“Conto de fadas de quem não tem imaginação”, “poesia da mesquinhez”. Foi assim que Fernando Pessoa descreveu o romance, género literário de que nunca gostou particularmente. Apesar disso, existem no espólio do poeta rascunhos de dois romances que — como muitos outros textos — ficaram por acabar. Reacção e Marcos Alves foram escritos por volta de 1909, numa fase da juventude do poeta conotada com a famosa Empresa Íbis — Oficinas a Vapor, uma tipografia que funcionou entre 1907 e 1910 e que constitui o primeiro projeto empresarial de Pessoa.

As duas tentativas de romance estão agora acessíveis ao público graças à nova edição de ficção pessoana da Assírio & Alvim, que tem vindo a publicar a prosa de Pessoa. O volume, A Porta e Outras Ficções, é da responsabilidade da investigadora Ana Maria Freitas, que se tem dedicado ao estudo da ficção do poeta português, menos conhecida do público. Foi ela, aliás, que apresentou no Congresso Internacional Fernando Pessoa, no início de fevereiro, uma comunicação sobre Reacção, romance que se passa no final da monarquia e que tem como personagem principal um anarquista, mas onde também entra um padre conspirador e uma condessa malvada e defensora da monarquia. Marco Alves, por outro lado, fala sobre uma pobre alma possuída pela “agoniada tristeza de não ter feito nada”.

Além destes dois textos inacabados, A Porta e Outras Ficções inclui sete contos escritos por Pessoa mais ou menos na mesma altura. Três deles são em em português — “A Tontura pela Escuridão”, “O Livro do Rei Igorab” e “A Hora do Diabo” — e quatro em inglês — “The Door”, “A Very Original Dinner”, “Czaresko” e “The Eyes or Le Théatre Ximéra”. Nestes últimos é possível sentir a influência de Edgar Allan Poe (nomeadamente dos seus Tales of Mystery and Imagination ), poeta e contista norte-americano de que Fernando Pessoa gostava bastante.

O volume chegou às livrarias neste mês de setembro

No que diz respeito “A Very Original Dinner” e também a “A Tortura pela Escuridão”, existem algumas “questões de autoria”. De acordo com Ana Maria Freitas, existe um manuscrito de “A Very Original Dinner” (provavelmente um dos contos mais conhecidos de Pessoa, já que chegou a ser publicado individualmente e integrado em várias edições dedicadas à ficção pessoana) datado e assinado por Alexander Search. Search, o mais importante heterónimo inglês de Fernando Pessoa e figura central no universo pessoano até à criação de Caeiro, Campos e Reis, terá surgido por volta de 1906, depois da chegada de Fernando Pessoa a Lisboa. A ficha bibliográfica que Pessoa lhe criou refere que nasceu no mesmo dia e no mesmo local que o seu criador, ou seja, a 13 de junho de 1888, em Lisboa. Terá morrido em 1908, aos vinte anos, mas a sua obra continuou: existe um poema assinado por ele e datado de 1911.

No caso de “A Tortura pela Escuridão”, este pertencerá a Vicente Guedes, personagem que terá surgido na mente do poeta português por volta de 1909 para desempenhar o papel de tradutor e autor dos contos que a Íbis iria publicar — os “Contos íbis” –, como “Czaresko”, incluído no presente volume. Em Eu Sou Uma Antologia, Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari referem que “Vicente Guedes foi tudo isto e muito mais e muito menos, visto que escreveu vários poemas e começou mais de quatro contos, mas não traduziu praticamente nada e abandonou o Livro do Desassossego por volta de 1920, sendo este projeto retomado só anos mais tarde, mas já pela mão de Bernardo Soares”. “Guedes foi uma dessas figuras prolíficas e multifacetadas” que, tal como Alexander Search, antecipou “as personagens maiores dos anos posteriores”.

Os sete contos agora publicados são uma pequena amostra da extensa obra de ficção de Fernando Pessoa, que permanece em grande medida inédita. Contudo, os dois romances são os únicos do género encontrados no seu espólio. Porquê? “Com efeito, o autor evita os formados narrativos mais longos, provavelmente pela razão que indica num apontamento”, refere a investigadora Ana Maria Feitas. É que Pessoa achava “difícil, senão impossível, manter, num longo texto, a perfeição desejada”. E como sabemos, Fernando Pessoa era um perfeccionista.

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