Inês Henriques ganhou a medalha de ouro nos 50 km marcha do Campeonato do Mundo e superou o seu próprio recorde mundial. Por tudo isto e muito mais, a atleta portuguesa vai ficar na história.

Em termos físicos, ninguém tem dúvidas: fazer a prova dos 50 km marcha é bem mais complicado do que tudo o resto. No plano mental, pode não ser bem assim. E a luta que Inês Henriques teve de travar ao longo de vários meses contra as instituições internacionais do atletismo foi quase tão desgastante como uma competição. Ganhou, ganhou e, este domingo, voltou a ganhar. Por trás da grande conquista em Londres esteve outra tão grande ou maior.

Pela primeira vez, os Campeonatos do Mundo de atletismo contaram com uma prova feminina nos 50 km marcha. No setor masculino, desde a primeira edição do evento, em Helsínquia, no ano de 1983, que a prova existia. Nas mulheres, a marcha estava restrita aos 20 km. Por isso, e mesmo tomando em linha de conta que participaram apenas sete mulheres na prova, foi um momento histórico.

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João Vieira, o melhor marchador português, admitiu antes da prova que era algo condenado ao fracasso porque envolvia só sete atletas contra 50 que iriam começar a vertente masculina. Tem a sua razão. Mas este capítulo não foi o fim mas sim o início de algo que contou com muitas e muitas páginas escritas como introdução para uma nova era.

No ano passado, também devido a algumas vozes que se iam fazendo ouvir sobre a possibilidade de abrir as corridas de 50 km marcha às mulheres, a Associação Internacional de Atletismo (IAAF) teve uma decisão, no mínimo, polémica: as atletas femininas poderiam participar nessa variante mas teriam de correr com os homens e nas mesmas regras, nomeadamente a nível de marca de qualificação para os Mundiais (4.06.00). Trocado por miúdos, era uma forma mais ou menos disfarçada de dizer “50 km marcha femininos, não”.

Aos 36 anos (fez 37 anos em maio), Inês Henriques, do Clube de Natação de Rio Maior, percebeu o sinal. Mas nem por isso se acomodou ao mesmo. Atleta de marcha desde os 12 anos (ainda teve uma experiência no basquetebol, mas não durou muito), é um dos maiores expoentes desta geração de marchadoras que começou com Susana Feitor (que ganhou um bronze em Mundiais nos 20 km marcha) e tem também Ana Cabecinha e Vera Santos. Vai daí, quis arriscar o impossível. E a 15 de janeiro de 2017, em Porto de Mós, foi à guerra entre os homens.

“Nunca pensei que conseguisse fazer este resultado”, assumiu. O tempo de 4.08.25, na altura não homologado apesar de ter todos os controlos de urina e sangue para tal, superou a marca da sueca Monica Svensson (4.10.59), que também não era reconhecido como recorde. Foi uma prova duríssima, sobretudo nos quilómetros finais, mas aguentou-se bem. “E no dia a seguir estava bem, fui às massagens, depois conduzi até Lisboa, fiz dez quilómetros de corrida e fui para o jacuzzi”, contou depois ao Expresso. Mas ao mesmo tempo que Inês Henriques, que adiou a maternidade prevista para depois dos Jogos de 2016, provava toda a classe nas estradas, outra luta estava a ser travada fora delas. E chegou a ameaçar meter tribunais ao barulho.

Várias federações começaram a juntar-se para combater as regras absurdas que tinham sido colocadas pela Associação Internacional de Atletismo e a americana Erin Talcott quis levar o caso para o Tribunal Arbitral do Desporto. Entretanto, em junho, o recorde mundial foi mesmo reconhecido e, a três semanas dos Mundiais, o tempo de qualificação subiu para os 4.30.00. Acrescentavam-se assim Nair da Rosa e Susan Randall, e eram sete as atletas que iriam marcar presença nesta primeira prova de 50 km marcha em Campeonatos do Mundo.

Pelo meio, a portuguesa realizou ainda duas provas nos 20 km marcha no México: ficou no segundo lugar em Cuidad Jérez e na quarta posição em Juárez (Ana Cabecinha terminou aí em terceiro), ambas a contar para o Circuito Internacional de Marcha. Mas continou a treinar para os 50 km, mesmo quando nada mudava e via o pedido de wild card para os Mundiais ser altamente improvável.

A glória de Inês Henriques: medalha de ouro com recorde mundial nos 50 km marcha dos Mundiais

Inês Henriques, licenciada em enfermagem, não é a atleta mais rápida nos 20 km marcha (esse posto é nesta altura ocupado por Ana Cabecinha), mas consegue manter uma fantástica regularidade durante as provas de 50 km e é por isso que, com o recorde mundial estabelecido esta manhã de domingo em Londres, passou a deter as duas melhores marcas de sempre na distância. E vai ficar na história.

Vai ficar na história porque ganhou o ouro na primeira edição dos 50 km marcha femininos em Mundiais.

Vai ficar na história por ter o primeiro recorde mundial homologado pela Associação Internacional de Atletismo nos 50 km marcha.

Vai ficar na história por ter a melhor marca de sempre nos 50 km marcha.

Vai ficar na história por ter conseguido sagrar-se a décima atleta portuguesa a ganhar uma medalha em Campeonatos do Mundo, segundo na marcha depois do bronze de Susana Feitor em 2005 (Helsínquia).

“Estive quase em casa, ouvi muitos portugueses”: a reação da recordista e campeã mundial Inês Henriques

Vai ficar na história por ser o rosto das atletas femininas que ganharam uma guerra com a Associação Internacional de Atletismo para terem os mesmos direitos dos atletas masculinos.

Por tudo isto, por todos os títulos internos e por muito mais, Inês está de parabéns: a luta valeu a pena. E ganhou o seu lugar na história.