O nome assentou-lhe bem. Agostinho, como o Santo colossal, como o pensador íntimo e metafísico, como a voz do fim do mundo Antigo; da Silva, popular, português por antonomásia, igualitário de tão comum. Agostinho da Silva tem o seu naco de tudo isto: uma aura de santo cenobítico, mais espiritual do que doutrinário, obra como pensador e como divulgador, mestre do povo ignaro, e a vida meio pícara que tanto encantou Portugal nos anos oitenta e noventa.

Não tem todos os elementos na mesma proporção, é certo: o pensador deve ao pedagogo e o profeta errante, que lembra Diógenes a passear pela Grécia, mais do que na candeia, precisava de luz que iluminasse algumas das suas passagens mais obscuras; a figura, no entanto, tem a sua originalidade e o mestre a sua importância.

Agostinho da Silva tinha o espírito indicado para um pedagogo. Não o dizemos apenas pela obra neste campo. É certo que os seus cadernos de divulgação cultural, os cursos para o povo, as traduções de obras maiores da literatura e do pensamento, são uma obra assinalável. Agostinho da Silva tanto biografou Da Vinci como Lamennais, tanto apresentou Cervantes como escreveu sobre ciência. Nisto é herdeiro de uma tradição que vem do século XIX, que já na sua altura parece um pouco datada e ingénua mas que dá ainda alguns frutos interessantes. O “pedagogismo radical”, como lhe chamou a dada altura o “Comércio do Porto”, da geração de 70, a ideia de que uma educação completa iria elevar o povo, que é possível uma educação abnegada nos vários campos do saber, ainda tem eco em Agostinho da Silva e no seu companheiro de Seara Nova António Sérgio (embora de modos diferentes) ou na Biblioteca Cosmos de Bento de Jesus Caraça.

Os textos de divulgação de Agostinho da Silva têm, assim, uma espécie de candura progressista, um tom entre o paternal e o conhecedor, próprios desta ideia de educação. As suas biografias são breves, os seus temas variados, como quem julga que, antes de mergulhar no conhecimento profundo, é preciso que o povo chapinhe por todas as áreas do saber. Pouco interessa se uma versão demasiado simples deturpa a percepção de um assunto; Agostinho da Silva, como Herculano ou Oliveira Martins, é capaz de reduzir um tema ao seu ponto de compreensão mínimo; não expõe, certamente, todos os problemas. Escolhe os mais conhecidos e trata-os com didactismo e uma clareza exemplares.

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É no seu método, aliás, mais do que no conjunto dos seus cadernos, que se percebe o seu espírito de professor. Agostinho da Silva não é apenas um simplificador no sentido mais vulgar do tempo, como uma espécie de tesoureiro avaro que corta a enxúndia do pensamento sem pudor. A sua curiosidade voraz, o interesse que foi manifestando, primeiro pela Civilização Grega, depois pelo Cristianismo, pelo Islão ou pelo Budismo, a busca de temas portugueses e lusófonos, mostram a sua vocação de instrutor. Agostinho da Silva tinha um traço comum a vários Homens de cultura, que consiste em admirar e fascinar-se ao mesmo tempo com as coisas mais contraditórias. E se nalguns casos este fascínio produz sínteses admiráveis (a síntese de S. Tomás entre Aristóteles e o Cristianismo, ou a sínteses de Maurras entre o positivismo e o pensamento contra-revolucionário), noutros manifesta-se sobretudo numa vocação pedagógica. Agostinho da Silva podia ensinar tudo com a mesma paixão porque de facto admirava tudo.

Esta, que é uma das suas boas qualidades como mestre, é talvez um dos seus principais defeitos como mestre. Agostinho da Silva não sintetiza os seus vários campos de interesse numa forma nova de pensar; no máximo, redu-los a uma espécie de mínimo denominador comum. Assim, o seu interesse pelas religiões acaba por estar na apologia comum da bondade, o seu interesse pelo pensamento de diferentes épocas na procura do Bem, enfim: Agostinho da Silva não procura o que há de específico em cada pensamento, mas sim o que há de comum; o seu pensamento acaba, assim, por tratar no mais das vezes do vulgar. Mais do que doutrinas, interessam-lhe sentimentos, daí que o seu pensamento, embora pareça eclético, acabe por ser monótono. É óbvio que a busca do Bem tanto se pode encontrar na tradição judaica como na Cristã, em Platão e em Uriel da Costa; o método de cada um o procurar é que faz a diferença. Agostinho da Silva prefere realçar a pergunta comum e não fazer caso das respostas; daí que critique todo o tipo de ortodoxias, que a sua ideia de pensamento Português possa incluir tanto o Leal Conselheiro como Leão Hebreu ou que a condenação de Lamennais lhe pareça injusta.

A sua heterodoxia (mesmo que na sua boutade recuse a heterodoxia para lhe chamar paradoxia) consiste mais em agregar do que em divergir. Mesmo que, a páginas tantas, se pareça dar conta da impossibilidade de juntar tudo aquilo que quer juntar, mesmo que, a partir daí, tenha desenvolvido a tese de que se não devia preocupar com uma coerência e com uma lógica Aristotélica que a vida não tinha, é ainda deste espírito associativo que lhe vem grande parte da aura.

Isto porque, reduzido à pergunta pelo Bem, Agostinho da Silva parece ter devolvido a sua vida a uma espécie de pureza filosófica inicial. A sua vida aventurosa, os cargos modestos, o ensino aos pobres, tudo isto tem uma aura Grega de amor pelo pensamento e de crença naquilo que professa. Agostinho da Silva encarnou à vez a ideia do sábio puro, do sábio incómodo e do sábio louco. As suas tiradas à Diógenes ou a sua dialética às tantas incompreensível têm sempre o tom de quem quis fazer da sua uma vida verdadeiramente dedicada ao saber, à custa do conforto e sem medo do ridículo. E isto, mesmo que o pensamento não nos atraia, mesmo que não acreditemos nos seus métodos, é suficiente para fazer da sua uma figura curiosa.

[o Dia Literário Agostinho Da Silva acontece este domingo, 24 de setembro, no CCB, em Lisboa. A entrada é livre. O programa, que começa às 15h, pode ser consultado aqui.]

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.