O relatório da comissão independente nomeada para analisar os incêndios que em junho atingiram a região de Pedrógão Grande e Góis não poupava críticas a toda a linha de comando que esteve no terreno, apontando múltiplas falhas ao modo de atuação das autoridades portuguesas no combate ao fogo. Esta segunda-feira, quatro meses depois da morte de 65 pessoas no incêndio mais mortal de que há memória em Portugal, o país volta a acordar com mais uma tragédia: o fogo na zona norte e centro do país já resultou em 38 mortos e vários feridos graves, sendo que o número está em permanente atualização.

Como detalhava aqui o Observador, as principais críticas dos técnicos independentes às autoridades passavam, precisamente, pela má resposta inicial ao desastre anunciado. Segundo os especialistas, houve escassez de meios terrestres e aéreos, descoordenação entre as várias forças no terreno, falhas de comunicação, interferência política nas decisões estratégicas, opções táticas erradas que contribuíram para a dimensão da catástrofe, erros de cálculo em relação à “gravidade potencial do fogo” e uma “subavaliação e excesso de zelo na análise da fase inicial”.

Desta vez foi diferente? Só futuras investigações permitirão apurar se houve ou não uma boa resposta inicial a estes incêndios. As primeiras avaliações, no entanto, deixam as autoridades portuguesas muito mal na fotografia: o governo galego fala abertamente em “descontrolo” operacional em território português e responsabiliza as autoridades portuguesas pela forma como o fogo galgou a fronteira para Espanha.

Em declarações ao Observador, Patrícia Gaspar, porta-voz da Proteção Civil, defende-se: “Não sei com que base fizeram essa avaliação. Mas se deixamos o fogo passar, não foi deliberado. A grande dificuldade que tivemos ontem e que terá qualquer país, foi o número de fogos. Com metade dos incêndios, teria o dobro dos operacionais e teria combatido o fogo com mais eficácia e eficiência”, nota a responsável.

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Alertas do IPMA foram novamente ignorados?

Outra das falhas apontadas pelos técnicos independentes ao combate do incêndio de Pedrógão Grande foi o não pré-posicionamento de meios, apesar dos alertas do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), para a severidade das condições meteorológicas para aquele período temporal. Mais uma vez, a Proteção Civil volta a ser criticada por ter ignorado os alertas.

“A Autoridade Nacional de Proteção Civil deveria estar mais atenta e fazer planeamento tendo em conta esta informação [do IPMA]. Não pode ficar no comando de Carnaxide nem nos distritais, tem de chegar ao local. Bastava ver as imagens de satélite, era bastante claro”, notou Paulo Fernandes, um dos 12 peritos que participou na elaboração do relatório da Comissão Técnica Independentes, em declarações ao Expresso.

Segundo este especialista, a faixa ocidental do país mostrava logo na sexta-feira valores de risco de incêndio muito elevados, num “contexto metereológico mais grave do que o de Pedrógão Grande“. A Proteção Civil, defendeu o especialista, devia “tomar atitude em consequência” — algo que não terá feito.

Ainda no que à prevenção diz respeito, outra das falhas apontadas pelo relatório sobre Pedrógão Grande foi a não antecipação da Fase Charlie, a mais crítica de combate aos incêndios, apesar de todos os avisos para as condições meteorológicas extremas que se iam fazer sentir naquele período de junho. Esta fase terminou oficialmente a 1 de outubro e resultou na redução do número de operacionais e meios à disposição e no encerramento dos 236 postos de vigia.

A pressão da oposição política, de autarcas, de bombeiros e os avisos do IPMA, obrigaram o Governo a recuar e a reabrir alguns postos de vigia (72), reforçar o número de meios aéreos (18, no total) e aumentar o número de operacionais de serviço (6.400 elementos). No arranque da Fase Charlie, estavam 9.740 operacionais de serviço, apoiados por 48 meios aéreos e 236 postos de vigia da responsabilidade da GNR. Os próximos inquéritos dirão se eram ou não os meios necessários.

Patrícia Gaspar volta a refutar as críticas. “Fizemos um reforço da Fase Delta, conseguimos mais 800 bombeiros e dos 48 meios aéreos da Fase Charlie, temos 18. Conseguimos negociar mais algumas horas de voo. Dos 18, só dois estão a operar por causa das condições meteorológicas e do fumo”, sublinha.

Durante a conferência de imprensa, a porta-voz da Proteção Civil já tinha argumentado com o facto de o planeamento estratégico ter sido feito em março, com base “no padrão médio” de temperatura que se vai registando ao longo dos anos. “Se soubéssemos o que sabemos hoje, [o planeamento] seria obviamente diferente”, afirmou.

Ao Observador, Patrícia Gaspar assegura que “houve pré-posicionamento de meios“, com “grupos de reforço em locais estratégicos em cinco bases de apoio logístico da Proteção Civil: Mangualde, Ponte de Lima, Vila Real, Chaves e a Albergaria, e três grupos do GIPS, em Vila Real, Viseu e Faro”. “Alem disto é prática comum os distritos, ao nível dos corpos de bombeiros, em articulação com os municípios, fazerem pré-posicionamentos. A questão é que não sabemos onde os fogos vão acontecer“, defende-se.

Uma alteração fundamental em relação aos incêndios de Pedrógão Grande e Góis foi a decisão do Governo de declarar o estado de calamidade pública em todos os distritos a norte do Tejo, algo que não aconteceu em junho. Este instrumento legal prevê, entre outros aspetos, um “regime especial de contratação pública de empreitadas de obras públicas, fornecimento de bens e aquisição de serviços”, que permite contratos por ajustes diretos sem visto prévio do Tribunal de Contas, e também um regime especial de acesso aos agentes da Proteção Civil à propriedade privada, entre outras medidas. No fundo, permite agilizar toda a resposta das autoridades neste tipo de cenários.

Relatório. Todas as falhas que contribuíram para a morte de 64 pessoas

Políticos foram aconselhados a manterem-se longe do terreno?

Outra crítica dos técnicos independentes à gestão da catástrofe de Pedrógão Grande foi a constante sobrelotação do posto de comando operacional, com o desfilar permanente de figuras políticas, que obrigavam a briefings contínuos e prejudicavam a resposta da Proteção Civil no teatro de operações. Mais: os especialistas falavam mesmo em “interferência” política na tomada de decisões. E, nesta matéria, os dedos parecem todos apontar para Constança Urbano de Sousa e Jorge Gomes, ministra e secretário de Estado da Administração Interna, respetivamente, que acompanharam praticamente todo o combate ao fogo a partir do quartel-general da Proteção Civil.

Desta vez, foi o próprio Presidente da República — que em junho se deslocou imediatamente para Pedrógão durante a noite em que tudo começou — a definir a regra: ainda durante a madrugada de segunda-feira, Marcelo Rebelo de Sousa garantiu que não ia para o terreno para não “criar alguma dificuldade de combate ao fogo”, como a comissão técnica independente sugeriu. Constança Urbano de Sousa e Jorge Gomes também se mantiveram longe do teatro de operações, sem o protagonismo que assumiram em Pedrógão Grande, algo que se explica, em parte, pela profusão de focos de incêndio em diversos pontos do país.

Desafiada a esclarecer se essas instruções foram ou não dadas, ao Observador, Patrícia Tavares disse apenas “não saber” se houve de facto essa ordem.

Rede SIRESP foi reforçada?

Se há algo que ficou evidenciado na resposta ao incêndio de Pedrógão Grande foram as fragilidades da rede de emergência SIRESP. Danificadas as antenas fixas de comunicação, como aconteceu em junho, o sistema de resposta prevê que sejam colocadas ao serviço estações móveis para garantir que, em caso de destruição das redes primárias, a comunicação se faça sem problemas. No entanto, nessa altura, das quatro carrinhas pensadas para o efeito, duas não tinham antenas e uma estava na oficina — só chegou ao local às 6h26 de domingo.

Depois de Pedrógão Grande, o Executivo decidiu agir. Ainda que não tenham sido introduzidas alterações estruturais à rede de emergência, já descrita como “obsoleta”, o Governo tentou resolver, pelo menos, o problema mais imediato, ordenando a aquisição, por ajuste direto, dessas antenas-satélite que estavam em falta. E, desta vez, colocou as quatro estações móveis no terreno.

Para as falhas de comunicação em Pedrógão Grande também contribuíram os problemas registados na rede da Portugal Telecom (agora denominada Altice) com várias linhas de comunicação a ficarem destruídas durante o incêndio. Problemas que se voltaram a registar durante a tarde-noite de domingo e a madrugada de segunda-feira e que obrigaram à atuação imediata dos responsáveis da empresa.

Quando passavam poucos minutos da meia-noite, a empresa assegurou à Agência Lusa que tinha 600 técnicos no terreno e 17 unidades móveis a trabalhar para restabelecer as comunicações afetadas. Informação reforçada esta segunda-feira à tarde, em conferência de imprensa. “Temos 17 unidades móveis a assegurar as comunicações, duas das quais em trânsito para a zona Centro, e temos vindo a disponibilizar telefones vsat [satélite] em diversas localidades”, garantiu aos jornalistas a presidente executiva da Altice Portugal, Cláudia Goya, admitindo que 3% da rede móvel tinha ficado danificada. “Independentemente desta situação, aquilo que contamos fazer é recuperar toda a infraestrutura o mais rápido possível“, assegurou a gestora.

Nem sempre as coisas correm tão rápido como queríamos“, reconhece ao Observador Patrícia Gaspar. “Ontem houve dificuldade em chegar a alguns locais, porque as estradas estavam cortadas e foi preciso que a GNR escoltasse algumas equipas para chegar a alguns locais. Isso foi feito”, sublinha a porta-voz da Proteção Civil.

Houve mudanças no comando e na estrutura da Proteção Civil?

Foi outra das conclusões da comissão técnica independente: “Na pior e mais fatídica ocorrência no País provocada por incêndio florestal, tendo estado presentes as mais altas individualidades do país, esta operação de socorro exigiria a presença dos operacionais mais qualificados, designadamente do Comandante Operacional Nacional (CONAC), que deveria ter mantido a avocação desta operação de Socorro”, escreveram os especialistas. O visado era claramente Rui Esteves, que em setembro deste ano se demitiu do cargo de Comandante Nacional da Proteção Civil, na sequência da polémica das licenciaturas.

Seria Albino Tavares, à época o segundo na hierarquia, a assumir o controlo das operações. E seria também Albino Tavares a substituir interinamente no cargo Rui Esteves depois da demissão deste. E seria também Albino Tavares a dar ordens aos operadores de comunicações para que não registassem mais alertas na fita do tempo do incêndio de Pedrógão Grande, por “excesso de informação”, decisão muito contestada pelos técnicos especialistas.

E seria ainda Albino Tavares a decidir a entregar a missão a Elísio Oliveira, do Comando Distrital de Setúbal, 48 horas depois do início do fogo de Pedrógão Grande, mais uma decisão criticada pela comissão independente. “Enquanto um incêndio não estiver dominado, a doutrina aponta para não desgraduar o seu comando”, defenderam os especialistas.

Desta vez, para já, as decisões parecem ir noutro sentido. Segundo o Expresso, é Albino Tavares, agora na qualidade de Comandante Operacional Nacional, a liderar as operações de combate aos incêndios que se fazem sentir a norte do Tejo. Pelo menos, para já.

Desse relatório resultava outra conclusão: “Não existem, em qualquer das áreas de competência da proteção e socorro, perfis definidos e conteúdos funcionais, nem sistema de verificação ou validação oficial da capacidade dos nomeados para o desempenho das funções”. Resumindo: não há garantias de que os comandantes da Proteção Civil tenham competências para tal.

O caso das licenciaturas ajudou a reforçar a tese de que os responsáveis da Proteção Civil podem não ser os mais indicados para ocupar os cargos que ocupam. No final de setembro, o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, entregou à Inspeção-Geral de Educação (IGEC) a auditoria às licenciaturas na Proteção Civil, para que fosse possível apurar se essas qualificações são ou não regulares.

De acordo com a RTP, no entanto, cerca de 40 dos 70 comandantes da Proteção Civil podem ter obtido as suas licenciaturas de forma irregular ou através de várias equivalências. Recorde-se que o ex-comandante nacional da Proteção Civil, Rui Esteves, concluiu a licenciatura com 95% de equivalências, informação que foi divulgada pelo jornal Público e que resultou na demissão do responsável. Até ao momento, a Inspeção de Educação não divulgou qualquer conclusão.

O mesmo Público já tinha avançado com outra informação relevante: em abril, dois meses antes de Pedrógão Grande, Rui Esteves procedera a uma pequena revolução na Proteção Civil, nomeando 13 novos comandantes distritais e mudando quatro de cargo — três deles têm ligações diretas ao PS.

Um novo relatório divulgado esta segunda-feira e preparado por um grupo de especialistas liderado por Xavier Viegas, do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, aponta precisamente para a essa realidade: as mudanças introduzidas na Proteção Civil podem ter prejudicado a capacidade de resposta da Proteção Civil.

“A estrutura nacional da ANPC sofreu uma remodelação profunda no início do ano de 2017. Sem estar a discutir nomes ou pôr em questão as pessoas, levantamos a questão da necessidade de se realizar todas as mudanças que foram efetuadas”, sustenta o relatório coordenado por Domingos Xavier Viegas.

“Por muito rico que o nosso país seja em pessoas, com as qualificações e experiência requeridas para o exercício destes cargos, parece-nos que se deveria ponderar a conveniência de substituir ou manter em serviço pessoas com provas dadas, para assegurar a estabilidade do sistema e por outro lado de dispor de critérios e escolha muito exigentes para a escolha e nomeação de novos comandantes”, frisa o relatório publicado no portal do Governo.

Quatro meses depois de Pedrógão Grande, além da demissão de Rui Esteves, não houve qualquer alteração na linha de comando nem da estrutura da Proteção Civil, considerada desadequada pelo comissão independente.

Pedrógão. Novo relatório aponta o dedo a Proteção Civil, bombeiros, INEM, EDP e Ascendi

Atuação da GNR na gestão do trânsito foi coordenada?

O relatório da comissão de técnicos independentes deixava ainda outra conclusão: “Poderia ter sido ordenada a evacuação atempada das aldeias ameaçadas“, ou, em alternativa, “poderiam ter sido tomadas medidas para que as pessoas não saíssem de casa“, algo que não foi feito em tempo útil.

Uma crítica a que também não escapa incólume a GNR. Ainda que sublinhem que “a atuação da GNR pareça, de acordo com as informações recolhidas, ter sido a correta”, os autores do estudo defendem que a gestão do trânsito e dos acessos à localidades deveria ter merecido uma coordenação mais eficaz entre as várias autoridades no terreno.

E como se justifica que tal não tenha acontecido? Os especialistas adiantam várias explicações. “Este trabalho de antecipação deveria ter sido feito no seio do comando e planeamento desta operação de socorro e deveria ter resultado na mobilização dos meios necessários, incluindo a GNR, para evitar que se tivesse verificado uma fuga para a morte, tal como veio a acontecer. Por sua vez, tal trabalho de antecipação só poderia ter sido feito com o apoio de analistas de incêndios e de meteorologistas especializados, que permitisse uma adequada avaliação da situação em tempo real. A verdade é que nenhuma destas competências existe na Autoridade Nacional de Proteção Civil, apesar da enorme gravidade e frequência dos incêndios em Portugal”.

Sendo que certo que, quatro meses depois de Pedrógão Grande, nada foi feito para dotar a Autoridade Nacional de Proteção Civil destas competências, a atuação da GNR — ou, pelo menos, a forma como a comunicou — parece ter sido mais eficaz. Ao longo de toda a madrugada, as autoridades foram atualizando, em várias plataformas, as informações sobre o trânsito e as alternativas às estradas cortadas, evacuando aldeias e dando conselhos às populações.

Numa altura em que ainda faltam conhecer muitos detalhes sobre a forma como se tudo desenrolou e, sobretudo, numa altura em que faltam apurar as condições em que as vítimas morreram, só futuras investigações permitirão concluir se a resposta inicial e o socorro às vítimas foi ou não a adequada.