Reduzir o número de horas em contexto de urgência hospitalar, emagrecer a lista de utentes por médicos de família e reverter na totalidade o corte das horas incómodas. Estas são as principais razões que movem os médicos para mais uma greve, depois da última, em maio deste ano.

Tanto a primeira como a segunda reivindicação foram aceites, em 2012, pelos dois sindicatos que agora exigem a sua reversão — Sindicato Independente dos Médicos (SIM) e Federação Nacional dos Médicos (FNAM). Em entrevista ao Observador, o secretário-geral do SIM, Jorge Roque da Cunha, explica que essa inversão de marcha já devia ter ocorrido há dois anos e que os médicos estão cansados de “belas palavras”. Sublinha ainda que os médicos estão dispostos a aceitar uma reversão das medidas dilatada no tempo.

A greve é sempre o último instrumento, sublinha o sindicalista, que insiste que os sindicatos só querem “chegar a acordo”. “Mas nesse acordo tem de haver seriedade.”

Os médicos vão estar em greve esta quarta-feira, dia 8, no Norte, na próxima quarta-feira, dia 18, no Centro, no dia 25 de outubro na região e para 8 de novembro está agendada a greve geral.

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Porque é que os médicos decidiram avançar com esta greve ?
O mesmo conjunto das circunstâncias que nos levou a fazer greve em maio. Quando os sindicatos pretendem fazer com que o pagamento das horas incómodas seja feito a 100%; quando acham que tem de haver uma diminuição do número de horas de urgência num horário de trabalho de 40 horas semanais, de forma a libertar mais horas para a atividade programada [consultas e cirurgias]; quando acham que 1.900 utentes por médico é incompatível com um atendimento adequado e pedem redução para 1.550, estão simplesmente a fazer com que a situação que se vivia antes da troika passe a ser uma realidade. Ainda por cima com a circunstância de permitirmos que esse conjunto de questões sejam implementadas durante um período alargado de tempo — que pode até ultrapassar a legislatura — nomeadamente a diminuição do número de utentes por médico de família. Isto porque temos perfeita consciência que o Governo prometeu a cobertura total de utentes com médico de família e nós somos a favor desse desiderato. Não podemos é aceitar que o Ministério da Saúde faça tudo o que tem ao seu alcance para que os médicos saiam mais cedo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que não se preocupe com as reformas antecipadas, que não se preocupe com os concursos a tempo e horas. Essa inação tem permitido a fragilidade do SNS. E nem estamos ainda a falar de questões salariais, mas de questões que têm que ver com a sustentação do SNS, que são os próprios concursos.

Mas essas reivindicações que destacam, como os turnos de urgência de 12 horas ao invés das atuais 18, listas de 1.550 utentes em vez de 1.900 e por aí em diante, foram os sindicatos que aceitaram em 2012, em troca da criação da grelha salarial das 40 horas.
Sim, mas quando em 2012 assinámos o acordo com o anterior Governo ficou logo assente que em 2015 se iniciaria a sua reversão. Este Governo cujo verbo reverter faz parte dos seus favoritos, à semelhança dos partidos que o suportam, não pode usar essa palavra só quando lhe dá jeito. E de 2012 para 2017 são cinco anos, de 2015 para 2017 são dois anos. Já desde 2015 que estas matérias deveriam ter sido discutidas. Já demos dois anos ao Governo. Não estamos a pedir a lua, estamos certos das nossas questões e achamos que mais dia menos dia conseguiremos.

Ainda esta semana o ministro disse que não é por haver uma greve regional que as negociações “deixam de existir ou ficam condicionadas positiva ou negativamente”. Parece estar a desvalorizar esta greve.
Mas também disse que concordava em 90% com os motivos da greve. Somos um sindicato que queremos chegar a acordos. Tanto o SIM como a FNAM, que há cerca de 10 anos trabalham juntos e assinaram já 32 acordos, nós queremos é chegar a acordo, mas nesse acordo tem de haver seriedade negocial. Não se pode dizer que se concorda com os sindicatos — e nem pedimos em demasia — e recusar em avançar com a contratação coletiva. As belas palavras têm de ser concretizadas.

A greve de maio não teve consequências.
Politicamente teve sucesso. Obrigou o ministro a responder no Parlamento a Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia e a falar num acordo em setembro. Mas apareceu o Ministério das Finanças a empurrar a solução com a barriga.

E porque avançam com a greve nestes moldes: três dias diferentes, um em cada região e a 8 de novembro em todo o país?
É uma forma diferente de fazermos o nosso protesto sem afetar tanto os doentes. Além disso achamos que estarmos um mês inteiro a falar da greve afeta mais o Governo e os partidos do que se falarmos só um ou dois dias.

Esperam uma forte adesão?
Estamos em crer que terá uma forte adesão, à semelhança da de maio.

O secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado, disse recentemente que “é um tormento governar nestas circunstâncias”, dizendo que não tem condições para responder a todas as reivindicações. Como encara esse desabafo?
Quem não quer ser lobo não lhe vista a pele, mas não queremos contribuir para o estado de alma do nosso senhor secretário de Estado. Agora, tal como, com certeza, os governantes estão a fazer o seu melhor, os sindicalistas também. A greve é sempre o nosso último recurso. Entre cativação e roubo para nós sindicatos é exatamente a mesma coisa. Se no passado criticávamos Passos Coelho, agora que existem mais meios é uma questão de opção. Neste momento, objetivamente, o que pretendemos é uma coisa mitigada no tempo e que poderá ter repercussão orçamental mas será residual, até porque poupariam em horas extra. Eles fazem contas de merceeiro. Por exemplo, eles dizem que se passarmos de 18 horas para 12 horas nas urgências vão ter de pagar 6 horas extra nas urgências, mas é mentira porque nessas 6 horas os médicos não vão para a praia: vão diminuir pressão sobe as urgências e fazer cirurgias.

Numa entrevista recente, o presidente do Sindicato dos Enfermeiros (SE) falou no lobby médico, disse que os médicos sem os enfermeiros não fazem nada e ainda referiu o facto de o ministro ser médico e isso poder influenciar tomadas de decisão e escolhas. Como vê estas declarações?
Terá sido um dirigente que é useiro e vezeiro em atacar os médicos, mas como os sindicatos dos médicos acham fundamental equipas multidisciplinares não atacamos os outros.

Mas sente que o facto de o ministro ser médico, como já foram outros, tem sido uma mais-valia para a classe?
Já houve ministros médicos, já houve ministros gestores, há ministros casados com enfermeiras [o atual ministro é casado com uma enfermeira]. É inqualificável achar que dadas as relações do senhor ministro ele vai agir desta ou daquela forma. Podemos criticar o ministro Adalberto Campos Fernandes por várias questões, mas de corporativista não me parece.

Outra matéria tem a ver com a progressão na carreira. O Governo já deu a entender que os médicos por terem tido valorizações salariais nos últimos anos ficam de fora do descongelamento das carreiras, no imediato.
Valorizações salariais só na cabeça de algum escritor de ficção. Os médicos têm as carreiras congeladas tal como os outros. E é ainda mais grave porque estamos num momento em que há um envelhecimento dos quadros dos médicos, há um grande número de médicos que pediram a sua reforma antecipadamente, há um grande número de médicos que transita para o privado e estrangeiro e esse tipo de atitudes não ajudam nada a fixar os médicos. Estamos em crer que esta vertente autocrática e burocrática seja só para criar condições para esquecer e tapar o sol com a peneira.

Ao contrário do que se está a verificar com os enfermeiros, SIM e FNAM têm estado sempre juntos neste processo negocial. Porquê? Têm noção que juntos são mais fortes?
Há uma coisa que une os médicos e não só os sindicalizados. Os médicos acham que a carreira médica é um instrumento fundamental para a qualidade do SNS e daí se unirem nesta defesa do SNS e da carreira médica. Tendo o SIM e a FNAM origens diferentes, consensualizamos matérias entre dirigentes e depois com os parceiros de negociação. E só ganhamos. Todos os manuais de gestão dizem que é fundamental a colaboração dos trabalhadores na gestão. E não é por o Partido Socialista estar no Governo que vamos aceitar que reverta aquilo que o doutor Adalberto andou a proclamar estes anos todos.

Greve à parte, o Serviço Nacional de Saúde está melhor ou pior do que no período em que cá esteve a troika?
Está pior. Não há investimento, há menos profissionais de saúde, houve uma diminuição do número de médicos — porque não se pode fazer comparação entre médicos em início de carreira e seniores –, há mais atrasos de pagamentos e, por outro lado, as entidades privadas em termos tecnológicos começam a levar um grande avanço sobre o SNS.