Quase duas décadas depois de ter deixado de participar em iniciativas partidárias, e quase dois anos depois de ter deixado a Presidência da República, Cavaco Silva abriu uma “exceção” à regra que impôs a si próprio para estar presente da Universidade de Verão do PSD. Levantou-se cedo, às 6h da manhã, para sair de Albufeira a tempo de chegar à aula que iria dar em Castelo de Vide. Pedro Passos Coelho assistiu ao seu regresso na primeira fila. Não houve selfies — porque o ex-Presidente não quis. “Peça antes àquela menina para tirar”, disse, no final, a um jovem que, de telemóvel em riste, quis posar consigo na fotografia.

Numa intervenção perante jovens aspirantes a políticos, Cavaco Silva fez contas com o passado; revelou o segredo do impasse que se instalou na nomeação dos membros do Conselho de Finanças Públicas, dando-se como “culpado”; mas sobretudo deixou duras críticas ao governo, que “finge que pia mas é apenas por jogadas partidárias”, e aos partidos da “coligação”, que defendem a saída do euro para “outra galáxia, talvez para a galáxia onde vive a Venezuela”. Criticou a comunicação social portuguesa, por permitir “fake news”, criticou os políticos (seria Marcelo?) por fabricarem “fake news”, e elogiou o presidente francês Emmanuel Macron de uma maneira que evidenciou tudo aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa não devia fazer. Mas sempre sem dizer os nomes dos visados.

Críticas a Marcelo. “A palavra presidencial deve ser escassa”

“A palavra presidencial deve ser escassa, por isso é que o atual Presidente francês Emmanuel Macron é conhecido como o Presidente Júpiter, um Deus de palavra rara no seu Olimpo”, começou por dizer, numa altura em que comparava a estratégia de comunicação política de Macron à estratégia que ele próprio seguiu como Presidente da República. E enquanto chamava a si e a Macron as boas práticas, apontava o dedo a quem não as pratica. Embora não tenha dito o nome de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente seria um dos alvos do ex-Presidente na fórmula vaga dos “políticos europeus”:

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta estratégia contrasta com a verborreia frenética da maioria dos políticos europeus, que não dizem nada de relevante”, disse, sem especificar a quem se referia.

Cavaco continuou, já na reta final do seu discurso, a enumerar as normas de conduta face à comunicação social que Macron adoptou quando chegou ao Eliseu, deitando por terra as práticas do socialista François Hollande. São elas: não aceitar “convites mediáticos para entrevistas”, recusar responder a questões que não respeitem a assuntos que decide tratar, ou proibir ministros e conselheiros de falar à comunicação social sem a sua “orientação”.

“Não passa pela cabeça de ninguém que Macron telefone a um jornalista para lhe passar uma notícia ou informação”, afirmou — nova farpa a Marcelo Rebelo de Sousa –, para a seguir se lembrar que o mesmo Macron responde às perguntas desviantes dos jornalistas limitando-se a dizer que “não faz comentários sobre a atividade política”. “Quantos em Portugal teriam coragem de responder assim?”, questionou.

A crítica foi direcionada, embora sirva o geral e o particular. “É uma estratégia que permite dizer que a política se concentra nos interesses do país sem se preocupar com interesses de clientelas mediáticas”, disse, procurando ensinar aos jovens que frequentam este ano a Universidade de Verão do PSD que “a independência em relação aos jornalistas é um princípio básico do exercício de funções públicas, e o distanciamento é a atitude que melhor serve o interesse do país e dos políticos”.

O segredo do impasse para o Conselho de Finanças Públicas: “O culpado fui eu”

Numa intervenção de fundo muito crítica e com palavras duras — desde a “bazófia” de Alexis Tsipras aos “devaneios” de Hollande, exemplos a que recorreu para falar “daqueles que no Governo [português] querem realizar a revolução socialista” mas que acabam por “perder o pio” — houve também espaço para uma revelação. Uma revelação sobre o impasse em que a entidade independente do Conselho de Finanças Públicas mergulhou durante seis meses, por falta de entendimento no Parlamento quanto à nomeação dos seus novos membros. Afinal, havia um culpado: Cavaco Silva.

“Vou revelar o nome da pessoa que está na raiz desse impasse: fui eu próprio, quando exercia funções de Presidente da República“, revelou, passando depois a explicar o que aconteceu para fazer uma enorme crítica a António Costa.

Em 2011, numa reunião entre o então Presidente Cavaco e o primeiro-ministro Passos Coelho, Cavaco manifestou discordância em relação a uma proposta de lei que tinha resultado de um grupo de trabalho (entre PS e PSD) que dava ao governador do Banco de Portugal e ao presidente do Tribunal de Contas o poder de nomearem, por despacho, os membros que compõem aquele organismo independente responsável por analisar as contas do Estado. Cavaco não gostou.

“Eu tinha estudado os organismos semelhantes que havia na União Europeia, eram 12, e argumentei que era insólito que membros desta natureza fossem nomeados por despacho de um tribunal e de um instituto público. Pareceu-me mais correto, formalmente, que fosse o Conselho de Ministros a nomear, por proposta do governador e do presidente do Tribunal de Contas”, explicou, notando que o Parlamento acolheu na altura a indicação do Presidente, acabando anos depois, em 2017, por lhe pregar uma rasteira. “Confesso que nunca imaginei que uma eventual proposta de nomes apresentada pelo Banco de Portugal e pelo Tribunal de Contas, que não podiam deixar de propor técnicos altamente qualificados, pudesse não ser aceite pelo Governo de Portugal. Qualquer que ele fosse”, sublinhou, destacando que partiu do princípio de que “numa democracia madura, qualquer Governo que fosse não quereria ser acusado de pôr em causa a essência do CFP, que é a sua independência face ao poder político”.

Com Passos Coelho na primeira fila, que ficou mal na fotografia depois de se ter percebido que tinha sido o seu governo a legislar no sentido de os nomes para aquele organismo terem de ser aprovados pelo Governo, Cavaco Silva fez assim um mea culpa, com ironia, deixando críticas ao atual Governo de “falta de qualidade democrática”.

O impasse só viria a ser desbloqueado seis meses depois, em julho deste ano, depois de o Conselho de Ministros ter aprovado novos nomes vindos do governador e do Tribunal de Contas.

“Fake news não existem apenas na América de Trump, existem em Portugal”

Cavaco Silva iniciou a sua intervenção com um ajuste de contas com o passado recente, mais concretamente com um episódio de julho do ano passado, no seguimento de um Conselho de Estado já com Marcelo Rebelo de Sousa Presidente. O episódio serviu para concluir — mais à frente no discurso — que “há políticos que telefonam a jornalistas para lhe passar uma notícia ou uma informação”. Não disse o nome de Marcelo, mas as campainhas soaram.

É que, segundo disse, as “fake news políticas não existem apenas na América de Trump, existem também na Europa e em Portugal”. E ele próprio foi recentemente “alvo” de uma notícias dessas. Começou por contar a história:

Um jornal diário fez com grande destaque um título que dizia: ‘Cavaco estraga a unanimidade do Conselho de Estado sobre sanções da UE’, matéria sobre a qual eu não tinha pronunciado uma palavra”, disse, insinuando que a notícia foi plantada no jornal.

Uma prática que Cavaco não se poupou a condenar — tanto aos políticos que fabricam as notícias, como aos jornalistas que as aceitam publicar. “Vemos fake news até na imprensa de referência, e os objetivos são claros: ou influenciar a opinião pública a favor do seu grupo ou denegrir os seus adversários. E quem aceita publicá-las fá-lo, das duas uma: ou porque acredita ingenuamente que informações são verdadeiras, ou aceita para servir e agradar os seus fabricantes”, disse. E ainda rematou: “Temos tido casos óbvios de fake news que deram grandes títulos”.

Governo. “Os que querem realizar a revolução socialista perdem o pio quando confrontados com a realidade”

Seguindo sempre como linha de raciocínio os exemplos do Governo de esquerda de Alexis Tsipras, na Grécia, e o antigo Governo socialista de François Hollande, em França, Cavaco Silva carregou nas críticas ao Governo do PS e aos partidos da esquerda que apoiam António Costa. Tudo para mostrar que a “realidade tira sempre o tapete à ideologia” — era este, de resto, o nome da aula que foi dar aos jovens sociais-democratas — e que o que sobra é “o pio”. Que não passa de um “pio fingido”, que só serve jogadas partidárias.

“A realidade acaba sempre por derrotar a ideologia, e isso projeta-se com uma força tal contra a retórica daqueles que no Governo querem realizar a revolução socialista que eles acabam por perder o pio. Ou fingem apenas que piam, mas são pios que não têm qualquer credibilidade porque não são mais do que jogadas partidárias”, disse, naquela que foi uma das críticas mais fortes ao facto de PS, PCP e BE terem um discurso para fora, para o seu eleitorado, mas, para dentro, terem de se sujeitar às decisões em linha com a União Europeia.

Ou seja, disse, os governos de países da zona euro, Portugal incluído, até podem chegar ao poder com “devaneios revolucionários”, mas depois acabam por ter de se sujeitar à “realidade”. Crítica ao Governo de António Costa, que, “ora através do aumento de impostos indiretos que anestesiam os cidadãos, de cortes nas despesas públicas de investimento, de medidas pontuais extraordinárias ou de cativações das despesas correntes e consequente deterioração serviços públicos ou contabilidade criativa, acabam sempre por conformar-se com as regras europeias de disciplina orçamental”, disse.

Para o primeiro-ministro ouvir e com o líder do PSD na sala, Cavaco puxou do seu trunfo de professor catedrático de Economia para passar ainda em revista a política fiscal e a necessidade de haver “equidade” e não “arbitrariedade”, para Portugal ser um país competitivo. “Os investidores tendem a evitar países de carga fiscal elevada, portanto Portugal deve olhar para a carga fiscal dos restantes países europeus para determinar quanto pode cobrar de impostos e quanto pode gastar em despesa pública sem incorrer num défice orçamental excessivo”, disse, depois de ter sublinhado que é preciso “espírito reformista” e de ter lembrado que o único consenso que houve nesta matéria foi a antiga reforma do IRC, acordada por sinal entre Passos e o ex-secretário-geral socialista José António Seguro, que caiu por terra quando António Costa chegou ao poder.

Mais recados à “geringonça”: ao PCP e BE

Recados e mais mensagens. Foi assim o regresso de Cavaco Silva a um palco político. O PCP e o BE, partidos da “coligação” que defendem, de uma forma ou de outra, o caminho para a saída de Portugal do euro, foram alvos especiais do discurso do ex-chefe de Estado.

Segundo Cavaco, a realidade é que uma saída do euro teria custos e consequências “económicas e sociais inimagináveis e desastrosas”, o que faz com que a realidade derrote uma vez mais “o delírio e a ignorância” daqueles que defendem a saída do euro.

“Numa entrevista que deu ao The Guardian, o primeiro-ministro grego Alexis Tsipras confessou que tinha cometido muitos erros e mentido aos eleitores, e à pergunta sobre a saída do euro respondeu: sair do euro e ir para onde? Para outra galáxia?”, lembrou Cavaco, para logo a seguir ensaiar aquela que seria a resposta do PCP (sem o dizer) a esta pergunta: “Talvez alguns respondessem que poderíamos ir para a galáxia onde se encontra agora a Venezuela“.

E um alerta contra o “regresso da censura”

No final da sua intervenção de cerca de 50 minutos, Cavaco Silva deixou um alerta enigmático: pediu diretamente aos jovens “força e coragem para combaterem o regresso da censura”, não especificando a que práticas se referia para invocar a existência de censura.

“Apesar das coisas estranhas que têm acontecido no nosso país, apesar de afirmarem que a censura está de volta, estou convencido de que o portugueses ainda valorizam a verdade, a honestidade e a competência, o trabalho sério, e a dedicação a servir as populações”, disse, limitando-se a sugerir a leitura de um artigo da colunista do Observador, Maria João Avilez, publicado na passada segunda-feira.

No artigo, intitulado “O meu mundo não é deste reino”, Maria João Avilez defende, entre outras ideias, que a “intimidação, a denúncia, a manipulação, a mentira, o escárnio público, abater-se-ão sobre os prevaricadores, qual raio ou trovão. A extrema-esquerda, radical de seu nome próprio, é aliás exímia na aplicação destes instrumentos que manuseia com a habilidade ácida do ódio. Temo-lo visto. É preciso licença prévia para pensar e depois dizer alto o que se pensou”.

Terminado o discurso, e cumprida a missão que o fez sair às 6h da manhã do Algarve, Cavaco Silva ainda respondeu a perguntas dos jovens sociais-democratas, mas a essa parte a comunicação social não pôde assistir. Quando saiu, assinou o livro de honra do hotel onde há 15 anos decorre a Universidade de Verão do PSD: “Foi com imenso gosto que regressei ao hotel Sol e Serra para participar nesta meritória iniciativa do PSD”, escreveu. Já lá iam uns anos.