Nestes dias sombrios em que tanta coisa parece abalar a nossa crença numa humanidade capaz de conviver com as suas diferenças religiosas, raciais, sexuais, olhamos para um objeto que há quase 150 anos tem tido mais sucesso em unir os homens do que qualquer ideologia: os jeans — um par de calças feitas de algodão grosso, tingido com índigo apenas de um lado e uns bolsos rematados com rebites metálicos — que saíram da cabeça de Jacob Davis e Levi Strauss (judeus de origem alemã) e se tornaram transversais a todos os grupos, a todos os países, culturas, barricadas, géneros, classes sociais. Muito, mas muito mais que moda, os jeans e o tecido de que são feitos, o denim, são um fenómeno cultural que nos devolve a esperança humanista.

Em 1989, esta foto de adolescentes da Alemanha ocidental e oriental (dos dois lados da Guerra Fria, portanto) sentados em cima do muro de Berlim, e todos vestidos de jeans desbotados não pode deixar de nos comover, como a velha canção de John Lennon: …no need for greed or hunger/A brotherhood of man/Imagine all the people/ Sharing all the world…

Berlim, novembro de 1989, um fotógrafo do Boston Globe capta esta imagem de jovens oriundos de Leste e Ocidente todos vestidos com jeans, apesar de quatro décadas de Guerra Fria, unidos pelo fim do muro.

O que haverá nos jeans em particular e no denim (ganga) em geral que provocou esta massiva adesão que resiste a todas as modas, à passagem do tempo e que, sem precisar de grandes transformações, está sempre a reinventar-se? Há um ensaio do escritor e filósofo italiano Umberto Eco sobre os jeans, escrito em 1976, e intitulado “Pensamento Lombar” que nos dá umas pistas curiosas: diz-nos Eco que as calças de ganga nos dão a sensação “de não sermos nós a segurar as calças na cintura, mas serem as calças, pelo seu formato, a segurarem toda a parte inferior do nosso corpo, sobretudo a zona lombar, aquela que mais influencia o nosso humor.” Por outro lado, Eco, desmitifica toda a ideia de “conforto” associada aos jeans, afirmando que dificultam a “acomodação da genitália masculina”, e nos tornam hiper-conscientes da parte inferior do nosso corpo, o que segundo o bem humorado ensaio “impede que possamos ter reflexões profundas quando envergamos uns”. O grande conforto que nos dão os jeans é sim “o conforto psicológico de sentirmos que pertencemos e que podemos comunicar isso” através desta peça de roupa. Portanto, Eco ajuda-nos a voltar à ideia principal: os jeans comunicam um forte sentido de pertença a um grupo seja ele qual for além de que nos dão uma forte consciência do corpo, logo da nossa sexualidade. Paradoxalmente os jeans apelam ao nosso espírito de animal livre e de homem civilizado e gregário. Poderá haver objeto mais genial?

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Os jeans e os seus mitos

Diz a lenda que os jeans nasceram em 1873 no estado do Nevada, nos estados Unidos da América. Mas esse é apenas o ano do registo da patente. Na verdade, a história começou antes quando Levi Strauss, judeu vindo da Alemanha, se muda para São Francisco e abre uma loja de produtos secos, entre eles a lona muito usada nas carroças que partiam para a corrida ao ouro no Oeste americano. Esta lona, um algodão grosso castanho, vinha da Europa, mais precisamente da região francesa de Nimes (e daí derivará o termo “de-nim”, que já seria usado na Inglaterra e não inventado pelos americanos como se propagou). Mas como havia um excedente de lona, o senhor Strauss começou a tentar vendê-la para fazer roupas para os garimpeiros e mineiros, cujo trabalho árduo destruía facilmente todas as roupas. O denim revelou-se de facto muito mais resistente e começou a ser adquirido pelas mulheres dos trabalhadores rurais. Foi por essa altura que o alfaiate Jacob Davis, procurando também fazer calças resistentes para os seus clientes, inventou aquilo que hoje conhecemos como jeans e que inicialmente se chamaram “overalls”. Calças justas na zona lombar, com vários bolsos reforçados com rebites metálicos e botões também metálicos e, claro, feitos coma lona vendida pelo senhor Strauss.

Segundo o arquivo da Levi’s de São Francisco, os primeiros jeans seriam em lona “castanho- pato” e depois em azul índigo.

Se a figura do cowboy aventureiro e livre se tornou a imagem associada aos jeans, a verdade é que os seus primeiros destinatários eram homens que trabalhavam em situações de dureza extrema, quer nas minas, quer na agricultura, quer na construção civil. Os vaqueiros surgem depois e quem faz deles o principal alvo dos jeans é a Lee e não a Levi’s. A marca surgida em 1912 , no Kansas, foi desde logo a grande rival da Levi’s. A patente do senhor Davis expirou em 1909 e partir daí estava lançada a corrida às calças de ganga. Ora o alvo da Lee foram, desde o início, os rancheiros como se pode ver pelo logótipo colocado da tacha de pele, que imitava os ferros com que estes ferravam as vacas. Os primeiros Lee tinham ainda uma segunda tacha de cabedal no bolso traseiro para se marcar o símbolo da sua propriedade.

Um dos primeiros anúncios da marca de jeans Lee, a grande concorrente da Levi’s.

À Lee devem-se ainda a aplicação de fecho éclair/zipper nos jeans para substituir os botões e a invenção do fato-de-macaco muito usado pelos mecânicos, operários e até presidiários. Na verdade a criação do mito dos jeans como roupa de cowboys e cowgirls fez-se através do cinema. Dos primeiros westerns, ainda no mudo, às épicas cowboyadas de John Wayne, nos anos 30, Hollywood ajudou a vender muitas calças e, mais do que isso, passou a relacioná-las não com trabalhadores pobres mas com rancheiros ricos, destemidos e aventureiros. Se há algo que a América sempre fez melhor que os outros foi usar o inconsciente coletivo e os seus símbolos mais profundos para vender produtos. Os jeans não foram exceção. Nos anos 30, quando surge outra marca mítica, a Wrangler, a Levi’s faz publicar o primeiro anúncio na revista Vogue para conquistar o público feminino: surge pela primeira vez o termo “western-chic” porque “no fundo do peito de cada americana arde o desejo de conquistar fronteiras”. Ora é este espírito de liberdade que Marilyn Monroe vai encarnar com perfeição no filme Os Inadaptados, e que irá também alimentar um crescente, e omnipresente, desejo de emancipação feminina, que culminará nas manifestações cívicas do final dos anos 60 onde o uso dos jeans marcava o desejo de igualdade de mulheres e negros.

Monroe, em 1961, no filme de John Huston “Os Inadaptados”. A cowgirl solitária e melancólica seria o seu derradeiro papel.

Antes de serem batizadas como jeans, as calças de denim chamavam-se “waist overalls”, e a lenda sugere que este algodão rude e de grande resistência seria já usado pelos marinheiros genoveses, que uma corruptela linguística terá reduzido para “genes” e daí inglesado para “jeans”. Hoje há historiadores que colocam em causa esta linha de acontecimentos e consideram que esta é apenas uma história para adensar o mito da liberdade e valentia ligado aos jeans. Há mesmo quem afiance que a mítica lona genovesa era a que tecia as velas que levaram Colombo à América…

Rebeldes com e sem causa

Se até aos anos 50 a revolução dos jeans foi relativamente silenciosa e rural, nos anos 40/50 essa revolução chega à ruas, salta para a Europa e para o Oriente, em especial o Japão, e o mito do cowboy dá lugar ao mito do jovem rebelde, contestatário, poético, melancólico. Nascem os blue jeans (“Blue” de azul, mas também de melancolia e da música, o Blues). Acontecera a II Guerra Mundial e com ela os soldados americanos exportaram o charme dos jeans para o velho continente. Com o fim da guerra algumas marcas de denim estabeleceram-se na Europa, entre elas a Wrangler. Mesmo o início da Guerra Fria não impediu que os jovens dos países de Leste quisessem ter o seu par de jeans como expressão da sua personalidade. Nos finais dos anos 40 já as estudantes de liceu das cidades americanas usavam calças de ganga masculinas, embora as mulheres europeias só passem a aderir aos jeans nos anos 60.

James Dean, símbolo do mal estar juvenil no filme “Fúria de Viver”.

Depois da guerra, apesar das ameaças atómicas e do baby boom, a sociedade americana começa a emitir sinais de uma clivagem geracional que o cinema representou em filmes como Fúria de Viver, com James Dean, de 1955, ou O Selvagem, com Marlon Brando, em 1953. Nas duas obras o mal estar juvenil é o grande tema e os jeans o grande símbolo. Tanto Dean como Brando usam-nos combinados com t-shirt branca e blusão de cabedal preto. Os jeans são de novo o tecido da fúria, da revolta, da violência. O modelo dos jeans era agora mais justo, realçando os músculos das coxas, as nádegas, a virilidade animal (e aqui poderíamos voltar a Umberto Eco e ao seu perspicaz ensaio). É também nesta década que surgem os primeiros modelos de skinny jeans para as mulheres. Inspirados nas “pantalons” masculinas usadas na França do século XIX, daí o termo “pants”, estes jeans justos, curtos e de cintura subida realçavam as curvas femininas, usavam-se com camisas de xadrez e umbigo à mostra naquilo que ficou conhecido como o estilo “rockabilly style”. Outro acontecimento importante é o surgimento do rock’n’roll com o seu rei, Elvis Presley, a cultuar as calças de ganga e a tingi-las com uma sonoridade contra-corrente e juvenil. Eis que os jeans passam a ser o uniforme de um novo grupo social: os adolescentes, símbolo do seu direito a fazer escolhas e a construir uma individualidade.

Mas esta associação não foi inicialmente benéfica para as calças e blusões de denim, que passaram a ser proibidos em restaurantes, teatros e escolas dos EUA. Algo que só irá mudar na década seguinte, quando os jeans deixam de ser associados a bandos de rufias e são integrados no nascente circuito da moda e do consumo de massas.

Nos anos 60, quase um século depois de terem sido inventados, os jeans massificam-se e tornam-se profundamente políticos. Eles estão nas manifestações contra a guerra no Vietname, contra a segregação racial, a favor dos direitos da mulheres. Estão no cinema na Nouvelle Vague, no corpo de Brigitte Bardot e Jane Birkin, e mesmo de Audrey Hepburn e Elizabeth Taylor. A concorrência é muita e os jeans justos dos anos 50 dão lugar aos “boca-de-sino” dos anos 60 e 70. A Levi’s lança os primeiros jeans brancos e o costureiro francês Yves Saint Laurent lamenta não ter sido ele a inventar esta peça de roupa: “Os jeans são a expressão da modéstia, da sensualidade e da simplicidade, tudo o que eu quero para as minhas roupas.”

A cantora e atriz Jane Birkin e os jeans como símbolo da emancipação sexual das mulheres.

Em Portugal os jeans também chegam nos finais dos anos 50. Muitos vinham de fora e quase só eram usados por homens e nas cidades, especialmente em Lisboa. Nos anos 60 surge em Espanha a marca de jeans Lois e eram sobretudo esses que cá chegavam, mas havia também Starup (brasileiros), Old Chap e as marcas americanas, as mais caras, como a Lee e a Wrangler. Mas muitos optavam pela solução mais antiga: compravam denim ou ganga e mandavam-nos fazer nas costureiras. Por isso, na revolução de 25 de Abril de 74, tal como no Maio de 68 em Paris ou nas manifestações civis nos EUA, os jeans são o uniforme de novos e velhos, homens e mulheres.

Nos anos 60 e 70 os jeans ganharam uma forte carga política e ideológica de contra-cultura, nomeadamente nas manifestações contra a guerra no Vietname.

Das minas da Califórnia à passadeira vermelha

Quando, em 1973, fizeram 100 anos, os jeans estavam na iminência de se tornar também um bem de luxo. Glória Vanderbilt, Saint Laurent, Versage, Calvin Klein e outras casa de alta costura encaixaram o denim mal tingido e rugoso entre as suas sedas, caxemiras e lamés. Os presidentes J.F. Kennedy e Jimmy Carter deram o mote, as estrelas de cinema já tinham branqueado com o seu glamour as origens humildes das calças e os milionários começaram também a cobiçá-las. Estávamos no final dos anos 70 onde o glam rock dos Blondie contrastava com o movimento Punk mas uma coisa todos tinham em comum: skinny jeans. Agora já na na versão pin up, mas na versão preto, rasgado e adornado com metais.

No início dos anos 80 eles estavam nas manifestações de mineiros ingleses contra Margaret Thatcher, nas manifestações de skinheads, e nas passerelles. A década do triunfo da cultura pop e de todo o excesso kitsch teve a sua expressão no “ganga de luxo”. Os jeans já não eram denim suficiente, ele passava a ser usado em chapéus, blusas, vestidos, botas, e até… roupa de cerimónia. Foi a apoteose. As skinny jeans dão lugar às “mom jeans” e surgem as muitas versões da ganga colorida em tons neon, pre-lavada com ácidos, com pregas, cintos e, claro, sempre acompanhada de cabelos com permanente e muita laca.

O mais icónico look dos anos 80: “mom jeans” e blusão de ganga curto, aqui num anúncio da Calvin Klein, de 1987.

Depois do espírito “bourgeois” que atacou nos anos 80, (além da moda das calças de bombazine), a década de 90 faz renascer os jeans os seus velhos mitos dos anos 50 e 60: a contra-cultura, a rebeldia dos jovens, o smells like teen spirit. Os jeans voltam a ser os 501, o modelo do primeiro lote vendido pelo senhor Strauss no século XIX, mas em versão rasgada e suja. O modelo 501 sendo originalmente feito para o corpo masculino passa a ser igualmente usado pelas raparigas e invariavelmente conjugado com sapatilhas All Star e botas de combate estilo Dr Marten’s. Seguíamos a estrela do grunge, dos filmes indie. Em Portugal entravamos nos anos do novo riquismo, Lisboa vestia-se de Levi’s, Mustang, Replay, El Charro e olhava com desprezo para os provincianos vestidos com Lois e Lee, sem carro, sem centro comercial. Apesar da concorrência, os jeans 501 confirmavam a Levi’s como marca de culto, mais uma vez impulsionados por movimentos culturais das margens, dos subúrbios e não da indústria da moda.

Jeans, uma religião para o novo milénio?

No anos 2000 a grande tendência foram os jeans de cintura (perigosamente) baixa que tornavam cada abaixamento um momento pouco elegante de exibição de rabos. Dizem os blogues internacionais que esse regresso está no horizonte. Há uns meses a marca Vetements surgiu com os jeans com o fecho éclair na parte traseira e o mundo perguntou atónito “butt why?

As calças com fecho no rabo que estão a causar polémica

Atualmente, mais do que marcas os jeans querem-se cortados à tesoura, curtos e com farripas penduradas, rasgados, desgastados com lixa ou compostos, retos e de cintura subida ou à boca-de-sino ou, ou, ou…

As calças que nos seguram pela cintura e nos predispõem mais para a vida exterior do que para a vida interior, como diria o senhor Eco, entraram no século XXI com mais de 100 anos e continuam versáteis, ágeis e duráveis. Estima-se que no mundo ocidental cada pessoa tenha pelo menos sete pares. As marcas de fast fashion vendem jeans a preços baixos e a tendência parece ser a alegre convivência dos vários modelos e estilos. Já não são apanágio dos jovens, mas sim um elo na cadeia geracional. Já não são moeda de troca política como nos anos da Guerra Fria, mas quem viaja para certas regiões remotas do planeta pode usá-los para trocar por artesanato, comida e até pagar dormidas em casas particulares e hotéis, tal é a força simbólica que carregam.

Uma coisa é certa: os jeans tornaram-se uma espécie de segunda pele humana e, como nela, são “tatuados” com lemas de vida, palavras de ordem, animais totémicos. Acompanham-nos nos acontecimentos importantes da vida como se fossem parte do nosso corpo. Projetamos neles uma carga de afetos, expectativas, memórias que não fazemos com mais nenhum objeto. Os nossos velhos e bons jeans, aqueles muito lavados e que nos fazem sentir que podemos conquistar qualquer fronteira, que guardamos no nosso altar privado, (o guarda-roupa) onde os santos deram lugar a objetos profanos que operam muitos mais milagres.