos os estrangeiros teriam de voltar às suas formações de origem. Que é como quem diz, em outubro de 1954, Di Stéfano seria de novo jogador do River Plate.

O Real Madrid estava também interessado no astro, mas foi o Barcelona que começou as negociações: perguntou pelo preço ao River, os argentinos pediram o equivalente em pesos o equivalente a 108 mil dólares, os catalães fizeram uma contraproposta de 87 mil dólares, metade a pagar na altura e a outra tranche em três prestações até ao final do ano seguinte. “Estamos muito gratos pelo acordo”, escreveu o presidente do River na altura, Enrique Pardo. Antes de 26 de julho, o dianteiro teria de apresentar-se no clube.

Os merengues entram a partir daqui na história. Falaram primeiro com o Millonarios e foram depois para o River, que assinou um acordo com o emissário do Real com os seguintes trâmites: se o Barcelona não pagasse até 11 de agosto o que tinha ficado acordado, o jogador seria do clube da capital espanhola. Antes dessa data estabelecida, a 7, os catalães liquidaram a verba e foi o próprio conjunto argentino a ratificar isso: “Senhores dirigentes do Barcelona, dirigimo-nos a vocês para comunicar que a Comissão Diretiva outorgou a venda do passe de Alfredo Di Stéfano para atuar na prestigiosa entidade amiga”.

No meio desta novela sul-americana, o jogador já se tinha recusado a jogar mais no Millonarios e aproveitou para conhecer aquele que seria o seu clube, o Barcelona, a cidade e o estádio, mas o Real Madrid continuava a batalhar no acordo com o Millonarios e o caso acabou por ir parar à FIFA e às mais altas patentes espanholas. A 15 de setembro, a FIFA acaba por aceitar a recomendação de Armando Muñoz Calero, antigo presidente da Federação Espanhola de Futebol e membro do órgão que tutelava o futebol mundial – e que teria nascido do General Mosquera, na altura ministro dos desportos do país –, e toma uma decisão salomónica: Di Stéfano jogaria dois anos no Real e dois no Barcelona de forma alternada, entre 1953/54 e 1956/57.

Entre muitos jogos políticos à mistura, os catalães consideraram sempre a situação indigna porque tinham tudo certo com o jogador em termos legais e o presidente chegou mesmo a pedir a demissão do cargo furioso com o que se estava a passar. Mas a ‘Flecha Loira’ estreou-se mesmo pelo Real Madrid, com exibições que até deixaram muito a desejar. Um mês e quatro jogos depois, um dos membros da Comissão de Gestão dos blaugrana, José Vidal-Ribas, assinou um comunicado em que renunciava aos direitos pelo jogador, sendo que os merengues pagaram ao Barça a verba adiantada ao River Plate mais o que tinha ficado acordado com os argentinos.

Tudo o resto é história: Di Stéfano tornou-se um dos melhores jogadores de futebol de sempre e, entre 1953/54 e 1963/64, marcou 418 golos em 510 encontros pelo Real Madrid. Ganhou oito Campeonatos, uma Taça de Espanha, cinco Taças dos Clubes Campeões Europeus consecutivas (sempre a marcar nas finais, incluindo um hat-trick em 1960 no 7-3 frente ao Eintracht Frankfurt), duas Taças Latinas e uma Taça Intercontinental entre vários títulos individuais como a Bola de Ouro, em 1957 e 1959. Foi cinco vezes o melhor marcador do Campeonato e em três ocasiões o artilheiro da Taça dos Clubes Campeões Europeus, naquela que foi uma das melhores equipas de sempre e que contava ainda com nomes como Kopa, Gento, Zárraga, Santamaría ou Puskas.

Hoje, 64 anos depois, percebe-se que tudo poderia ser diferente. No futebol espanhol e mundial. E se Di Stéfano, que morreu em 2014 aos 88 anos, tivesse mesmo ido para o Barcelona em 1953?