Foi dia de regresso à Assembleia da República, depois das férias parlamentares e das eleições autárquicas — que tiveram ondas de choque políticas numa dimensão que António Costa mostrou reconhecer. Não só porque o disse com todas as letras, numa resposta ao PSD, mas também pela forma como falou com os seu parceiros durante todo o debate quinzenal. As autárquicas podem ter “doído” (a expressão é de Costa) aos sociais-democratas, mas o socialista sabe que também doeram à sua esquerda, sobretudo ao PCP.

Quando falou de pensões, por exemplo, até foi para se defender das reivindicações da esquerda sobre um novo aumento extraordinário. Disse que as pensões mais baixas vão ser aumentadas automaticamente (por via da lei de Bases da Segurança Social) acima do valor da inflação, no próximo ano, devido ao bom desempenho do crescimento económico. Mas fez também questão de sublinhar, por mais do que uma vez, que o aumento extraordinário, de 10 euros, trazido pelo Orçamento deste ano passado foi uma conquista do PCP, reconhecendo “o trabalho que o PCP tem feito na reposição dos direitos sobre as pensões”, como diz.

A próxima semana vai ser de negociações do Orçamento do Estado para 2018 e o primeiro-ministro sabe — depois de domingo, mais do que nunca — que vai ter de agradar à esquerda. E perante as reivindicações que lhe iam chegando das bancadas de PCP, Bloco de Esquerda e Verdes, dizia estar “confiante”na existência de “boas condições” para a negociação: “Não é querer ser irritante, mas otimista e confiante seguramente”. Carlos César, o presidente do partido e do grupo parlamentar, ainda acrescentava outro argumento para acalmar parceiros: Nas autárquicas, “a esquerda no seu conjunto teve quase mais um milhão de votos do que a direita coligada ou não”.

Os ecos e as dores da reviravolta autárquica

“Deve ter doído”: Era incontornável e António Costa, que abriu o debate, começou mesmo por referir as eleições do passado domingo saudando o “povo português pela forma como decorreram as eleições autárquicas” e também cumprimentar os autarcas eleitos, sublinhando que “este novo mandato será marcado pela concretização da descentralização como pedra angular da reforma do Estado”. Mas não tardou nada para a mensagem clássica de congratulação dar lugar à picardia política baseada nos resultados do dia 1. O PS reclama ter tido uma “vitória histórica”, contra uma “derrota estrondosa” do PSD, e Costa fez questão de tocar nesse nervo à primeira oportunidade. Hugo Soares tinha acabado de fazer a sua primeira intervenção no debate e Costa respondia-lhe dizendo: “Prefiro que ache que cheguei ontem do que olhar para si e sentir que está cá desde o século passado”. Na bancada do PSD ouviram-se protestos e gritos: “Que elegância!”. Costa rematou com a frase que ainda incendiou mais os ânimos: “Deve ter doído muito para ainda estarem tão incomodados quatro dias depois”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Lisboa sem maioria: Segundo momento em que as autárquicas vieram ao debate: Assunção Cristas, líder do CDS e candidata do partido em Lisboa (com uma votação histórica), intervém e diz que fará a suas propostas na área da habitação na Câmara de Lisboa: “Tanto mais que o PS perdeu a maioria na Câmara de Lisboa”.

A rã que queria ser boi: Mais uma tirada de Assunção Cristas sobre as autárquicas, dessa vez dirigida ao PCP que “tão desconsolado anda”, notou a líder democrata-cristã. Jerónimo de Sousa falou muito tempo depois, mas não se esqueceu da observação da líder do CDS e quando começou a sua intervenção dirigiu-se à bancada mesmo à sua frente e a Assunção Cristas para dizer apenas isto: “Lembra-me sempre a fábula da rã que queria ser boi” (em que a rã inchava para ser do tamanho do boi e depois rebentava).

Novidades: Pensões vão aumentar acima da inflação sem extras (e não só)

Pensões: A revelação foi feita pelo primeiro-ministro, para mostrar à esquerda uma boa conquista, mas também para — ao mesmo tempo — dar uma má notícia. PCP e Bloco de Esquerda continuam a reivindicar aumentos extraordinários de pensões, mas tudo o que António Costa parece ter para dar nesta altura é o que decorre automaticamente da Lei de Bases da Segurança Social. “Nas pensões podemos dizer algo importante: como este ano vamos crescer significativamente acima dos 2% na economia, isto significa que as pensões não vão ser só atualizadas até aos 2 IAS (Indexante de Apoios Sociais), todas vão ser atualizadas e as de mais baixo valor vão ter um aumento que não vai ser extraordinário porque resulta da aplicação da forma da lei”. Costa também calculou o crescimento da despesa com o aumento das pensões: “928 milhões de euros”. “É mais 50% do que o corte que a direita teria feito se estivesse a governar o país”, disse ainda. Só o aumento de pensões que resulta do crescimento da economia custará 295 milhões de euros.

Ainda as pensões: Mas há um problema, a esquerda não parece estar convencida. No PCP, Jerónimo de Sousa foi claro em dizer que “o que resulta da aplicação da lei das pensões não chega para recuperar o poder de compra perdido”. E pressiona mesmo com a situação atual da economia: “A própria evolução da situação económica demonstra que o aumento das pensões é justo e possível de alcançar”. Quando colocou a questão no debate pela primeira vez, Catarina Martins pressionou exatamente no mesmo sentido e com o mesmo argumento.

Rendas acessíveis: O tema do debate foi escolhido pelo primeiro-ministro: políticas de habitação. No debate foi questionado pelos Verdes sobre o que significava exatamente uma renda acessível. Costa explicou que “a partir de um preço de referência por zona, fixamos um preço 20% abaixo. É essa metodologia que nos permitirá definir o que é uma renda acessível, variando em função das áreas e também do índice de rendimento das famílias em cada concelho”. Mas não convenceu Heloísa Apolónia que teme que a medida “não tenha resultado efetivo”, ou seja, que “não ataque os valores especulativos” do mercado de habitação. “Não chega baixar 20%” as rendas, concluiu a deputada.

“Não há aumento de impostos”: A líder do CDS questionou o primeiro-ministro sobre eventuais subidas, no próximo Orçamento do Estado, de impostos, sejam diretos ou indiretos. “A proposta [de Orçamento do Estado] irá desiludi-la, porque não vai haver aumento do IRS sobre os rendimentos do trabalho”, respondeu Costa provocando Cristas que ainda ripostou: “Eu não disse [à saída do Palácio de Belém] que defendia um aumento do IRS. O senhor pode querer fazer política, mas não pode dizer uma mentira”.

A estreia do Hugo Soares. Um duelo de juristas, com Passos a rir

Estreia: Este era também o dia da estreia do novo líder parlamentar do PSD, que, com a saída anunciada de Passos Coelho da liderança do partido, e com as hostes a contar cabeças e espingardas, ganhou um novo relevo no partido. Sentando na primeira fila, com Passos Coelho ao lado, Hugo Soares foi o primeiro a questionar António Costa — e entrou numa troca de picardias tensa com o primeiro-ministro sobre o alegado furto de armamento militar de Tancos, que 97 dias depois ainda não foi explicado.

Quem é mais jurista que quem? Foi mais ou menos nestes termos que se fez a discussão. “Pode dizer se o que aconteceu em Tancos foi ou não foi um furto?”, questionou primeiro o líder parlamentar do PSD, voltando a sentar-se de seguida. A pergunta foi tão direta quanto a resposta de António Costa: “Se é jurista sabe que a qualificação jurídica resulta da investigação criminal. O Governo não faz investigação criminal”. E voltou-se a sentar também. Mas Hugo Soares voltaria a insistir: “Foi um roubo ou fui um furto?”

O duelo de juristas prosseguia com Costa a garantir que sabia o suficiente de Direito para saber que para além do furto e do roubo “há outros ilícitos criminais” no cardápio do código criminal. Tudo para dizer que “basta frequentar o primeiro semestre do curso para saber que em Portugal vigora a separação de poderes. Ou seja, não cabe ao Governo apurar se houve crime em Tancos — cabe à investigação judicial. Mas, diria Hugo Soares, nem era preciso frequentar Direito para saber que “é de responsabilidade política que estamos a falar”. O duelo ficou por aqui, mas prosseguiu por outras vias, desde as acusações de Hugo Soares a Costa por contratar pessoas (ora na Saúde, ora na Proteção Civil) pela amizade e ligação familiar e não pela competência: “O sr. não tem escolhido os seus porque são bons; escolhe porque são seus”. Sentado na bancada, Passos Coelho acompanhou esta troca de galhardetes com uma atitude descontraída: riu às gargalhadas.

Tancos. Responsabilidade política? Costa insiste que não

Não foi só Hugo Soares, do lado do PSD, que assinalou os 3 meses desde o furto de material militar e pediu responsabilidades. Também Assunção Cristas pediu responsabilidades. Costa respondeu da mesma maneira aos dois: disse que se tratava de uma investigação do Ministério Público, acrescentando que também ele estava curioso para saber o que aconteceu. Uma curiosidade que não caiu bem a Assunção Cristas.

Ministério Público é que investiga: “Eu falo em responsabilidade e o primeiro-ministro fala em curiosidade. O Ministério Público tem a sua função no apuramento da responsabilidade criminal, outra coisa é a responsabilidade política, essa é do seu Governo, do seu ministro e é sua”, afirmou. “O primeiro-ministro nunca quer assumir nenhuma responsabilidade”, disse a líder do CDS, já depois de o PSD ter seguido a mesma linha da “desresponsabilização” do primeiro-ministro. Para Costa, contudo, não há volta a dar: o caso do suposto furto de Tancos “não é responsabilidade política do Governo”.