A 14 de maio de 2000 o Sporting torna-se campeão contra o Salgueiros, quebrando um jejum de 18 anos. Na altura, Fernando Gomes era Ministro da Administração Interna e tutelava, entre outras áreas, o Desporto. As coisas estavam algo tortas no gabinete de Fernando Gomes e o jogo contra o Salgueiros tinha um ótimo ingrediente de distração: o preço dos bilhetes. Foi um grande sururu na altura, o Salgueiros jogava em casa e aproveitou-se do momento para rentabilizar ao máximo os 5.780 ingressos que colocou à venda: os bilhetes mais baratos custavam cem euros, 20 contos na altura. O tema entreteve durante uma semana, o futebol é sempre um ótimo assunto para distrair nos maus dias de uma administração. O governo de Guterres estava a passar mais ou menos por isso e Fernando Gomes tinha a cabeça a prémio. O ministro aguentou a semana, mas não sobreviveu ao verão. Foi exonerado do seu cargo a 14 de setembro do mesmo ano.

Em “País Irmão”, série que a RTP estreia na próxima segunda-feira, 11 de setembro, em horário nobre (21h), há um escândalo e uma distração. As proporções são maiores, tudo se passa no Portugal da ficção. Há um “caso que não deve ser mencionado”, o Voldemort de “País Irmão”. E há uma solução apresentada pela Ministra da Cultura (Margarida Marinho): criar uma neblina para o povo, opinião pública, e neutralizar qualquer dano caso o caso se torne mesmo um caso. A ideia? Produzir a maior telenovela numa união de esforços entre Portugal e Brasil.

Mesmo que seja ficção a ideia não é assim tão excêntrica. Portugal em horário nobre (e atualmente para lá do horário nobre) alimenta os portugueses de telenovelas portuguesas e brasileiras. João Tordo, um dos criadores da série, realça isso: “Portugal é o país do futebol e das telenovelas. Estamos constantemente a levar com futebol e novelas. Nós queremos ver isso para ficarmos distraídos, porque isso retira-nos da nossa vida, tira-nos da realidade. E estamos distraídos por um ou por outro e era isso que também queríamos abordar”.

Margarida Marinho é a Ministra da Cultura e tem um plano para distrair o povo de um escândalo. © Divulgação

“País Irmão” foi escrita por João Tordo, Tiago R. Santos e Hugo Gonçalves e realizada por Sérgio Graciano. A ideia base estava na gaveta há algum tempo, João Tordo e Tiago Santos tinham escrito um argumento para um filme, um mockumentary, em volta da produção de uma telenovela, onde um pai e um filho com uma relação conturbada eram centrais. Ficou na gaveta até que Nuno Artur Silva os contactou, resgataram o projeto e transformaram-no em série juntamente com Hugo Gonçalves. Sobrou pouca coisa da ideia original, há a telenovela e há o pai e o filho, mas são apenas duas das cerca de 20 personagens principais (isso fica para daqui a pouco).

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“Isto foi um bombom”

O argumento é ótimo, a série está muito bem escrita. É algo que transparece logo nos dois primeiros episódios, “País Irmão” vai além do entretenimento em volta do governo e telenovelas. Há críticas latentes a vários aspetos da sociedade portuguesa, e não só, feito sem qualquer azedume. Tiago R. Santos descreve-a como “muito sustentada na realidade, não queríamos estar a fazer coisas absurdas para ter piada, mas construir personagens, respeitá-las e a acompanhá-las num processo absurdo, mas sempre com os pés no chão”.

José Raposo, que interpreta um autor de novelas nas ruas da amargura, remata: “Este texto tem a capacidade de gozar com os atores, guionistas, produtores. No fundo os autores gozaram com tudo o que de mal se passa nos nossos meios audiovisuais, no sentido de apontar os seus defeitos e limitações. E goza com o jornalismo cor-de-rosa e com aquele mais elitista.” Tanto Tiago R. Santos e José Raposo querem dizer a mesma coisa: em “País Irmão” não há tiro ao boneco. O humor, ou a crítica (se existir preferência por esse ângulo) não é dirigido a alguém em particular. Não há caricaturas.

José Raposo, um ator de novelas nas ruas da amargura. © Divulgação

Esse foi um dos elementos que atraiu Sérgio Graciano: “A piada está sempre noutra coisa que não na cara, mas nas palavras, ditas com a naturalidade que dizemos no dia-a-dia. Nem todos podemos ser bons, nem maus, nem estar sempre a rir ou chorar, e achei que não devíamos caricaturar. O tom da série é pouco comum e era um caminho que tínhamos de experimentar. A piada está mais na situação do que na interpretação, é uma coisa feita com um hipernaturalismo, a piada vem do que está escrito.”

Os próprios argumentistas nem se pouparam a si próprios. Tiago R. Santos reforça: “Tudo é passível de ser desconstruído, de ser atacado. Eu gozo comigo próprio. E a partir do momento em que era isto que queríamos a fazer, não estávamos a escolher um alvo, a ideia da série é que tudo é um alvo. E deram-nos imenso espaço de manobra para fazer isso.” E parece que quando se fazem as coisas assim, isso resulta. Tal como explica José Raposo: “Qualquer actor chama a isto um bombom. Isto foi um bombom, não é todos os dias que nos aparece um argumento assim.”

TAC cultural? “No prob”

Victória Guerra interpreta uma jornalista de uma publicação cor-de-rosa. Na sua primeira cena tem de entrevistar um ator que aprendeu a não completar palavras (é tão absurdo e absurda a forma como ele reclama isso como um dom). Tudo é reduzido para bem da comunicação, complicando-a. Os “no prob” sucedem-se, até o seu próprio nome é reduzido (e sabe-se que até vai ser usado para uma marca de roupa íntima). Está cheio de si. Victória Guerra nem quer acreditar no que tem à sua frente.

Ela sabe que é melhor do que aquilo, de que pode fazer melhor do que aquilo. E que, no fundo, aquilo é nada. As revistas cor-de-rosa alimentam o sistema das telenovelas e, por isso, tinham de estar presentes. Não há um apelo ao verdadeiro jornalismo, mas há uma brincadeira com a situação, com o facto de existirem. Esta é uma das diversas dimensões de “País Irmão”. Há mais do que a televisão, as revistas, a política, o meio audiovisual, até a religião. Não é um retrato de um país, são slides do dia-a-dia ao natural. Há uma naturalidade constante nas cenas de “País Irmão” onde o texto está sempre a vencer. É o texto, e o texto dito pelos atores, que recorda dessa capacidade fabulosa, e muitas vezes menosprezada (por medo, vergonha, sabe-se lá), de nos rimos de nós próprios.

Victória Guerra na redação da revista cor-de-rosa onde o que interessa são os famosos. © Divulgação

Margarida Marinho (que desempenha o papel de Ministra da Cultura) evidencia isso: “Esta escrita a três mãos reflete alguma facilidade em tocar naquilo que supostamente é tido como sabido, mas que não é de alguma forma tocado. Estamos a fazer um TAC cultural a estas relações que só aparecem nas frases finais das revistas e jornais, com palavras simpáticas e não vemos o lado da sombra. ‘País Irmão’ é um TAC cultural e político, reforça que o audiovisual tem uma força enorme. Em Portugal a televisão e a telenovela têm uma força que muitas vezes a educação não tem. Chega a muitos mais lados do que as escolas. E a série é uma boa forma para se perceber como isto funciona, como estas relações são quase são algo infantis quando acontecem na realidade.”

A Corte Tropical

O tema da telenovela dentro de “País Irmão” ironiza a própria solução do governo na série: esse grande momento de união entre Portugal e Brasil, quando D. João VI fugiu dos franceses e levou a sua corte para o Brasil. Que melhor tema do que um dos aspetos mais caricatos da nossa história? Para Hugo Gonçalves é uma escolha que vai para além da ironia: “Tem mais graça, quando imaginas as pessoas de peruca e traje de época tem mais graça. E havia uma série de elementos que uniam os dois países e foi a única vez que um império teve a sua capital fora de metrópole. E criou-se um ponto de ligação entre os dois países.”

“A Corte Tropical” é um título sexy para uma telenovela com tantas ambições. “País Irmão” um título humilde para uma série que promete tanto nos seus primeiros episódios. Talvez não roube espectadores às telenovelas que passarão à mesma hora nos outros canais, mas devia. A qualidade das séries portuguesas tem aumentado nos últimos anos e será uma pena se ninguém estiver cá para contar. Porque não viu. E “País Irmão” é uma que se abre mais a cada episódio e que dá vontade de ver mais. É difícil de perceber para onde irá, mas percebe-se que dificilmente irá – ou ficará reduzida – àquilo que a premissa aponta.

“Os episódios não são fechados. Há coisas que se fecham nos diversos enredos e há muitas personagens, cerca de 70, sendo 15 a 20 principais. É como na vida, tens aquelas pessoas que vão emergindo e submergindo, e queríamos fazer isto com ‘País Irmão’. Apesar de detetares alguns protagonistas no início, há vários núcleos, seja o dos velhos, da política, da telenovela, da família do Luís (Afonso Pimentel), etc. Há personagens que desaparecem e surgem outras, para que tu possas criar uma empatia. Depois estão todas atadas por um fio. No primeiro episódio as ligações não são evidentes. Tu suspeitas que há alguma coisa que as fará convergir e a cada episódio tens uma recompensa. A vida de algumas personagens lança a vida de outras”, conclui Hugo Gonçalves.

No primeiro episódio José Raposo grita duas vezes: “A novela morreu!”. Vale a pena deixar isso para outra conversa; mas com “País Irmão” a série portuguesa está bem viva.