Título: “Os Corpos”
Autor: Rodrigo Magalhães
Editora: Quetzal
Páginas: 282

Todas as épocas têm as suas modas literárias. Na nossa, parece ter ganho requinte a mudança de voz narrativa. Um capítulo vem filtrado pela mente de uma mulher, para logo no capítulo seguinte o autor despir a fatiota feminina e engrossar a letra num estilo de camionista. Em geral, o artifício é um tanto tolo: cheira a novo-rico, a querer mostrar de uma vez a panóplia de soluções do seu guarda-fatos, ou a um resquício de infantilidade, como uma criança que quer todos os brinquedos ao mesmo tempo.

Nos melhores casos, sentimos a narrativa interrompida, ficam as personagens a meio, sentimos o esforço da mudança de perspectiva e a leitura converte-se numa cerimónia de permanente troca de vestido.

Nos piores, a situação é mais grotesca: o autor não tem habilidade para mais do que uma voz, mas teima em travesti-la de personagens e pontos de vista diferentes, numa sucessão carnavalesca de má-qualidade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A técnica, porém, pode ter o seu interesse; por mais que sirva como um escape para não aprofundar personalidades e estilos de escrita, por muito que interrompa abruptamente a cadência narrativa, também pode funcionar como uma espécie de repetição da cena em vários ângulos, quase como um cubismo literário, ou um acentuar da forma como a diferença de perspectiva pode alterar o modo de ver a realidade.

Naqueles que não se dedicam ao exercício por capricho, esta tem sido a justificação para a mudança de voz. Rodrigo Magalhães, neste Os Corpos, dá outra possibilidade, igualmente interessante, para a opção por esta técnica. Em primeiro lugar, é tal a multidão de personagens, é tal o coro de vozes diferentes que já nem se pode falar de uma guinada narrativa que atravanque a história: parte do interesse da história consiste em desvendar a quem é que pertencem as vozes e de que modos é que se relacionam.

Rodrigo Magalhães traça um universo meio caótico, à Bolaño, cheio de personagens superficialmente idiossincráticas, híper-conscientes dos seus gestos e ao mesmo tempo meio irresponsáveis, ineptas, atreitas à encrenca, e a narrativa entra nessa confusão – não se percebe bem o fim das suas acções, da sucessão de histórias e personagens, de tal modo que o encadeamento tem de ser descoberto.

A trama – um homem encontrado morto na praia, embalsamado depois de ninguém o conseguir identificar – é detectivesca, e o mundo também: mete droga, homens de fato, um estilo directo, meio Raymond Carver, e acções que parecem significar sempre mais do que aquilo que significam. Acontece que o autor dá ao texto um mecanismo interessante, porque descentra o objecto do mistério: parece sempre que se está à procura do morto, quando no fundo este não é um fim, antes uma alavanca que motiva a confluência de várias histórias de desaparecidos.

O romance de Rodrigo Magalhães é, em vários aspectos, um romance formal, no sentido em que é a própria escrita que motiva o interesse detectivesco do enredo (desvendar de quem são as várias vozes e como é que se ligam) e que o finta no propósito inquisidor, já que parece apontar para a solução do mistério do homem morto, quando faz dele apenas o motor para várias histórias.

Este é um dos pontos técnicos mais interessantes no romance de Rodrigo Magalhães e, provavelmente, um dos aspectos que faz dele um escritor tão considerado pela crítica. É sempre interessante, para quem pensa a estrutura e o modo de ser de uma arte, um autor que faz depender o interesse da sua obra daquilo que é exclusivo dessa arte. O mistério cinematográfico que se resolve só com um plano, como na “Janela Indiscreta”, a tristeza que se adivinha só com um acorde, ou a narrativa que é completamente alterada pelo modo de escrever, como no caso deste romance.

Porque em tudo o resto, o romance de Rodrigo Magalhães é, se não vulgar, pouco mais do que competente. O colorido do ambiente é estiloso, mas ao estilo cinematográfico, submundo, jovens inteligentes mas não cultos, solitários, etc. As personagens não são muito estudadas, não lhes conhecemos os escaninhos psicológicos nem grandes particularidades de carácter. A linguagem (mais rica no primeiro livro) não é riquíssima mas não choca, sobretudo nos ambientes retratados, mas sobretudo a gramática é bastante fraca.

Num mundo que se quer rico mas não exibicionista, cheio de acção, sem paragens para figurações estilísticas, a gramática é a forma discreta de imprimir ritmo e riqueza. Ora, só na primeira página, encontramos dez gerúndios, de todas a mais pobre das formas verbais. A construção, aliás, é recorrente: Rodrigo Magalhães dá conta de uma acção e, logo a seguir, acrescenta-lhe outra com um gerúndio – “pegou no irmão, passando o braço dele sobre o seu ombro”, ou “a ouvir o refluir das ondas que se insinuava pelas janelas entreabertas, estranhando o silêncio das ruas”.

Ora, o gerúndio, além de na maior parte dos casos ser gramaticalmente discutível, é sobretudo uma forma pobre e preguiçosa. Quando se diz que “passando o braço pelo ombro” pode querer-se dizer que passar o braço foi a forma de pegar, que o passou enquanto pegava ou que passou o braço e depois pegou nele. O gerúndio tanto pode indicar sucessão temporal, como modo de fazer ou simultaneidade: torna-se, assim, uma forma preguiçosa de resolver problemas frásicos com uma forma verbal comum – quase como o equivalente estilístico de nomear objectos por “coisa”.

O desleixo, é certo, faz parte do estilo. Mas não devia ser o leitor a notá-lo.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.