Nesta 25ª edição do Vodafone Paredes de Coura regressaram, pela terceira vez, as sessões de leitura protagonizadas em duo, no Palco Jazz na Relva, à hora do almoço. A poesia voltou ao festival com memórias de família, histórias vividas na primeira pessoa e diversas obras de autor, entre clássicos e contemporâneos. E também houve tempo para leituras apaixonadas, entre a melancolia e a revolta com o estado das coisas no mundo em que vivemos.
Ontem foi a vez da dupla formada por Miguel Guedes e Marta Ren encantar a plateia de festivaleiros, junto à margem do rio, inundada de vida, cor e muitos sorrisos.
Alexandre O’Neill, Vinicius de Moraes, Edwin Morgan, Sylvia Plath, Leonard Cohen, Pablo Neruda, Camané, Ruy Belo, Maria Teresa Horta, Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Bob Marley figuram entre os autores escolhidos pela dupla portuense.
O momento dedicado ao jamaicano foi, de resto, um dos mais intensos da sessão quando Marta incitou o público a acompanhar o refrão: “War in the east / War in the west / War up north / War down south”. “War” permanece até hoje como um dos mais fortes hinos à paz. “Precisam de almoçar?”, soltou Marta Ren perante a apatia de alguns na plateia. Puxaram por eles, num grito de revolta que nos parece mais atual e pertinente do que nunca: “As we are confident in the victory of good over evil / Good over evil, good over evil, good over evil.”
Falou-se dos recentes acontecimentos de Charlottesville e do retorno civilizacional. Miguel Guedes conduz a reflexão da plateia a um dos pontos altos da sessão: “Há um palhaço na Casa Branca, mas a questão fundamental é perceber como é que ele lá chegou?”
A seguir, Miguel disse “A mão”, da polaca Wisława Szymborska, um poema simples e breve que nos faz pensar como podem apenas 27 ossos ser tão capazes de escrever a mais bonita história de amor, como de revelar a face mais cruel da humanidade.
Marta tentou recitar a belíssima letra de “Smiling Faces”, um dos temas incluídos no novo álbum, mas não resistiu aos apelos e acabou por cantar mesmo a capella. Entre o público entusiasta, muitos festivaleiros iam dando réplica aos artistas, pedindo-lhes que cantassem algumas das obras, numa das ações que regista cada vez mais notoriedade na programação do festival.
A artista contou algumas histórias vividas em Paredes de Coura, como a da primeira atuação com os Sloppy Joe, no ano 2000. “Foi um sonho realizado”, tocar antes de Mão Morta, Coldplay, Flaming Lips e depois ver os Mr. Bungle de Mike Patton, uma antiga atração desde os tempos de Faith No More.
O vocalista lembrou também a primeira atuação com os Blind Zero, em 1995, e depois em 1998 com os Red House Painters como cabeça de cartaz. Acabou mesmo por partilhar um texto que escreveu sobre Paredes de Coura, inspirado numa notícia de jornal que destacava o pormenor da abertura do concerto de Blind Zero ao som de “Blue Velvet”, a canção interpretada por Isabella Rossellini, que faz parte da banda sonora do filme com o mesmo nome, assinado por David Lynch. “A verdade é que só em Coura alguém pode reparar na beleza, subtileza e acerto da escolha porque também eu, antes de entrar em palco, senti como aquela canção luminosa pela voz quebrada, sensual e imperfeita da Isabella Rossellini se colava a Coura naquele momento como a minha segunda pele.”
Terminaram com a letra da canção de Bob Dylan, “The Ballad of a Thin Man”, uma das favoritas de Miguel Guedes, num tributo sentido ao primeiro Nobel da Literatura entregue a um músico.
No final, Miguel mostrou-se satisfeito com a reação da plateia, enquanto Marta Ren confessava que “é muito mais fácil cantar qualquer coisa de improviso do que recitar poesia”, contente com este desafio colocado pela Vodafone. Para ela “não há palavras difíceis de cantar”.
O vocalista dos Blind Zero já tem participado em sessões de poesia, mas neste caso havia a expectativa de ver como iria reagir o público num contexto tão particular. Entre o drama da perda e a angústia do futuro humano, as escolhas do músico portuense foram orientadas pelo romantismo mais negro, numa poesia soturna e mesmo depressiva em alguns casos. O artista assumiu o risco de “dizer coisas tristes com melodias bonitas”, ainda por cima neste cenário tão idílico nas margens do rio Coura, naquela clareira entre as árvores.
Marta Ren tem andado fora do país com os Groovelvets a promover o disco de estreia, Stop, Look, Listen, em vários concertos realizados na Europa desde o final do ano passado. A escolha dos textos foi sendo preparada à distância, mas no palco, a cumplicidade e empatia dos dois músicos, foi evidente e contagiante.
Alinhada com o discurso em palco, no final da sessão a cantora mostrou-se preocupada com o facto de “as pessoas mais inteligentes e com mais formação estarem atrás de um ecrã, enquanto as pessoas mais estúpidas e ignorantes estão a vir para a rua”. É urgente que a inteligência saia à rua e vença o combate contra a ignorância e o preconceito.
Miguel Guedes contou-nos ainda que “ouvia sempre os discos enquanto lia as letras de cantautores como Bob Dylan, Bruce Springsteen ou Tom Waits, por isso a poesia sempre esteve muito presente na dimensão musical do que escutava.”
Encontro de Irmãos
A sessão inaugural das sessões de leitura Vodafone Vozes da Escrita decorreu na 5ª feira e teve os irmãos Wallenstein como protagonistas. Tomás, vocalista e letrista dos Capitão Fausto, e Catarina, atriz de múltiplos talentos já firmados no teatro, no cinema e em várias produções para televisão. Uma cumplicidade partilhada no palco, ao ritmo da poesia dita com enlevo por Catarina, cruzada por histórias como a da “Célebre Batalha de Formariz”, contada por Tomás. À medida que as palavras desfilavam, crescia a satisfação dos artistas perante os silêncios e a atenção da plateia espalhada pela relva, ao sol das 13 horas.
A seleção, feita a dois, incluiu obras de Florbela Espanca, Eugénio de Andrade, Alberto Caeiro, Leonard Cohen e Vinícius de Moraes, com “O dia da criação” a reclamar os dotes da atriz em matéria de interpretação, graças à repetição exaustiva da frase “Porque hoje é sábado”. Outro dos momentos marcantes foi a leitura de textos escritos pelo avô dos artistas, Carlos Wallenstein. Esta foi também uma oportunidade para conhecer mais a fundo as obras completas do autor, que deixou um vasto espólio de poesia, contos, crónicas e peças para teatro radiofónico.
No final da sessão conversámos com os dois irmãos e Tomás destacou o caráter divertido, e ao mesmo tempo belo, da escrita de Carlos Wallenstein. “Foi muito especial ter trazido para aqui esta memória”, disse a propósito da evocação da obra do avô. “É muito bom poder honrar essa memória e, ao mesmo tempo, perceber de onde vem a forma de nos exprimirmos, de organizarmos ideias e o nosso sentido de humor”, referiu Catarina. Um gosto pela palavra que parece ter passado de geração em geração, num registo singular. “O nosso pai tem aquela coisa disparatada e palavrosa, nós também temos e o avô era assim”, conclui a artista, “é uma forma de nós sermos, também através das palavras.”
As sessões de leitura Vodafone Vozes da Escrita realizam-se desde 2015, com autores ou músicos convidados a ler textos no Palco Jazz na Relva. Cada dupla apresenta uma seleção pessoal de obras que podem incluir poemas, letras de canções, excertos de romances, crónicas ou simplesmente histórias. Estas sessões de leitura, que já fazem parte do habitat natural da música, regressam no próximo ano confirmando a aposta da Vodafone em promover manifestações de cultura, nas mais diversas formas, integradas na programação do Vodafone Paredes de Coura.