Era já considerado o “pior dia do ano”, no que toca a número de fogos florestais, quando Carlos andava a limpar as traseiras da sua casa, na zona da Bela Vista, em Aveiro, e decidiu fazer uma queimada para se livrar do lixo. As chamas tomaram conta do lixo, do mato e do terreno em volta até tomarem proporções fora do seu controlo. Carlos acabou detido, domingo, pela Polícia Judiciária por crime de incêndio florestal. É um dos 107 detidos deste ano de 2017, o que significa mais 21 detidos do que nos mesmos meses de 2016.

A PSP alertou a PJ pelas 16h00. As chamas tinham galgado a autoestrada (A25) e engolido a casa de uma família, que acabou desalojada. Seguiam rumo a uma unidade fabril, quando os populares e, depois, os bombeiros as atacaram e dominaram . O fogo estava extinto quando a PJ encontrou a sua origem: as traseiras da casa de Carlos, um empregado comercial de 25 anos sem qualquer antecedente criminal e “perfeitamente enquadrado na sociedade”.

Um acidente, terá, por fim, admitido, depois de confrontado com o facto de fazer fogo até ao final do mês ser considerado um crime. Mais do que a lei, disse o coordenador da PJ de Aveiro ao Observador, “é uma questão de comportamento”. “Quem no seu perfeito juízo decide fazer uma queimada num dia de calor como o registado no domingo?”, interroga. Ele e muitos mais, segundo a Autoridade Nacional de Proteção Civil, que no domingo registou mais de 500 fogos florestais. “Só uma ínfima parte resulta de causas naturais. Normalmente resulta de queimadas, da utilização de máquinas agrícolas ou mesmo de mão criminosa”, disse ao Observador a porta-voz Patrícia Gaspar.

Por vezes, os acidentes acabam com a morte do próprio autor. Como foi o caso de um homem de 73 anos que, há cerca de uma semana, fez uma queimada de sobrantes na localidade de Terreiro das Bruxas, no Sabugal, quando se viu cercado pelas chamas que “rapidamente fugiram do seu controlo”, como descreveu a PJ. O homem acabou por morrer, vítima do próprio fogo. Uma conclusão a que a PJ só chegou momentos depois da ocorrência. Nessa semana a PJ contou três casos deste género.

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Carlos foi presente ao juiz de instrução para aplicação de medida de coação. Acabou em liberdade, como outros 47 suspeitos detidos este ano pela PJ. Segundo os dados fornecidos por aquela polícia ao Observador, dos 107 detidos, 51 ficaram em prisão preventiva e oito em domiciliária. No ano anterior, em 2016, as estatísticas fecharam com 89 suspeitos de incêndio detidos, num cenário idêntico: 35 em prisão preventiva, oito presos em casa e 46 em liberdade.

Feitas as contas, nos últimos 20 meses, ficaram presos preventivamente 86 suspeitos. Mas nem todos permanecem, à data, na prisão. Segundo os números fornecidos pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), esta terça-feira encontravam-se nas cadeias portuguesas 52 reclusos presos preventivamente e à espera de julgamento pelo crime de incêndio.

Quanto aos condenados, há 33 reclusos nas cadeias portuguesas (quatro deles ainda a aguardar o trânsito em julgado da sentença). As penas de cinco e seis anos são as mais comuns entre os que foram condenados exclusivamente pelo crime de incêndio florestal. Há outros a cumprir penas entre os dois e os dez anos de cadeia, mas que também foram condenados por outros crimes, informou a DGRSP. No universo prisional, contam-se ainda nove incendiários considerados inimputáveis e que cumprem medidas de internamento em instituições psiquiátricas.

Nos últimos dias, a PJ de Aveiro deteve ainda um homem de 48 anos em São Pedro do Sul, suspeito de um fogo ocorrido na última sexta-feira em Figueiredo de Alva. Também aqui as chamas foram controladas por populares que há muito suspeitavam que era ele quem, nos últimos meses, ateava fogos na região. O suspeito, diz a PJ, atuou num quadro de alcoolismo. E saiu em liberdade, obrigado a apresentar-se diariamente à polícia na sua área de residência. Apesar de grande parte dos detidos pelo crime de incêndio florestal ficar em liberdade, a polícia acredita que só a detenção por si serve de “prevenção geral”.

Para o juiz João Paulo Raposo, secretário geral da Associação Sindical de Juízes, é preciso olhar para a lei e perceber que dentro do crime de incêndio florestal existem algumas penas previstas, para casos de negligência e que não permitem aplicação de medidas de coação preventivas da liberdade.

Uma coisa é um suspeito de incêndio que fez uma queimada e que acidentalmente provocou um fogo, que a lei pune com pena de multa ou de prisão até dois anos Outra é existir dolo e existirem fortes indícios da prática do crime”, diz o juiz.

Há uma semana, a 10 de outubro, GNR e PJ detiveram um casal pelo mesmo crime em Terras do Bouro. O homem, um desempregado de 57 anos, e a mulher, uma jornaleira de 50, usaram um isqueiro para deflagrar um fogo. Razão: chatearam-se com familiares a amigos que viviam nas proximidades. Para Cristina Soeiro, a psicóloga da PJ que tem estudado os incendiários, existem três grandes grupos de suspeitos: os incendiários retaliatórios, que agem por vingança, como é o caso deste casal detido; os incendiários de história clínica (onde se incluem os alcoólicos) e os incendiários de benefício (leia-se benefício económico).

PJ tem 500 incendiários identificados. Nenhum é pirómano

O crime de incêndio florestal está previsto no Código Penal, com uma pena de cadeia entre um a oito anos para quem atear fogos em floresta, incluindo matas, ou pastagem, sofreu este ano uma alteração. A medida da pena depende do comportamento do suspeito e das suas intenções. Já em agosto deste ano, foi publicada uma alteração à lei que permite prender em casa, durante o verão, condenados pelo crime de incêndio que estejam em liberdade condicional ou cuja pena tenha sido suspensa. Uma lei que só será posta em prática pelos juízes a partir do próximo ano.