Poeta, dramaturgo, argumentista, desenhador e argumentista de banda desenhada (“O Incal”, “a Casta dos Metabarões”), compositor, ator, especialista em esoterismo, autodenominado “psicomago” e sobretudo realizador, Alejandro Jodorowsky, chileno que viveu no México e se radicou em Paris, é o autor de alguns dos mais inclassificáveis, indescritíveis e inesquecíveis filmes da história do cinema: “El Topo” (1970), “A Montanha Sagrada” (1973), “Santa Sangre”(1989) ou, mais recentemente, “La Danza de la Realidad” (2013) e “Poesia Sem Fim” (2016), parte de uma trilogia autobiográfica.

São “filmes de poeta” e de culto, cinema de autor e independente do mais genuíno, idiossincrático e intransigente, arrebatamentos místico-psicadélico-onírico-vanguardisto-surrealistas, a maior parte interpretados pelo próprio Jodorowsky e pelos seus filhos, caso de Brondis, o mais velho. Neles convergem, se entrechocam e combinam Freud, Buñuel, Fellini, e convivem o western, o terror, a ficção científica e o fantástico, nas suas formas mais sublimes, mais líricas, mais grotescas ou mais absurdas.

Jodorowsky está também associado a um dos mais lendários filmes nunca feitos, a sua versão “livre” de “Duna”, de Frank Herbert, nos anos 70, produzida por Michel Seydoux, para o qual juntou uma equipa que incluía Moebius/Jean Giraud, Dan O’Bannon, Chris Foss, H.R. Giger, os Pink Floyd, os Magma e, no elenco, Salvador Dalí, Orson Welles, Mick Jagger ou Amanda Lear. A história desta epopeia falhada está contada no documentário “Jodorowky’s Dune”, de Frank Pavich (2013). Alejandro Jodorowsky, de 88 anos, veio a Portugal para ser homenageado pelo MOTELX (juntamente com Roger Corman) que passou “El Topo” e “Santa Sangre”, e onde deu uma masterclass, e o Observador falou com ele.

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Disse numa entrevista recente que considerava o cinema “a mais completa e perfeita de todas as formas de arte”. Sempre pensou assim, ou formou esta opinião depois de começar a realizar filmes?
Comecei a realizar filmes porque sempre pensei assim. Como mostrei em “A Dança da Realidade”, quando era pequeno vivia numa aldeiazinha que não tinha livraria, não tinha nada. Eu nem sequer tinha brinquedos e a única coisa que se podia fazer era ir ao cinema. Via muitos filmes e para mim era como se fosse magia. Nem sabia que os filmes de cowboys se passavam nos EUA. Para mim, eram contos de fadas. Por isso, o meu filme de cowboys “El Topo” não se passa nos EUA mas sim num país imaginário. O cinema é sem dúvida a arte completa, mas está em dificuldades porque é uma invenção comercial e industrial. É-o desde sempre. E é uma indústria que, antes de tudo, quer dinheiro. E utiliza a glória das suas “estrelas” como se fosse dinheiro, e vende-se aos poderes dos países onde é feito, também por dinheiro. E o que faz esta indústria? Vai acariciar o gosto do público, não vai criar. Vai à procura daquilo que as pessoas gostam e faz filmes para o gosto das massas. E é tudo.

E não é o seu caso.
Não. Eu faço um cinema de autor. Nos meus filmes, as “estrelas” não são importantes, o dinheiro não é importante, o poder não é importante. O importante é fazer o que gosto, como um poeta. Em vez de ir à procura do público, criar o meu público. Eu cresço com o público e ele comigo, primeiro uma pessoa, depois dez, depois mil, depois duas mil. Para ser livre e honesto. Não para me vender.

Conseguiu fazer isso em todos os seus filmes. Mesmo na sua experiência mais comercial, “The Rainbow Thief”, de 1990, onde trabalhou com Peter O’Toole, Omar Sharif e Christopher Lee?
Sim, Eu com esse filme queria saber como é que funcionava o cinema comercial. E fiquei a conhecê-lo. Fiquei a conhecer o horror que são as “estrelas”, o horror que é um produtor que manda em tudo. Foi uma experiência terrível, bati-me como um cão pelas minhas ideias, mas aprendi como é que aquilo funcionava. Conheci o meu inimigo.

https://youtu.be/ODB_ZX0w3_Q

Em 1962, fundou, com Topor e Arrabal, em Paris, o Mouvement Panique, um coletivo artístico que se reclamava do surrealismo. Qual é a importância do surrealismo na sua obra, nomeadamente no cinema?
O surrealismo é, no fundo, uma forma de vida. O que é que o surrealismo fez? Aceitou a força do inconsciente, é tudo. Por isso é que eles eram admiradores de Freud, foram visitá-lo. O surrealismo implica que nem tudo depende do intelecto, da razão. Um surrealista pode fazer um quadro, um poema ou mesmo uma ação e não saber o que eles significam. Vem diretamente do inconsciente. Mas eu gostava também do futurismo italiano, porque encarava a poesia como um ato, uma ação. Há ações que são poéticas. É isso que eu pratico nos meus filmes. Não é que eles sejam estritamente surrealistas.

E quis ir mais longe do que o surrealismo?
Sim, porque o surrealismo também tem limites. E foi por isso que com Topor e Arrabal criámos o Mouvement Panique, para nos libertamos das limitações do surrealismo e ir mais longe que ele. E o surrealismo tinha um papa, o André Breton. Um homem extremamente inteligente e honesto, mas que não gostava de música – a mulher dele era pianista mas ele tinha fechado o piano com pregos -, não gostava de pintura abstrata, não gostava de ficção científica, não gostava de pornografia. Tudo coisas que são também matéria artística. Por isso, para mim, o surrealismo tinha-se transformado numa espécie de super-arte romântica, e política, porque eles eram trotskistas. Numa reunião surrealista em Paris, a primeira coisa que faziam era discutir a atualidade política. E o Mouvement Panique não tinha nada a ver com isso, ia muito mais longe.

Costuma dizer também que faz cinema como um poeta. E isso vê-se consistentemente em todos os seus filmes, que têm também uma dimensão visionária. O seu cinema é não-convencional e anti-realista, um cinema da imagem fantástica, primordialmente. Concorda?
Sim, e da imagem poética. Eu não me comprazo na neurose. Conheço bem a história da pintura e sei que há em certos quadros uma tal beleza visual, uma tal perfeição, que nos faz chorar. Eu quero fazer imagens que, uma vez vistas, nunca mais se esquecem. Por isso, tento que os meus filmes tenham imagens inesquecíveis. O que não sucede com o cinema de hoje. Por exemplo, o “Avatar” custou centenas de milhões de dólares e um mês depois de o vermos, esquecemo-lo.

Outros, nem isso. Estão esquecidos cinco minutos depois de os termos visto.
Sim, sim. Esse cinema é feito para nos agredir e nos estontear. É repetitivo, sempre cheio de explosões por todo o lado, um horror. E usa e abusa dos efeitos especiais. Eu nunca gostei de usar efeitos especiais nos meus filmes. Recorro a eles por vezes, mas como fazia o Méliès, para uma pequena trucagem. Nunca são a razão de ser do filme.

Fellini é um dos cineastas que mais admira e que cita várias vezes como sendo uma das suas principais influências. É o seu favorito?
O Fellini deu-me o gosto pelo cinema quando vi “A Estrada”, tinha eu 15 anos. Foi um filme que me abriu os olhos, porque me apresentou a um cinema pessoal, diferente do de todos os outros. Adoro o cinema dele.

E ele é também um poeta, um cineasta do sonho, do onírico, da visão fantástica, como o Jodorowsky.
É verdade, temos muitos pontos de contacto. Eu conheci-o, sabia? O Fellini queria que eu fizesse um filme quando foi visitar o místico Carlos Castañeda. Ele pediu-me para filmar essa aventura que teve com o Castañeda. Mas depois morreu, meteram-se uns produtores pelo meio e o projeto morreu. E só trocámos duas palavras. Ele tinha visto o “Santa Sangre” e estava a filmar “A Voz da Lua”. Como gostou muito do “Santa Sangre”, convidou-me para assistir à rodagem do filme dele, que foi o último. Cheguei lá, era um terreno baldio, vejo-o aproximar-se ao longe – o Fellini era muito maior do que eu – e ouço-o gritar: “Jodorowsky!”. E eu respondo-lhe: “Papá!”. Abrimos os braços, mas de repente começa a cair uma carga de água enorme, fomo-nos abrigar e nunca mais nos encontrámos.

Que outros realizadores admira?
Buñuel, que também conheci, já ele tinha 80 anos. Ele tinha visto “A Montanha Sagrada”, ficou muito impressionado e por isso convidou-me para a sua festa de aniversário. E só me dizia: “Mas você tem tanto trabalho nos seus filmes. Eu, nos meus, estou sempre sentado, tranquilo, nunca mexo a câmara, mas você, que trabalheira, hein?”. Também conheci o Sergio Leone, que viu o “El Topo”, gostou muito, contactou-me e combinámos almoçar os dois. O Leone só me perguntava, “Mas como é que tu consegues filmar assim? Como?”. E eu só lhe dizia, “Bem, uso uma câmara”. E ele insistia, e falava numa cena do filme e insistia: “Como é que fizeste esta cena? Tinhas que ter uma grua! Ou então filmaste do tejadilho de um camião?”. E eu retorquia: “Não, eu faço o que posso e como faço, porque não tenho um tostão.”

Nunca frequentou nenhum curso de cinema. É autodidata, aprendeu cinema a filmar.
Nunca fiz nenhum curso de cinema. E penso que nenhum artista deve frequentar nenhuma escola de artes. Porque o artista, com o seu dom, honesto e pessoal, deve descobrir o seu mundo. Ora numa escola vão-lho tirar e ensinar o mundo pessoal dos outros, vão-lhe ensinar coisas que não têm nada a ver com ele. E estraga-se, e já não é ele mesmo. Acabou. A arte descobre-se. Não se ensina. Quando realizei o meu primeiro filme, “Fando y Lis”, não sabia nada de cinema, nem sequer conhecia a terminologia técnica. Por isso, disse ao diretor de fotografia que me ia amarrar a ele, para o movimentar como queria, e assim fiz. Rodei o filme atado a ele, e ele de câmara ao ombro. Como não sabia o que lhe pedir, mexia-o! E foi assim que aprendi a filmar.

Estive a rever o documentário “Jodorowsky’s Dune”, de Frank Pavich, sobre a sua tentativa gorada de adaptar “Dune”, de Frank Herbert, ao cinema. Ficou sempre com pena de não ter conseguido fazer este filme único?
Não me vou pôr a chorar nem vou ficar triste por isso. Tristeza, porquê? Há coisas que são um sonho e assim ficam. Já houve produtores que posteriormente me propuseram filmá-lo e disse sempre que não. Porque o Dalí já morreu, o Orson Welles também, o Moebius idem, os Pink Floyd já não existem, já não há isto, já não há aquilo. Era um projeto que ia ser revolucionário porque íamos usar as “estrelas” e as celebridades como nunca são utilizadas. Mas agora, já não se pode fazer. Eu criei todo um universo de imagens para o poder filmar, que são minhas e não estão no livro do Frank Herbert, e muitas delas acabaram por aparecer nos álbuns da série do “Incal”, nos dos “Metabarões”, etc. Nem tudo se perdeu.

Vai rodar uma continuação de “El Topo”. Tem mais projetos, além deste?
Sim, tenho três projetos. Para a continuação do “El Topo”, encontrei um desenhador mexicano genial, José Ládrönn, com o qual já fiz a terceira parte do “Incal”, e um “comic”, “Los Hijos Del Topo”, a que eu chamo um filme gráfico. Estamos agora a trabalhar no segundo álbum, que fica pronto este ano e só fica a faltar o terceiro. Quando este sair, o filme estará todo desenhado. E depois, vou fazê-lo em animação, para não ter que usar “estrelas” e poder ser livre. Comecei entretanto a fazer um filme sobre uma técnica terapêutica psicanalítica que criei, chamada psicomagia. É um documentário, mas totalmente artístico. E o outro filme, é a terceira parte da trilogia autobiográfica de que já existem “La Danza de la Realidade” e “Poesia sem Fim”, chamado “Voyage Sans Ciel”. Passa-se na altura em que cheguei a Paris e depois fui para o México. E a seguir não farei mais nenhum, porque não me vou pôr a falar da minha obra, ela está aqui para ser vista por todos. Porque consegui realizar tudo aquilo que queria, ser poeta, fazer filmes, etc. Fiz tudo o que desejava. Só resta preparar-me para morrer.

O que pensa do futuro do cinema? Está pessimista?
Para mim, como já disse, há dois tipos de cinema: o industrial e o de autor. O industrial preocupa-se com todas as maneiras com que pode fazer dinheiro. Nesta altura, estão malucos com a realidade virtual, a fazer pesquisas e experiências neste campo. Acho péssimo, não tem nada a ver com a arte do cinema fotográfico, porque funciona com óculos ou capacetes com visão de 360 graus e a pessoa tem que se mexer. E como é que vamos contar histórias, se não podemos dirigir o olhar dos espectadores? A menos que o imobilizemos no assento, coisa a que ninguém se submeterá. As pequenas salas de cinema estão todas a fechar e só haverá grandes cinemas para mostrar esses espectáculos. Será como ir à ópera. Mas agora, e entretanto, há o streaming, a Netflix, a Amazon. Esses sujeitos são piores que os comerciantes de Hollywood, e aqueles que têm que ganhar a vida com o cinema vão-se prostituir todos a eles, vão fazer séries de televisão. Só que as séries veem-se e esquecem-se. “A Guerra dos Tronos”, que é um sucesso mundial, vai acabar e depois será esquecida. Mas por outro lado, haverá sempre os autores, os artistas, que vão usar as novas máquinas de filmar digitais, que são cada vez mais pequenas e menos caras, e irão continuar a fazer os seus filmes.

O que vai então acontecer, em sua opinião?
Eu prevejo que o cinema irá passar a ser visto nos museus. Veja o meu caso: “Poesia Sem Fim” foi mostrado pela primeira vez no Louvre. E “La Danza de la Realidad” em Nova Iorque, no MoMA. O cinema está a começar a ir para os museus, que vão passar a mostrar o cinema como arte. Esse será o destino do cinema de autor e de arte, porque não há futuro para ele nas salas. É sempre esta coisa do dinheiro. Eu nunca recuperei um tostão do dinheiro que pus nos meus filmes. Porquê? Porque há muita gente que ganha dinheiro com o cinema. Ganham os técnicos, que têm os sindicatos por trás, ganham os distribuidores, e guardam, ganham os produtores. Desde que nasceu, que o cinema é um negócio de ladrões. Toda a gente rouba. Por isso, um realizador como eu nunca recupera o dinheiro.

https://youtu.be/lJlf8Au50-8