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O que disse António Costa nas entrelinhas sobre os fogos

Este artigo tem mais de 5 anos

A descodificação do discurso do primeiro-ministro sobre os incêndios que mataram dezenas de pessoas em dois dias: as desculpas, as cedências, os recuos, os recados e os sinais. Por Miguel Pinheiro

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ANTÓNIO COTRIM/LUSA

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

O Presidente da República tinha anunciado que falaria ao país depois de o primeiro-ministro o fazer. Estava dado o recado: para Marcelo, António Costa deveria aparecer formalmente em público o mais depressa possível. Não foi preciso esperar muitas horas — esta segunda-feira à noite, o primeiro-ministro discursou à hora dos telejornais. Moderou o discurso da última madrugada e anunciou medidas “urgentes”. Mas continua a não demitir a ministra da Administração Interna, apesar das pressões de Belém.

O discurso do primeiro-ministro está a itálico e a interpretação e o comentário estão a amarelo:

“Desde ontem, o País tem sido assolado pela maior vaga de incêndios desde 2006. No dia de ontem, deflagraram 523 incêndios e no dia de hoje deflagraram mais 199. Neste momento, mantêm-se ainda activos 26 incêndios”.

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O primeiro-ministro quer passar duas ideias que ajudam a explicar e justificar as três dezenas de mortes. Primeira ideia: o que aconteceu no domingo e na segunda foi inédito. Segunda ideia: o que aconteceu era imprevisível. Ambas as sugestões têm problemas. Por um lado, os 523 incêndios de domingo estão longe de ser uma originalidade. Como o próprio António Costa admitiu na madrugada de segunda-feira, "este foi o 22.º dia com maior número de ocorrências desde o princípio do século". Ora, se foi o 22.º, isso quer dizer que houve 21 dias piores nos últimos 17 anos. Por outro lado, na sexta-feira já era possível saber que o domingo seria um dia perigoso. Paulo Fernandes, um dos 12 peritos que participou na elaboração do relatório sobre Pedrógão Grande da Comissão Técnica Independente, disse em declarações ao Expresso que a faixa ocidental de Portugal mostrava logo na sexta-feira riscos de incêndio muito elevados, num “contexto metereológico mais grave do que o de Pedrógão Grande". A Proteção Civil admite que isso é verdade e argumenta que se preparou para o que aí vinha. Ou seja: não vale a pena insistir na ideia de uma excepcionalidade imprevisível.

“Este é um momento de luto, de manifestar às famílias das vítimas as nossas condolências e prestar a nossa solidariedade às populações que desde ontem têm tentado proteger as suas vidas, salvar as suas habitações, os seus bens e as empresas que lhes garantem emprego. Todos sentimos a sua angústia, a sua aflição, o sentimento de desamparo com que viveram as últimas horas”.

O primeiro-ministro tenta recuperar das declarações desastrosas do secretário de Estado da Administração Interna. No domingo, Jorge Gomes disse esta frase extraordinária: "Têm de ser as próprias comunidades a ser proativas e não ficarmos todos à espera que apareçam os nossos bombeiros e aviões para nos resolver os problemas. Temos de nos autoproteger". Esta afirmação mistura fantasia e soberba. Fantasia, porque qualquer português sensato que siga a cobertura das televisões sabe que as populações estão permanentemente a ajudar os bombeiros no combate aos fogos, às vezes com mangueiras, outras com baldes, outras ainda com simples folhas. Soberba, porque é feita com a superioridade de quem dá uma lição e um ralhete e insinua que a segurança das pessoas não deve ser uma preocupação do Estado mas de quem está em perigo. No seu discurso, o primeiro-ministro, de gravata preta em sinal de luto, retoma o equilíbrio: elogia as populações pelo seu esforço no ataque às chamas e reconhece que muita gente esteve "desamparada" nas horas mais críticas.

“Quero deixar aqui o compromisso do governo de que, apagadas as chamas, a solidariedade desta hora terá continuidade no momento da reconstrução e da reparação dos danos sofridos por todos”.

Foi uma das grandes polémicas em Pedrógão Grande: as acusações de que o Estado demorou demasiado tempo a fazer chegar o dinheiro e os meios para a reconstrução. O primeiro-ministro quis assegurar já que vai existir ajuda às populações. Mas não se comprometeu em excesso: tal como em Pedrógão, disse mais à frente, em resposta a perguntas dos jornalistas: “Assumimos todas as responsabilidades que tivermos de assumir". Note-se: "que tivermos de assumir".

“É também o momento de dar uma palavra de reconhecimento, gratidão e alento a todos os que em todo o país socorreram as populações e combatem as chamas, bombeiros voluntários ou profissionais, sapadores florestais, guardas da Natureza ou guardas florestais, militares da GNR ou das nossas forças armadas, profissionais de saúde ou da ação social. Quero também dirigir uma palavra especial aos autarcas, que têm sido incansáveis enquanto responsáveis locais pela proteção civil.”

Esta segunda-feira, vários bombeiros queixaram-se de descoordenação no combate aos fogos. E há dias o governo foi duramente criticado por ter permitido o encerramento de 72 das 231 torres de vigia das florestas pela burocrática razão de ter terminado a chamada "fase Charlie". António Costa fez questão de destacar aqueles que estão na primeira linha do combate aos fogos.

“Todos os meios disponíveis foram mobilizados, incluindo as nossas Forças Armadas, para reforço das operações de patrulhamento dissuasor de fogo posto e para apoio às operações de rescaldo. Foram accionados os mecanismos de apoio internacional, designadamente o mecanismo europeu de proteção civil, e foi ativado o estado de calamidade em todos os distritos a norte do Tejo. A GNR e a PJ têm intensificado o combate à criminalidade associada aos incêndios, tendo quase duplicado o número de suspeitos identificados do ano passado para este ano”.

O primeiro-ministro quer chamar a atenção para um ponto: muitos dos incêndios destes dois dias foram provocados por fogo posto. Ou seja: são crimes, o que, por natureza e definição, os torna mais difíceis de combater. Outro detalhe importante: ao contrário do que aconteceu em Pedrógão Grande, desta vez foi imediatamente accionado o estado de calamidade pública. Foi uma lição aprendida.

“A prioridade ao combate não nos faz esquecer o caráter estrutural dos problemas com que nos confrontamos. Foi por isso que lançámos há um ano a reforma da floresta, que, com toda a determinação, nos cumpre executar de modo a assegurar a redução estrutural do risco de incêndio, para garantir que temos uma floresta sustentável, que contribua para a vitalidade do mundo rural, que não seja um fator de desertificação e ameaça à segurança das populações”.

António Costa insiste: o grande problema dos fogos é o desordenamento da floresta. Talvez seja, mas estes últimos incêndios dizimaram 80% do Pinhal de Leiria, uma mata nacional perfeitamente ordenada. Aí, o problema não foi a falta de uma reforma legislativa - foi pura falta de cuidado. A 4 de Agosto, o investigador Gabriel Roldão tinha dito esta frase profética à agência Lusa: "O Pinhal de Leiria está sujeito a que aconteça um cataclismo enorme por falta de limpeza e de tratamento, que poderá provocar um incêndio que irá destruir a maior parte do Pinhal”. Ninguém o ouviu.

“Temos consciência que o País nos exige resultados em contra-relógio, após décadas de desordenamento florestal. Não podemos iludir os portugueses sobre a imediata produção de resultados, mas não receamos este desafio. Pelo contrário. Encontramos nesta exigência nacional a motivação acrescida para vencermos coletivamente esta batalha. A dilação na produção de resultados só torna mais urgente o início da concretização da reforma da floresta”.

Foi um dos momentos mais infelizes de António Costa na madrugada de segunda-feira, ao dizer que “o país tem de estar consciente que a situação que estamos a viver vai seguramente prolongar-se para os próximos anos”. Uma espécie de "Habituem-se". Agora, o primeiro-ministro já reconhece a necessidade de actuar "em contra-relógio" e de forma "urgente".

“Esta reforma não esgota as consequências a retirar deste verão dramático. Há quatro dias, a Comissão Técnica Independente nomeada pela Assembleia da República na sequência da tragédia de Pedrógão Grande apresentou um relatório que analisa em profundidade todo o nosso sistema de prevenção e de combate a incêndios florestais. A principal responsabilidade política do Governo é agora concretizar em medidas as conclusões e recomendações deste relatório. (…) Da parte do Governo podem contar com total determinação na assunção de responsabilidades na reconstrução do território e na reparação dos danos, na execução das reformas da floresta e do modelo de prevenção e combate aos incêndios. (…) Depois deste ano, nada pode ficar como antes”.

O relatório da Comissão Técnica Independente sobre Pedrógão Grande provocou um enorme buraco na retórica de António Costa sobre este tema: ao contrário do que costuma dizer o primeiro-ministro, os técnicos entendem que o atual modelo de prevenção e combate aos fogos não serve. Costa não insiste e aceita: as coisas vão mesmo ter que mudar. Da mesma forma, aceita e repete aquilo que o Presidente da República voltou a dizer hoje: Marcelo referiu num comunicado que são precisos "atos" e não "palavras" e o primeiro-ministro afirmou, em resposta aos jornalistas depois do discurso, que “temos de passar das palavras aos atos“. Só há um ponto em que Costa não cede, pelo menos para já: a ministra da Administração Interna fica. "Não é um tempo de demissões, é um tempo de soluções", repetiu, numa incompreensível teimosia. Depois da queda da ponte de Entre-os-rios, Jorge Coelho deixou o Governo por muito menos.

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