O papel da Igreja Católica durante a invasão indonésia de Timor-Leste foi “muito além” de protetora, denunciadora e reconciliadora, pois, ao colaborar “ativamente” com a resistência, ajudou a chegar ao referendo e, depois, à independência, segundo uma tese de mestrado.

A ideia é defendida na tese de mestrado que a jornalista portuguesa Maria José Garrido apresentou recentemente – obteve 18 valores do júri na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa -, intitulada “As Lideranças Religiosas no Processo de Independência de Timor-Leste (1975/1991)”, enquadrada no tema “História e Cultura das Religiões”.

“É difícil de se dizer, mas acho que a igreja teve um papel muito importante para que o referendo e a independência acontecessem. A igreja foi a única instituição que permaneceu no território, mesmo antes da invasão. Dispunha de uma rede, utilizada pela igreja timorense pelo mundo fora. Essa rede ajudou-a na divulgação da causa”, disse Maria José Garrido, numa entrevista à agência Lusa.

Segundo a jornalista, desde 1993 na estação de televisão TVI, se, até à visita do papa (João Paulo II, a 12 de outubro de 1989) e o massacre de Santa Cruz (12 de novembro de 1991), a igreja já desempenhava um papel importante no apoio à resistência timorense contra a ocupação indonésia, estes dois acontecimentos, devido ao contexto religioso, aprofundaram ainda mais o envolvimento de bispos, padres, vigários, entre outros ligados á igreja, até à realização do referendo de 20 de agosto de 1999.

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“Se teriam sido ou não independentes sem a igreja, isso já é muito difícil de dizer. É um cenário de hipótese e, por isso, nunca se saberá”, sublinhou a jornalista, 53 anos e natural de Díli, onde o pai, em 1964, cumpria o serviço militar, seguindo, três meses após o nascimento, para Angola, onde se manteve até ao 25 de Abril de 1974.

Pouco depois da independência (20 de maio de 2002), lembra Maria José Garrido, o então bispo de Baucau (125 quilómetros a leste de Díli), Basílio do Nascimento, resumiu bem o papel da igreja em Timor – “a igreja, numa primeira fase, foi protetora, numa segunda, denunciadora, e numa terceira, a última, reconciliadora”.

“Mas acho que a Igreja teve um papel que foi além disso. Colaborou com a Resistência, foi uma igreja resistente (…) Foi a violação dos direitos humanos que levou a igreja a passar para o papel denunciador e também de colaboração e de resistente. Encontram-se padres que fazem parte da estrutura da resistência”, sustenta.

Quando se dá o referendo, acrescenta a jornalista, licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nova, os dois bispos de Timor (o de Díli era Carlos Ximenes Belo) tentaram a reconciliação entre independentistas e integracionistas, o que, porém, não foi conseguido nos encontros de Dare (10 quilómetros a sul de Díli).

“Não são bem-sucedidos, mas tentam porque, melhor que ninguém, conheciam o terreno, o território e o povo e sabiam que aquilo ia ser um cenário bastante difícil, tanto mais que a segurança tinha sido entregue às forças indonésias e eles sabiam o que significava”, sublinhou a jornalista, lembrando as palavras de Basílio do Nascimento: “os campos estavam muito divididos e extremados”.

Um dos muitos exemplos do envolvimento da Igreja no apoio à resistência dado a conhecer por Maria José Garrido na tese é o do caso de um padre de Baucau, João de Deus, que um dia foi chamado para transportar uma metralhadora para Díli, porque o comandante das FALINTIL, que estava em Aileu (44 quilómetros a sul da capital), precisava dela.

“O padre começou por emprestar apenas o carro, mas como, ainda assim, ninguém teve coragem para transportar a arma, acabou por ser ele a tomar a iniciativa nas suas mãos ao terceiro pedido da resistência. De Baucau a Díli, diz que havia 14 postos de controlo dos indonésios. Acompanhado de dois homens da resistência, João de Deus parte de manhã bem cedo para evitar o controlo o que consegue até Laleia (30 quilómetros percorridos). Aí, já de dia, um soldado indonésio aproxima-se e pede-lhe boleia”, conta Maria José Garrido, deixando, depois, o relato da odisseia de João de Deus nas palavras de Basílio do Nascimento.

Senta-se (o soldado indonésio) atrás na carrinha. Senta-se na metralhadora. Não havia mais lugar para sentar-se. A metralhadora ia toda desmontada, muito bem arrumada, amarrada muito disfarçadamente. E estava no carro. Ele não tinha mais onde se sentar, sentou-se na metralhadora. De Laleia a Díli, nunca mais parou, pois perante a presença de um militar no veículo, os indonésios mandaram-no avançar em todos os postos de controlo, sem suspeitas. A arma foi entregue ainda na presença do soldado indonésio, que sai do carro precisamente no local onde a encomenda foi deixada”, escreve.

A tese de Maria José Garrido, que deverá ser publicada em breve em livro, centra-se, assim, no período entre a invasão indonésia, a 07 de dezembro de 1975, e o referendo a 30 de agosto de 1999, deixando já de lado a transição para a independência.

Conta com 27 entrevistas, entra elas aos bispos Ximenes Belo e Basílio do Nascimento, bem como muitos dos principais padres e irmãs que tiveram um papel ativo no apoio à resistência em Timor-Leste, e ainda leigos, membros da resistência estudantil e guerrilheiros.

Na tese, Maria José Garrido procura responder a questões, entre muitas outras, como as razões que levaram a igreja a um papel relevante quando a catolização não chegava aos 30% da população na altura da invasão indonésia, as que levaram os líderes religiosos a assumir também um papel de liderança política e ainda para determinar se o envolvimento foi utilizado consciente e estrategicamente pelos religiosos timorenses.