Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. O cenário é uma harmonia de sol e mar, em plena cidade, os dois ingredientes que fazem de Ipanema e Copacabana praias com vida própria, um mito imortalizado da bossa nova para o mundo. Porém, estamos em 2017, e ainda que exista sol e mar, a harmonia no areal é um desafinado de funk e ruído de vendedores, um cruzamento social que junta a sociedade mais rica à mais pobre, afluindo dos autocarros apertados sem ar condicionado, verdadeiras caravanas do Rio de Janeiro. Caravanas é o novo álbum de Chico Buarque, e é a canção protesto que fecha o disco, talvez sobre quem seria hoje a Garota de Ipanema, uma loira bronzeada ou uma criança negra da favela. Entre o antigo e o novo está o trilho que percorre este disco, um álbum de amores passados que flutuam pelo presente, num momento inspirado do grande poeta.

“Caravanas”, de Chico Buarque (Biscoito Fino)

“Botaram uns ônibus horrorosos, de onde saem umas pessoas completamente horríveis, e vão lá sujar a praia”, reclamava no telejornal dos anos 70 uma banhista da Zona Sul, região onde está Ipanema e Copacabana, assim como Leblon, onde mora Chico Buarque. Hoje, chegam cada vez mais dessas “pessoas completamente horríveis”, que são apenas cariocas do subúrbio aos olhos de alguém preconceituoso e entre os suburbanos está a favela do Jacaré, que faz a ligação à praia no ônibus 474. No ano passado, esta mesma linha de autocarro foi interrompida por operações policias dia após dia, depois de alguém decidir que nesse transporte estavam os culpados dos ocasionais arrastões e assaltos.

“Não há barreira que detenha esses estranhos/
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho/
A caminho do Jardim de Alá”

Assim canta Chico em “Caravanas”, a canção que fez o escritor de “Construção” voltar aos épicos de protesto. No cenário Jobim de sol e mar turquesa, surpreendem os negros das caravanas que tanto podem ser escravos “de caravelas no alto mar” como sírios a chegar na costa da Grécia. Baseado no standard “Caravan”, de Duke Ellington, a melodia colide a meio com funk, num beatbox de Mike do Dream Team do Passinho, um encontro de passado com presente que o próprio narrador da canção admite ser mero delírio de poeta.

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Mas o álbum é sobretudo gerado sobre melodias de outros tempos, mesmo quando o tema são possíveis encontros no Tinder. “Caravanas é assim, um disco cheio de canções atualíssimas na forma e no conteúdo, mas inspiradas em referências e formas paradoxalmente inatuais”, explica no press release o jornalista Hugo Sukman. “Inatuais” já foi uma palavra usada por alguns críticos para descrever as músicas de Chico, último álbum de 2011, e o caminho aqui não é muito diferente do anterior, mas substitui a intimidade do violão por uma maior complexidade sonora. Mas neste novo disco a cantiga é outra, sem duetos com namoradas (a cantora Thais Gulin) e com um enredo de amores não concretizados e perdidos, que fazem o narrador desesperar por abrir uma brecha no presente, forma de recordar uma paixão fugaz. “Inatuais” foi também expressão usada por algumas mulheres para descrever a primeira faixa do álbum, “Tua Cantiga” com o verso que muitos descreveram de machista, polémica de que já falámos por aqui. “Tua Cantiga” é uma das sete novas canções originais de Chico que compõem o álbum 23 da carreira do brasileiro, ao lado de mais duas releituras, tudo gravado com a calma de quem tem 73 anos, pela editora Biscoito Fino.

Se “Tua Cantiga” é uma canção de amor e uma oportunidade para o letrista exercitar as rimas e aliterações, “A Moça Do Sonho” conta outra história, um narrador obcecado com alguém, enquanto suspira porque deve haver “um confuso casarão onde os sonhos são reais e a vida não”. A melhor forma de captar um instante em que estivemos apaixonados ainda é com música — e se for na voz suave de Chico ainda melhor. “A Moça Do Sonho” é uma colaboração com Edu Lobo, concebida para uma peça de teatro, assim como “Dueto”, a segunda releitura do álbum. Quem acompanha o mestre é Clara Buarque, sua neta e filha de Carlinhos Brown, num diálogo bem humorado ao bom jeito Elis Regina/Tom Jobim — no fim garantem que se for preciso registam o amor no “Instagram”, “Tinder” e “Youtube”. Esta mesma dupla já tinha aparecido no documentário de Miguel Faria Jr. em 2015, o mesmo em que Carminho participa com a clássica “Sabiá”.

O samba e o amor estão em “Desaforos”, um samba-canção jazzístico onde fica no ar que uma relação terminou, ou está para começar. O outro samba é “Jogo de Bola”, sobre um tema que este adepto do Fluminense domina bem. “Há que levar um drible por entre as pernas sem perder a linha” canta, “salve o futebol, salve a filosofia”. É uma ode ao jogo bonito das peladas amadoras, provavelmente em homenagem à sua própria equipa de amigos, o Politheama, e ainda lembrando o grande craque de Budapeste:

“Outrora, quando em priscas eras/
Um Puskás eras”.

A alegria e a malandragem carioca de Chico aparecem sobretudo em “Blues Para a Bia”, mais um blues para a sua coleção privada, onde estão guardados o “Bancarrota Blues” ou “Bolero Blues”. Este é outro amor impossível, aqui por motivos de preferência sexual, que o homem dos olhos mágicos é bonito, mas não o suficiente para fazer alguém mudar de equipe a meio do jogo. “Que no coração de Bia/ Meninos não têm lugar”, explica, “Até posso virar menina pra ela me namorar”. Além do épico “Caravanas”, estão aqui outros versos que provam a forma incontestável deste senhor letrista, que faz aqui uma espécie de versão brasileira de “Só te Falta Seres Mulher”, de um dos devotos portugueses mais atento às missas Buarque, B Fachada.

Génio, machista ou petista. Quem é Chico Buarque em 2017?

No álbum clássico de 1978, mesmo antes de “Tanto Mar”, está “Pequeña Serenata Diurna”, uma versão de Silvio Rodríguez, o magnânimo cantor cubano. Agora Chico fez o seu próprio bolero com “Casualmente”, com ajuda de Jorge Helder, o mesmo parceiro de “Rubato”. Este bolero com pinta de bossa exalta a cidade de Havana, e claro, uma mulher inatingível e perdida, algures pelas “calles” e “penumbras”, onde se esconde o assombro que foi esta efémera paixão. A canção foi uma encomenda para a parceira cubana Omara Portuondo, e felizmente para nós, deu um passinho de salsa diretamente de volta para os braços de Chico. No verso “Hasta el mar de La Habana es lo mismo, pero/ No es igual”, além de excelente panfleto turístico, é uma referência direta à “Pequeña Serenata Diurna”. E se já suspira por esses álbuns ancestrais de Chico, fica aqui a deixa:

“No volverá nunca mais la canción sentimental/
Que casualmente la banda escutei cantar”.

Pois é, a banda já passou, ou esqueceram-se?

Por fim “Massarandupió”, outra composição a meias com um neto e filho de Carlinhos Brown, desta feita o Chico Brown. Inspirado nas idas nostálgicas à praia de Massarandupió com o neto, o cantor descreve tudo de dicionário na mão, no léxico banhista mais amplo possível, que pode servir de inspiração para usar no final do verão. A brisa de agosto vem em arranjo de cordas por Luiz Claudio Ramos e os mergulhos de mar acompanhados pela suave slide guitar, que nem por acaso foi inventada pelos havaianos. Antigamente esta praia de Massarandupió era o refúgio da família Buarque e hoje é conhecida pelo nudismo e pela infame festa “Forró Nu”, existindo até a imprescindível placa de “Sexo aqui não”.

Esta festa do Caravanas é nossa e, se necessário, levantamos nós uma placa, a de “Ódio aqui não”. O novo álbum é o momento certo para esquecer todas as controvérsias que a figura de Chico Buarque possa despertar, para nos focarmos nas composições que fazem um génio vivo, aqui ainda mais perspicazes que no último Chico. E se ainda não está convencido, o próprio escreveu em “Desaforos” um verso para quem o odeia:

“Sou apenas um mulato que toca boleros/
Custo a crer que meros lero-leros de um cantor/
Possam te dar tal dissabor”.

Apesar de você, hoje é ele quem manda. Falou, ‘tá falado, não tem discussão.