Estávamos a 26 de setembro de 2015. Era um jogo de futebol americano. Mais um jogo, apenas mais um jogo, neste caso entre as universidades de Geórgia e Southern. Faltavam dois minutos para terminar o terceiro quarto, mas o resultado estava mais do que feito (48-6). Devon Gales tentava bloquear Marshall Morgan. O impacto foi violento, Devon ficou no chão. E ficou, ficou, ficou. O estádio gelou, os jogadores começaram a rezar enquanto choravam.

Qualquer jovem de 20 anos tem um mundo de sonhos a gravitar na sua cabeça. No caso de Devon, era um mundo do tamanho de um campo de futebol universitário. Depois de ter sobrevivido quase por milagre à nascença devido a um problema de saúde, foi vítima de bullying na escola mas escudou-se no desporto para se expressar e, mesmo sem ter recebido nenhuma bolsa universitária, seguiu as pisadas do pai e foi estudar para a Universidade de Southern. Porque ele queria mesmo era jogar futebol americano. O sonho que acabou naquele lance.

Só via o céu quando caí. Pensava que me tinha de levantar porque a minha equipa precisava de mim. Mas não conseguia, estava ali deitado. Não conseguia mexer nada a não ser as minhas mãos, é um sentimento assustador. Foi um acidente esquisito, na verdade fui eu que fui contra ele. Mas só pensava que ia ficar, que ia ficar bem”

Os pais sentiram o choque. Mesmo não estando lá, era como se estivessem. Mas esta história tinha outro lado, o lado de quem tinha estado envolvido num lance que causara uma grave lesão a um colega. Marshall Morgan, o jogador que bateu o recorde de pontos extra no college, nasceu na Flórida, estudou por lá e tão depressa praticava desportos radicais como o snowboard ou o surf como ensaiava umas pancadas no golfe. Mas o futebol americano falou mais alto e, entre muitos convites, acabou por aceitar ir para a Universidade da Geórgia. Tinha uma particularidade: ao contrário de outros jogadores da sua posição, era raro fugir ao contacto em caso de necessidade.

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Quando acabou a jogada, fui para o lado e ele continuou deitado no chão. Comecei a ficar passado. Só pensava ‘Podia ter sido assim ou assim, espero que ele se mexa’. Percebi que me vinha bloquear e só quis colocar-me a jeito para absorver a força da placagem dele. A forma como colidimos foi trágica”

Devon foi operado de urgência, numa primeira fase para estabilizar a coluna. Essa parte correu de forma satisfatória, mas continuou nos cuidados intensivos. “Os médicos disseram-me que estava paralisado. Uma parte de mim só queria chorar, a outra parte sabia que me tinha de manter forte por causa da minha família”, recorda. Vivia-se um verdadeiro drama no hospital e através dos media, que foram acompanhando a complexidade do caso. Marshall não sabia o que fazer. Estava perdido. “Comecei a ouvir que ia ficar paralisado. Não podia acontecer, não podia… Pensei que os pais deles iam odiar-me, que as pessoas iam começar a olhar para mim de lado. Mas tinha de lá ir”, conta.

No dia a seguir, o jogador da Universidade de Geórgia deslocou-se ao hospital. Devon estava de novo no bloco operatório. Cruzou-se com a mãe dele, Tanisha (que, não sendo a mãe biológica, o criara desde os três anos). Abraçaram-se e choraram, sabendo que estavam ali naquela situação mas que podia ter sido ao contrário. Foi nesse dia que estiveram juntos pela primeira vez; hoje, são como duas famílias numa só.

Dois anos depois, o Bleacher Report fez uma reportagem sobre os últimos dois anos de ambos. Da recuperação de Devon Gales no Shepher Center, em Atlanta, à fugaz passagem de Marshall Mason pela Liga Profissional de Futebol Americano (NFL) pelo Buffalo Bills (hoje está sem equipa), focando sobretudo a relação de amizade que ambos criaram desde novembro de 2015, altura em que a Universidade de Geórgia convidou Devon e a família para assistir a um jogo frente a Southern. “Tudo o que se passou fez de nós irmãos”, explica.

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Beautiful wedding of my brother @marshallmorgan13

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O melhor exemplo aconteceu em março de 2017, no casamento de Marshall: Devon foi o primeiro a ser convidado e o amigo fez questão de ir buscá-lo à entrada da propriedade onde se realizou a cerimónia e apresentá-lo a todos os que por lá estavam. “Senti-me como se fosse família dele. E afinal nós somos mesmo família”, conta.

“Passava-se tanta coisa na minha cabeça… Pensava no Devon. Todas as semanas ia recebendo notícias, todas as semanas era mais positivo. Isso motivava-me, era como se estivesse a jogar por ele. Queria que tivesse orgulho em mim (…) Começámos a falar antes dos jogos, desejava-me sorte e foi assim que consolidámos esta relação. Ele é muito forte, não sei se conseguiria ser tão positivo como ele é”, descreve Marshall.

Depois de terem sido notícia nos meios nacionais em 2015, Devon e a família voltaram aos media nos anos seguintes: em 2016, a casa da família foi vítima das cheias em Louisiana e tiveram de mudar-se para Atlanta; este ano,em maio, colocou um vídeo no seu Instagram onde dava os primeiros passos quase dois anos depois da lesão.

Tenho saudades de jogar. Às vezes penso como era bom não ter colidido com o Marshall, mas não podemos reescrever o que já aconteceu. E lembro-me que, na primeira vez que o vi, só queria fazer-lhe ver que a culpa não era dele (…) Eu estou cá para ele e ele para mim, como se fossemos irmãos. E acredito que ainda vou voltar a andar”, salienta Devon

No dia 26 de setembro de 2015 houve um jogo de futebol americano. Mais um jogo, apenas mais um jogo. Que acabou por ter um episódio trágico. Dois anos depois, os protagonistas desse lance, que não se conheciam, são como irmãos. E servem de inspiração. Para um, para outro e um pouco para todos.