O sol ofusca a figura que se agiganta. Pé ante pé, o elefante mecânico caminha a passo lento para que todos o possam apreciar. À primeira vista é difícil imaginar-lhe o coração mecânico e a pele de madeira, mas o animal que parece ter caído, em novo, num caldeirão de poção mágica é, na verdade, uma das “Machines de l’île” (“Máquinas da Ilha”, em português). Os antigos estaleiros navais da Ilha de Nantes são, desde 2007, uma espécie de parque de diversões e uma das principais atrações da cidade francesa.

Talvez mais conhecida por ser o berço do escritor Júlio Verne (1828-1905), a antiga capital da Bretanha (região da qual deixou de fazer parte há cerca de 60 anos) já teve muitas vidas e, de todas elas, ergueu-se mais forte e atrativa: foi um antigo porto francês no mercado de escravos e chegou a ser dominada pela indústria naval que, depois extinta, deixou uma herança menos vistosa. Nantes, que já foi considerada a “Veneza do Oeste” por ser lugar de confluência dos rios Loire, Erdre e Sévre, é uma sobrevivente do seu próprio fado e, atualmente, um destino rico em arte e em experiências.

Centro e monumentos históricos

É impossível perdermo-nos em Nantes. No chão está desenhada uma linha verde que, ao longo de 12 quilómetros a serem percorridos a pé, leva o visitante aos principais marcos da cidade, incluindo a Catedral de São Pedro e São Paulo, que demorou quase 500 anos a ser construída e que, com 37,50 metros de altura, está mais perto do céu do que a Catedral de Notre-Dame de Paris.

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O Castelo dos Duques da Bretanha, cuja construção foi concluída por Ana da Bretanha — a mulher que foi, por duas vezes, rainha de França e é uma das figuras imortais da cidade —, está naturalmente incluído nesse circuito. A estrutura fortificada e rodeada de fossas, no Quartier Bouffay, destaca-se facilmente no centro da cidade e, no interior, surpreende pelos muitos andares e salas desenhadas ao estilo renascentista, ocupadas por exposições do Museu da História de Nantes, que ajudam a contar as imensas peripécias desta metrópole francesa.

Vistas bem as coisas, Nantes teve várias vidas. Renasceu das cinzas mais do que uma vez e, hoje, mostra-se vaidosa ao mundo. Orgulha-se do seu percurso, mas não esquece os erros do passado: a cidade foi em tempos um dos mais importantes portos europeus no tráfico de escravos e o Memorial à Abolição da Escravatura é uma recordação permanente dessa realidade. Criado em 2012, coloca diante dos nossos pés quase 2.000 placas de vidro com referência aos navios que daqui partiram em expedições esclavagistas, uma mensagem que continua numa galeria subterrânea, sobranceira ao rio — um caminho de 90 metros soturno q.b, que faz-nos obrigatoriamente pensar sobre quem um dia nasceu sem o direito à liberdade.

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A linha da cor de uma alface fresca leva os curiosos a conhecer ainda as ruas e ruelas típicas de Nantes, povoadas por cafés e suas esplanadas, mas também por lojas gourmet, apostadas em vender algumas das iguarias tradicionais de que os “nanteses” tanto se orgulham— são exemplo os biscoitos amanteigados que se desfazem na boca, que se vendem, por exemplo, no L’Atelier St Michel. Do doce ao salgado, vale a pena provar a galette tradicional, com um ovo estrelado disposto bem no centro.

Um dos caminhos sugeridos pelo famoso traço, que vai sofrendo algumas alterações por altura do verão, é pela Passage Pommeraye, no Graslin Quartier, uma galeria coberta do século XIX inspirada nas suas semelhantes parisienses. A passagem entre a parte baixa e alta da cidade está repleta de lojas de diferentes feitios e é caminho certo para chegar à famosa La Cigale, virada para a também digna de atenção Praça Graslin. O salão de chá que também é um restaurante abriu em as portas em 1895 para ser, até hoje, um bonito exemplo de Art Nouveau. Madeira pintada, cerâmica e vários ornamentos decoram as paredes do espaço que, de tão opulente, talvez encontra semelhante português na “A Brasileira” ou na “Pastelaria Versailles”.

Um “ninho de cultura”

A indústria naval, que se afundou no final da década de 1980, ajudou a moldar o cenário em tempos pobre e escuro da cidade. Para fazer de Nantes umas das metrópoles mais atrativas de França foi preciso submetê-la a um face lift, trabalho que ficou a cargo dos inúmeros artistas que já deixaram a sua marca. Exemplo disso é o “Le Nid” (“O ninho”, em português), que fica no alto da Torre de Bretanha, uma estrutura sensaborona que está a 144 metros do chão e que se distribui ao longo de 32 andares.

De fora, pouco é o interesse em conhecê-la, mas a mais-valia do edifício está no miradouro que oferece a melhor vista 360º sobre a cidade, com os telhados a esculpiram, a olho nu, um quadro de degradés que se encaminham em direção do rio. Vale a pena a espera na fila nem sempre curta para aqui entrar, até pela cegonha XXL, uma obra de arte que desemboca num atrativo bar, em que os respetivos ovos fazem as vezes de bancos onde nos podemos sentar. O “Le Nid” é uma obra de arte do artista Jean Jullien.

Ana Cristina Marques/Observador

A Ilha de Nantes e o estuário artístico

Figuras animalescas de grandes proporções parecem ser tendência em Nantes. O elefante megalómano, apresentado no início do artigo, anda a 3km/h, tem 12 metros de altura e pode dar boleia a um número limitado de pessoas. Pais e filhos esperam na fila para puder subir a bordo de uma criatura que facilmente nos transporta para o imaginário criado por Júlio Verne, escritor que, nem de propósito, nasceu e viveu em Nantes. Mas o bicho orelhudo que anda sempre de tromba(s) não é a única máquina ou atração do género na “Machines de l’île”, na Ilha de Nantes.

A “Galeria”, que ocupa uma estrutura industrial antiga, será no futuro habitada por outras criaturas XXL robotizadas, além dos já existentes aranhiço e pássaro de dimensões semelhantes, que podem ser comandados manualmente. Não muito longe está o “Carrossel dos Mundos Marinhos” que, uma vez no interior, sugere uma outra viagem ao universo criado por Verne, de tão peculiares que são as criaturas marinhas que dele fazem parte.

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A Ilha de Nantes, no outro lado do rio, tem mais do que à partida possamos pensar. Durante dez anos foi votada ao abandono e, agora, começa a despontar como um dos locais mais artísticos de toda a cidade. Exemplo disso é o projeto “Estuaire”: desde 2007 têm sido criadas instalações com a assinatura de artistas de renome ao longo do rio Loire; ao todo, existem 30 obras de arte contemporânea entre Nantes e Saint Nazaire. O projeto arranca na Ilha de Nantes, onde é possível ver os edifícios de nome “Air” e “Mètre à Ruban” — enquanto um tenta desvendar a relação entre a música e a escultura, estando todo ele envolto por uma espécie de carapaça de metal, o outro retrata utensílios arquitetónico maximizados.

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Mas mais emblemático são os “Les Anneaux”, isto é, 18 grandes anéis dispostos num passadiço junto ao rio e que à noite se iluminam de vermelho, azul e verde para todo o “nantês” ver. A obra da autoria de Daniel Buren pretende representar a ligação entre duas eras: o passado naval glorioso da cidade e a arquitetura e projetos urbanos de hoje em dia, uma dualidade presente na dupla perspetiva visível na obra. Ao longo do rio, há dois trabalhos que saltam à vista pela sua profunda irreverência: “Le Pendule”, o pêndulo gigante construído numa antiga fábrica de cimento, e “La Maison dans la Loire”, uma casa (não habitável) mergulhada em pleno rio. Já a “Serpent D’Océan” consiste num enorme esqueleto de uma serpente, construída de forma a surgir do rio como se de um achado arqueológico se tratasse.

Clisson e o vinho Muscadet

Ainda antes de abandonar Nantes vale a pena apanhar o ferry para conhecer Trentemoult, do outro lado do rio. A vila piscatória é feita de ruas estreitas, casas coloridas de três andares — não fossem o rio Loire invadir o primeiro andar em alturas de cheias — e ainda alguns restaurantes à beira-rio onde dá gosto almoçar ou, simplesmente, beber um copo. E por falar nisso, não vale ir a Nantes sem provar o famoso vinho Muscadet.

As vinhas marcam a paisagem ao longo das margens do rio Loire, a norte. Ao todo, são 11.500 hectares de Muscadet, que ocupam a maior área vínica no Vale do Loire — o vinho tão popular é feito a partir de uma única casta (Muscadet) e, uma vez provado, mostra-se leve, frutado e aromático. Mas para o conhecer melhor, nada como visitar o Museu da Vinha, cuja exposição não só explica todos os estágios de produção da bebida de Baco, como termina com uma prova de Muscadet. Não muito longe está Clisson, uma pequena cidade com um charme imbatível. Os vestígios medievais estão lá, seja pelas ruínas do castelo ou pela catedral que também leva o nome Notre-Dame, mas o que mais impressiona é a arquitetura inspirada na região italiana da Toscana — não é por acaso que lhe chamam de “Pequena Toscana”.

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Como ir (e algumas recomendações)

A Transavia voa diretamente para Nantes a partir de Faro, desde 39 euros, Funchal, a partir de 86 euros, Lisboa, desde 37 euros, e Porto, a partir de 35 euros (voos só de ida; valores de época baixa). O aeroporto de Nantes Atlantique (NTE) fica a 15 minutos de autocarro do centro da cidade.

Uma simulação feita para uma viagem no início de outubro, por exemplo, permite perceber que a Ibéria voa para Nantes a partir de 84 euros, a Tap faz o mesmo voo desde 146 euros, enquanto a Air France fica nos 112 euros (viagens só de ida).

O Observador viajou a convite da Transavia e da Le Voyage à Nantes.