Uma noite depois do caos, Jorge Martins ainda continua vigilante. Está de pé à beira da estrada, mãos atrás das costas, como quem faz tempo. Na escuridão da noite, quando já passa da meia-noite, olha de frente para os troncos que ainda insistem em arder — à sua direita — e um eucalipto que arde com todo o folgor — à sua esquerda. Jorge segue tudo isto com o olhar atento, como um guarda numa torre de vigia. Em volta, quase tudo ardeu. Falta apenas uma pequena faixa de mato verde que desemboca na sua casa — e que, por isso, a coloca em perigo.

“Estou aqui à espera que o fogo venha para a minha casa”, explica, ainda levado pelo pessimismo que neste 15 de outubro passou a ser o estado de espírito dos habitantes de Vouzela. A Jorge, que vive na aldeia de Antelas, só quase falta perder a casa. De resto, muito foi com o fogo: árvores de fruto, o espigueiro, terrenos com eucaliptos, um pavilhão onde guardava material agrícola. Por isso, resta-lhe proteger o teto que lhe sobra, onde a esta hora descansa a sua mulher, a filha e o genro.

À volta da casa de Jorge Martins ardeu quase tudo. Resta-lhe salvar o teto das poucas chamas que persistem do outro lado da estrada. (JOÃO PORFÍRIO / OBSERVADOR)

Desde que o fogo chegou a Antelas, por volta das 17h00 de domingo, Jorge conta apenas com uma hora mal dormida de sono. O resto do tempo foi passado a combater as chamas com duas mangueiras de borracha, que se servem da água do seu poço. “Felizmente, nem me acabou a água nem acabou a eletricidade para pôr a bomba do poço a funcionar”, diz. Afinal, no meio do pessimismo que as circunstâncias lhe impõem, sabe que muitos não tiveram tanta sorte.

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“Isto que aqui se passou é muito grave, é muito duro para nós todos”, explica. “Só quem passa por isto é que sabe o que custa. Ver que de um momento para o outro se pode perder tudo, de uma forma estúpida, custa muito a aceitar. Custa muito a aceitar.”

Quando Jorge fala, num lamento que lhe sai de forma automática e com uma cadência que parece nascer de partes iguais de cansaço e desespero, começa a chover. Primeiro, umas gotas miúdas. Depois, pingos mais grossos, que certificam que a chuva não vai ser passageira. “Vamos lá ver se isto ajuda, vamos lá ver”, diz Jorge. Agora, já sorri, mas o pessimismo que ainda lhe lateja na cabeça parece obrigá-lo a dominar esse sentimento. “A gente tem de esperar sempre o pior”, diz. “Mas pode ser que hoje já vá à cama.”

Duas horas mais tarde, ainda com a chuva a cair com força, não havia sinal das chamas que Jorge vigiava. Na sua casa, não se via nenhuma luz. Devia estar a dormir.

“Eu olho para o que ainda está verde e parece que fico agoniada”

Sónia Alves, da aldeia da Prova, também não sabe o que é dormir desde que, ao início da noite de domingo, foi acordada pelos gritos da sua vizinha. “Há fogo! Está tudo a arder!”, dizia a vizinha do lado, que a chamava. Sónia saiu do sofá, onde estava deitada com o filho de seis anos, e correu para a rua. As chamas estavam nas costas da aldeia. “Felizmente, o vento foi de cá para lá e afastou as chamas”, diz, levantando as sobrancelhas, como quem sabe que a sua sorte foi o azar de outros.

Sónia Alves vive na aldeia da Prova, em Vouzela @João Porfírio/ Observador

Enrolada numa manta, vestida com as roupas de casa e um casaco por cima, Sónia vê à distância de 20 metros as chamas que ainda lhe podem ameaçar a casa. Já são quase 02h00, mas o alívio ainda não chegou. De longe, só a luz das chamas lhe permite ver, por breves instantes, o marido. Está, com outras pessoas, a tentar apagar o fogo como podem. Uns, pegam em ramos de árvores e batem com eles em cima das chamas mais rasteiras. Outros, lançam baldes de água para as labaredas mais altas. Apesar de tudo, o ambiente é de calma. “Isto ontem foi muito pior”, assegura Sónia. “Mas a gente preocupa-se sempre, não há maneira de a gente dormir até ver isto tudo apagado”, diz. O filho, para já, dorme num carro de uma amiga de Sónia, que toma conta dele. É o primeiro repouso que a criança de seis anos tem. “Ele ficou muito preocupado, ficou muito, muito mal. Percebeu tanto o perigo disto como nós.”

Sónia não se preocupa com o que já ardeu. Em Prova, o que está em cinzas é sobretudo mato e, segundo sabe, ninguém perdeu bens. A sua maior preocupação é precisamente o inverso: tudo o que ainda há por arder e tudo as coisas que ainda podem ser perdidas. Entre elas, está a sua casa.

Desde o local das chamas até à sua casa, vão cerca de 200 metros e quase dez vivendas. E, pelo caminho, árvores e mato verde. “Se o fogo pega numa ponta, vai logo ter à outra e isto vai tudo num instante”, agoira Sónia. “Eu olho para o que ainda está verde e parece que fico agoniada. Mais valia que já tivesse ardido, assim já não tínhamos preocupação nenhuma.”

Enfim, a chuva também chega à Prova. Tal como tinha sido momentos antes na aldeia de Antelas, ela chega aqui em gotas miúdas que logo começam a crescer. Ao senti-las na cara, uma das poucas partes do corpo que não protege do frio, os ombros de Sónia relaxam. É um peso que lhe sai de cima. Agora que as chamas vão abrandar — “se não for assim não sei como é!” — já vai poder dizer ao filho, quando ele acordar, que já passou.