Há duas formas de encontrar os portugueses pelas ruas do bairro mais antigo de Lisboa, que este sábado à noite recebeu o último dia do Caixa Alfama: olhando para os pratos deles ou, então, para os telemóveis. Os portugueses continuam a preferir a bifana com mostarda e “uma imperial fresquinha, fachavor“, enquanto os estrangeiros escolhem o “more avec dês frites“, desafiando o francês dos empregados de mesa – – e a gastronomia do país.

Mas o que é mesmo mais flagrante está nos ecrãs brilhantes que todos põem em cima da mesa: os estrangeiros aproveitam para publicar fotografias no Instagram ao lado da estátua de Fernando Pessoa; os portugueses levam as mãos à cabeça com o jogo do Benfica. No fim de contas, no entanto, estão todos cá para o mesmo: o fado. Ou fadô.

Cheira a sardinha, batata a murro e vinho quando uma marcha da junta de freguesia passa à frente do Museu do Fado, onde já muita gente ouvia a fadista Nathalie, que está atualmente a gravar um disco. Ali perto, à frente do Grupo Sportivo Adicense, a festa é outra. Há muita, muita gente a tentar entrar: uns admitem ser porque querem escapar ao frio, que embora menos cortante continua a arrepiar; mas outros querem mesmo ouvir o fado do Porto de Vítor Miranda ou ver como a jovem voz de Vera Monteiro se safa a cantar os fados tradicionais de Lisboa.

E, para isso, vale tudo. Uns dizem que são o Presidente (mas não dizem do quê), alguns são secretários “e trago as três bailarinas” e há senhoras que juram que estão grávidas, mas entre risos confessam que “estão é gordinhas”. Certo é que a fila lá se vai esvaziando: a cada cinco desistentes entram três novos espectadores, “que é para não sobreaquecer lá dentro”. Nem as queixas – – “eu sou fadista”, “eu sou a mãe da fadista”, “eu tenho os olhos azuis mais bonitos de Alfama mas deixei-os em casa” e por aí adiante – – quebram esta matemática.

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Mas vale a pena a espera. O palco está decorado como numa festa popular, há poucos lugares sentados e uma guitarra portuguesa pendurada no tecto que vai baloiçando ao sabor das ventoinhas que aliviam o ar saturado. A vantagem de ter um público mais pequeno que a maioria dos palcos é que o fado que aqui se canta não é só um concerto: é uma conversa mais intimista. Vítor Miranda, de camisa negra meio desabotoada, um colar e brincos de ouros, cabelo branco comprido e bigode, soube aproveitar bem a familiaridade do espaço: diz que quando a morte o apanhar deve vir a cantar “Ali à Meia Laranja”, deixa que a vizinhança cante com ele “Noite Cerrada”, de André Baptista, e no fim agradece a todos a presença. Sem saudosimos: “Para o ano, se Deus quiser, cá estaremos”.

Descendo a colina de Alfama, várias senhoras à janela abriam portas ao Largo das Alcaçarias, onde ainda se podem espreitar os azulejos que ilustram o tempo em que as quatro bicas de água tépida protagonizavam os banhos de água tépida da nobreza. No lugar da nascente estava agora um palco dominado pelo sotaque paulista de Edu Miranda, que, com a guitarra portuguesa à mão, arrancou risos condescendentes aos espectadores quando, com erres muito enrolados, anunciou que ia tocar “Darr de Beberr à Dorr“. O sotaque só ajudou à festa: no final, era opinião unânime que Edu Miranda e os dois colegas brasileiros, só com instrumentos, “deram um show de bola” e que “ninguém esperava uma coisa destas”.

O brasileiro Edu Miranda saiu-se bem, mesmo com sotaque. Créditos: João Porfírio/ Observador

Quando o fado sambado de Edu Miranda deu lugar ao piano de Júlio Resende, as opiniões dividiram-se: houve quem achasse que isto da inovação tem os seus limites e comentasse que juntar um piano, um bandolim, uma bateria e um violoncelo ao fado já era muita coisa para digerir.

Ao nosso lado, um confesso apaixonado pelo fado apostou com o amigo que a calmaria de “Silêncio para o Fado” ia “esvaziar o Largo em 20 minutos”. O amigo, no entanto, tinha outra opinião: “Isto é muito à frente, mas pensa lá no Paulo Bragança há uns anos. O que parece muito diferente hoje pode ser a forma natural de fazer as coisas amanhã”.

Júlio Resende ao piano no Largo das Alcaçarias. Créditos: João Porfírio/ Observador

Ainda antes de Paulo Bragança assumir o palco, numa atuação de um grupo de cinco amigos que passou por nós mais tarde adjetivou de “soberba”, seguimos para a Igreja de São Miguel na esperança de fugir às filas intermináveis que se esperavam para ouvir os últimos minutos de Maria Ana Bobone e a prestação de Gonçalo Salgueiro.

Parecia impossível: a fila já ia a meio da rua quando lá chegámos. Ainda assim, a paciência resultou: numa igreja luxuosa completamente cheia, Gonçalo Salgueiro cantava com o tom melancólico que o caracteriza e que o público aplaude. Cantou muitos fados tradicionais, mas fugiu a Amália Rodrigues, porque “já estão por cá muitos fadistas com os fados” da icónica artista portuguesa. Ainda assim canta à Mouraria e, depois de pedir que se feche a porta da igreja por causa da faringite, até canta um Avé Maria, mesmo a combinar com a talha dourada que inunda o altar de um das mais importantes monumentos do bairro.

Gonçalo Salgueiro cantou à frente da talha dourada joanina do altar da Igreja de São Miguel. Créditos: João Porfírio/ Observador

Já no Palco Caixa, o mais importante do festival do fado, Marco Rodrigues apresentou pela primeira vez ao vivo o álbum acabadinho de sair do forno e que dedicou ao filho Bernardo, “Copo Meio Cheio”: “Quis saber como é que artistas que nada têm a ver com o fado se adaptam a compor para um fadista”, explicou ele ao público. E adapta-se bem, ficou provado. Quando o rapper Boss AC subiu ao palco animou mais gente do que se esperava num público cuja faixa etária não descia muito dos 50 anos.

Ao cantar “Homem do Saldanha”, uma homenagem ao Senhor do Adeus escrita pelo rapper com Carlos do Carmo, Boss AC arrancou sussurros de surpresa a quem o ouvia: afinal, um rapper também é fadista. Antes, cantara, com Marco Rodrigues, “É Sexta-Feira”. Esta toda a gente conhecia. Até um senhor na casa dos 70 anos, que fez um direto para o Facebook a partir do telemóvel enquanto filmava o ecrã gigante do palco, embora estivesse a dois passos da fila mais próxima aos artistas.

Boss AC cantou ao lado de Marco Rodrigues no último dia do Caixa Alfama. Créditos: João Porfírio/ Observador

Foi assim que Marco Rodrigues foi animando o público. Até os velhinhos que levaram cadeiras para a primeira fila com mantas às costas se levantaram quando o fadista português cantou uma letra preparada por Carlão sobre um homem do bairro que trocou os cigarros de alcatrão por cigarros elétricos. A história do Vapores, que “tinha swag a andar”, valeu umas gargalhadas a todas as gerações no concerto de Marco Rodrigues. E até quando cantou um fado com 500 anos, o artista soube tirar o pó canção e fazer rir quem o acompanhava: “Esta é uma canção muito antiga. E diz: ‘Coração, olha o que queres que mulheres são mulheres’. Vejam lá que já era assim há 500 anos”.

Marco Rodrigues apresenta o mais recente álbum, “Copo Meio Cheio”. Créditos: João Porfírio/ Observador

Quinhentos anos foi também o tempo que tivemos de esperar pelo concerto de Gisela João. Pelo menos foi assim que a meia hora de espera pareceu com o frio a apertar cada vez mais. É que as fitas prateadas que a artista quis incluir no espetáculo não paravam de se enrolar, levando o público a aplaudir e gritar pelos técnicos que os tentavam desembaraçar. Mas Gisela João vinha com uma promessa: “Está muito frio, mas eu acredito que vou aquecer os vossos corações”.

E aqueceu: cantou “Labirinto”, um poema de David Mourão-Ferreira que fez alguém gritar que aquilo sim, era fado. Depois cantou “O Mundo É Um Moinho”, do brasileiro Cazuza, e explicou de onde veio a canção: “É a história de um pai que não foi à escola, que não sabe muito das coisas mas sabe muito da vida e que quer enviar uma mensagem à filha, que na adolescência preferiu ir pelo caminho mais fácil e tornar-se prostituta. Quando canto isto lembro-me sempre da malta mais nova, para que eles nunca se esqueçam que é preciso ter calma, que no fim corre tudo bem”. E correu tudo bem.

Só depois de “Não Venhas Tarde”, um clássico que a cantora já tinha interpretado na edição anterior do Caixa Alfama, é que o bailarico de Gisela João começou: “Agora é para abanar, para saltar e cantar”, disse ela com o seu sotaque do norte. Cantou — e dançou — a castiça “Senhor Extraterrestre” e no fim desatou à gargalhada: “Saiu esta semana o videoclip desta música e é muito engraçada. Quando eu pergunto ao extraterrestre pelos filhos ele mostra a fotografia de uma lesma. Com chucha e tudo! É mesmo engraçado”. E toda a gente gargalhou da gargalhada de Gisela.

Gisela João num dos momentos mais animados da noite. Créditos: João Porfírio / Observador

Gisela João diz que é de poucas explicações sobre as canções que escolhe, mas não é bem assim. Porque é que escolheu “Sou Tua”? “Porque nunca vou entender porque é que dizem que esta canção é velha demais para mim. Não há mais bonita declaração de amor que uma mulher possa fazer a um homem. Ou uma mulher a outra mulher ou um homem a outro homem”. E “Canção”, de Cecília Meireles? “Porque sabem que falo sempre dos meus sonhos. Faz-me lembrar os sonhos que temos mas que não são nossos e que precisamos de deixar partir para vivermos em paz”. E “Llorona”? “Porque há músicas estrangeiras que também parecem fados”. E, já agora, porque é que cantou “Quando os outros te batem, beijo-te eu”? Simples: porque é obrigatório num espetáculo de Gisela João. Já bastaria não ter cantado “Meu Amigo Está Longe”, para desalento do público.

Na reta final do concerto, Gisela João mostrou-se tão bairrista como sempre foi: sentou-se e descalçou os sapatos altos (“Estou cansada, com isto não posso saltar à minha maneira. Está frio, mas também a seguir vou de férias por isso está tudo bem”). E cantou, dançou e fez saltitar o vestido de folhos azul ao som do “Fado Saloio, filhos”. E, perante os insistentes aplausos da despedida, Gisela respondeu: “Obrigada por perceberem. Às vezes tenho a sensação que ninguém percebe um charuto do que eu digo”. Nós entendemos, Gisela.