Mesmo entre os britânicos que apoiaram — e continuam a apoiar — um Reino Unido na União Europeia (UE) nunca houve dúvidas de que a EU é principalmente um veículo para a prosperidade comercial e económica, e só depois um bloco com ideias políticas, culturais e sociais partilhadas entre os estados-membros. É aquela tal questão da insularidade que nunca se dissolveu, nem com mais de 40 anos de pertença ao bloco dos (agora) 28, em breve 27.

Chegada a altura mais apertada das negociações — falta pouco mais de ano e meio para o deadline — muitas questões ainda estão em aberto. Há um clamor concertado que pede clareza, principalmente da parte das empresas que não sabem como será o comércio depois do Brexit, mas também dos cidadãos europeus que ainda não estão no país há tempo suficiente para pedirem residência. Na tentativa de esclarecer pelo menos uma parte da população, o governo conservador de Theresa May lançou esta semana dois documentos (e tem vários outros preparados): um sobre o futuro dos acordos aduaneiros e outro sobre a questão da fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte.

Os “homens laranjas”, na tradicional parada de dia 12 de julho, que marca o dia em que o rei protestante William of Orange derrotou o católico rei James. Uma lembrança anual que os católicos — e nacionalistas — veem como uma provocação Jeff J Mitchell/Getty Images

No dia 29 de março de 2019 não haverá mais tempo nem espaço para negociações mas há questões tão complicadas que a sua resolução deverá perpetuar-se além disso — dois ou três anos além disso. Um desses novelos é a questão das tarifas aduaneiras. A pedido da EU, o governo britânico apresentou na terça-feira um documento que apresenta caminhos para manter os acordos comerciais existentes com a UE, de forma mais ou menos inalterada. As 16 páginas do documento, contudo, são de leitura difícil, e as perguntas que ficam são mais que as respostas oferecidas. O próprio David Davis, ministro para o Brexit, admitiu, na Radio 4 da BBC, que a confusão era “deliberada”, de forma a oferecer uma “ambiguidade construtiva”.

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No entanto, a embaixadora do Reino Unido em Portugal, Kirsty Hayes, está confiante que o documento é um “excelente primeiro passo” para as negociações que estavam previstas para o início do outono. Na tarde de quarta-feira, contudo, a cadeia televisiva britânica Sky dava conta de um possível atraso de quatro meses — indicando o Natal como a altura provável para o arranque em força, depois das eleições na Alemanha. As fontes contactadas pela Sky, dentro do governo britânico, estão esperançosas que o novo governo alemão seja “mais pró-negócio” e que o “apaixonado federalista” que é Martin Schulz não chegue ao poder.

Na embaixada do Reino Unido em Lisboa, Hayes fez uma pequena exposição dos principais pontos do documento que propõe uma “união aduaneira temporária”, um modelo a ser adotado depois da efetiva saída porque, até março de 2019, tudo continua igual. Como é que esse acordo funcionaria em prática ainda não se sabe. Por exemplo, no documento do governo lê-se que:

O governo quer explorar um modelo de comércio com a UE que garanta que tanto as empresas quanto as pessoas dos dois lados só teriam que se ajustar às mudanças uma vez. Isto pode ser conseguido através de uma ‘aliança próxima e continua’ por um período limitado ou uma nova, mas também limitada, forma de comércio, baseada numa tarifa externa partilhada e sem os processos aduaneiros ou tarifas entre o Reino Unido e a União Europeia”.

“A ideia deste documento é encurtar barreiras e diminuir fricções no comércio e oferecer alguma clareza tanto aos nossos parceiros europeus como também às empresas privadas que pretendem produzir e exportar para a Europa e vive-versa”, disse Hayes admitindo, contudo, que muito ainda está por explicar que há coisas que só ficarão claras “com mais tempo”.

A união existente não permite aos membros da UE negociar acordos comerciais unilateralmente com outros países que poderiam pedir uma diferente tarifa de entrada dos seus produtos. O que é normal dado que o propósito de uma união aduaneira é exatamente que a taxa imposta às mercadorias importadas para aquele mercado comum seja a mesma, independentemente do país a que se destinam. Por exemplo, os carros que chegam à UE de fora são taxados a 10%, enquanto que, sobre o café, o importo é 7,5%.

O documento parece ignorar este detalhe.

Independentemente do resultado das negociações, o governo britânico terá que ter um novo regime pronto para desenrolar em março de 2019: é que a maioria das leis que regulam os acordos aduaneiros estão pregadas à lei europeia, que deixará de ser lei depois dessa data, apesar de o governo já ter aprovado uma lei que absorve toda a lei europeia para “dentro” da lei britânica depois da saída.

O que isto quer dizer é que o corpo legal herdado da UE ficará em vigor no Reino Unido — coisas como direitos dos trabalhadores em regime part-time ou obrigações com a redução da poluição — até que os deputados britânicos escolham mudá-lo. Em vez de legislar sobre tudo o que a Europa já implementou como lei no Reino Unido, os deputados, num processo inverso, anularão aquelas leis que não estejam em concordância com o novo caminho que os britânicos escolheram — a livre circulação de pessoas será uma das primeiras leis s serem alteradas. As leis aduaneiras existentes num Reino Unido ex-europeu não são suficientes para criarem um regime próprio logo o governo terá que apresentar uma nova lei que direcione as empresas num futuro pós-Brexit.

Duas fórmulas

Quando pressionado pelo jornalista da Radio 4, David Davids acabou por admitir que o ideal mesmo era manter a união aduaneira com a União Europeia ao mesmo tempo que garantia, da parte da UE, a autorização para assinar os seus próprios acordos com países fora da UE. Mas também já não é a primeira vez que chegam ecos de Bruxelas, em forma de avisos, de que sair da UE não pode ser melhor do que estar lá dentro, sob perigo de uma revolta geral.

Segundo o documento, a união aduaneira poderá continuar de uma das seguintes maneiras: ou através de um acordo “extremamente simplificado” cuja ideia é mitigar os efeitos de uma imposição abrupta de todas as fronteiras antigas ou através de “uma parceria completamente nova” com a União Europeia.

O Reino Unido tem como objetivo facilitar as negociações com a União Europeia e implementar, unilateralmente, melhorias ao nosso regime doméstico”

A promoção de um fluxo livre de comércio em ambas as direções entre o Reino Unido e a União Europeia também iria exigir que a UE implementasse, nas suas fronteiras com o Reino Unido, os mesmos acordos”.

Esta “parceria”, admite Hayes, “é inovadora, mais ambiciosa e nunca foi testada” e por isso será preciso “trabalhar muito e sermos muito imaginativos”. Esta opção removeria por completo qualquer necessidade de verificação das mercadorias nas fronteiras, sendo que o regime “novo” significaria que o Reino Unido “copiaria” as tarifas que a EU aplica a mercadorias com destino aos estados-membros.

Por exemplo, um telemóvel que chegue ao aeroporto de Heathrow poderia ser colocado num camião para Paris sem ter que passar outra barreira física porque qualquer tarifa seria paga ao Reino Unido e depois transferida para os cofres de Bruxelas. Seriam precisas formas de “monitorizar” o caminho dessas mercadorias para evitar que mercadoria destinada apenas ao Reino Unido não iria parar ao continente. Tal como as tarifas também a qualidade e segurança dos produtos teria que ser avaliada no Reino Unido, já que a Europa tem certos “standards” de admissão de produtos que não é certo se mantenham no Reino Unido depois da saída.

O ministro britânico para o Brexit, David Davis, que não coloca de lado que o Reino Unido tenha que continuar a pagar, depois da saída formal, para continuar a ter acesso a algumas regalias da união aduaneira. THIERRY CHARLIER/AFP/Getty Images

Um dos grandes problemas dos apoiantes da saída era precisamente a quantidade de restrições e “fita vermelha” que a Europa exigia às empresas que queriam fazer negócio com o bloco.

Mas esta opção tem um problema: será preciso muita boa-vontade dos restantes países da União Europeia porque seriam dadas ao Reino Unido as tais vantagens da união de tarifas enquanto permitiria negociações com outros países fora da UE. Além disso, todos os países teriam que confiar que as taxas ficaram de facto retidas e seriam transferidas depois para cada país.

Quando chegámos à importância das exportações britânicas e ao peso que elas tem na balança comercial (44% das exportações são para o bloco) a embaixadora diz que “é preciso parar com essa ideia de que um acordo da UE com o Reino Unido ajudaria o Reino Unido mas prejudicaria a Europa porque a balança comercial está desequilibrada em nosso favor e não é do interesse de ninguém ter atrasos nos portos e uma quantidade imensa de burocracia”. A EU, de facto, vende mais quase 80 mil milhões de euros ao Reino Unido do que aquilo que eles exportam para o bloco.

A outra opção é a tal “alta simplificação” dos acordos aduaneiros o que significa que o Reino Unido sai da união mas simplifica as passagens de mercadorias entre o Reino Unido e os restantes 27 países do bloco. Uma forma de atingir isto é desenvolver tecnologia que, por exemplo, registe a matricula de um camião num sistema de “via verde” que faça ligação a uma base de dados com o tipo, peso e descrição das mercadorias, que as empresas teriam que inserir na base antes de porem a mercadoria “ao caminho”, eliminando a necessidade de parar esses veículos na fronteira.

Durante a fase de transição, o Reino Unido terá exatamente as mesmas restrições à assinatura de acordos bilaterais como até aqui. Novos acordos alfandegários são necessariamente incompatíveis com a observação das tarifas em vigor na Europa, é o que os negociadores da UE estão sempre a frisar. E os apoiantes da saída, da “recuperação da soberania” não parecem muito contentes com estas cedências.

Fantasioso ou exequível?

Nigel Farage, ex-líder do Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP), que liderou a campanha para a saída do país da UE, já se mostrou impaciente: “não há dúvida que durante este período de transição, o livre movimento de pessoas vai continuar, o Tribunal Europeu vai continuar a emitir pareceres sobre a forma como as empresas britânicas conduzem os seus negócios e, claro, vamos continuar a pagar um montante de ‘pertença’ como até aqui. Nenhuma destas coisas são aceitáveis para quem votou pela saída, de todo”, disse.

A primeira-ministra britânica, em conferência de imprensa em uma das últimas cimeiras em que participou, em junho de 2017, um ano depois da saída do Reino Unido da UE AURORE BELOT/AFP/Getty Images

A questão do “deve e haver” é particularmente espinhosa. A UE quer que o Reino Unido pague parte do “buraco” que se abrirá nas finanças do bloco depois da sua saída — e quer um acordo que assegure que todas as promessas que o Reino Unido fez durante o seu período como estado-membro são cumpridas, mesmo que esse pagamento seja feito por parcelas. Se o Reino Unido se recusar a pagar, a UE pode impedir o acesso do país à união aduaneira, o que os deixará à mercê da enorme Organização Mundial do Comércio, o que significaria o fim da ligação ao mercado único e, assim, um imposto sobre os produtos britânicos que não existe agora dentro dos acordos de comércio livre que a Europa — e, assim, o Reino Unido — mantém com mais de 50 países.

Mas neste caso a Europa também sofre: ou se pede mais dinheiro aos países mais ricos ou se corta o orçamento, sacrificando milhares de projetos e milhões de euros enviados todos os anos aos estados-membros.

Como membro da UE, o Reino Unido já concordou em colaborar em projetos que só serão implementados entre 2019 e 2025, incluindo planos para a construção de estradas e caminhos de ferro. Não é possível saber exatamente a fatura final porque se o Reino Unido ficar, como parece ser possível, durante pelo menos dois anos dentro da união aduaneira, terá que continuar a pagar para o bolo, o que o próprio David Davis já admitiu, e, assim, ir reduzindo o remanescente.

O valor está neste momento à volta de uns estratosféricos 100 mil milhões de euros, explica o diário britânico The Guardian. E sem a promessa de pagamento, nada feito em relação ao resto, como escreveu no Twitter o coordenador do Parlamento Europeu para os assuntos relacionados com o Brexit, Guy Verhofstadt. O mesmo que não teve quaisquer pruridos em apelidar de “fantasia” as expectativas do Reino Unido quanto à união aduaneira.

A Comissão Europeia alinha, dizendo que as negociações sobre o futuro comercial só podem começar quando tiver sido feito progresso suficiente nos três assuntos essenciais: o estatuto dos mais de três milhões de europeus que vivem no Reino Unido, o pagamento do montante devido — no entender da UE — e os problemas da fronteira na Irlanda. Precisamente o mesmo que diz Michel Barnier, chefe das negociações com o Reino Unido por parte da UE.

Mas o governo considera estas expectativas realistas e o secretário de estado para a Irlanda no Norte, James Brokenshire, disse que os planos do governo para minimizar os controlos fronteiriços entre a Irlanda (UE) e a Irlanda no Norte (parte do Reino Unido), já que a reintrodução de barreiras físicas entre os dois país traz de volta memórias dolorosas dos tempos violentos dos anos 80 e 90, eram “realistas”.

As autoridades britânicas defendem que haja alguma “flexibilidade e imaginação” a gerir a questão. Desde logo, que a fronteira seja também ela “imaginária”. O documento defende que não exista uma fronteira física, havendo livre circulação entre as duas Irlandas, com alguns ajustes aduaneiros.

De acordo com a Reuters, cerca de 30 mil pessoas atravessam esta fronteira todos os dias sem controlos ou taxas aduaneiras. A questão é particularmente sensível, já que, antes do acordo de paz em 1998, morreram mais de 3600 pessoas em conflitos entre a maioria protestante (defensora que a Irlanda do Norte pertencesse ao Reino Unido) e a minoria católica (pela independência ou integração na República da Irlanda.

No documento que servirá de guia para a nova ronda de negociações, o Governo britânico defende que não existam “infra-estruturas físicas”, nem qualquer posto de controlo entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte. “Ambos os lados precisam mostrar flexibilidade e imaginação quando se trata da questão da fronteira na Irlanda do Norte”, afirmou uma fonte do governo britânico citada pela Reuters.

Mas também aqui espreita um dos maiores problemas que sempre nortearam as convicções de quem pedia mais controlo sobre as fronteiras. Se não há fronteira entre um país da UE, ao qual qualquer pessoa dos 27 pode aceder, e o Reino Unido, o que impede qualquer europeu de viajar até à Irlanda e entrar depois no Reino Unido? “Ainda não há detalhes mas o que os britânicos querem é poder escolher quem entra como imigrante no país.

Espera-se um futuro estável e vibrante e os nossos representantes estão extremamente informados sobre todos os pormenores mas ainda não sabemos qual será o modelo que será aplicado”, disse a embaixadora que aproveitou ainda para reforçar a ideia de que o governo britânico está empenhado em garantir que a vida das comunidades emigrantes no Reino Unido sofrem as mínimas alterações possíveis.