O fiscalista Manuel Faustino considera que há aspetos no trabalho independente que “não têm tradução em papéis e em faturas”, considerando que as alterações propostas para o regime simplificado de IRS são “uma aberração jurídica”.

Criado para simplificar a tributação dos rendimentos dos profissionais liberais e dos empresários em nome individual, o regime simplificado de IRS permite atualmente que seja aplicado um coeficiente que resulta de uma presunção legal de despesas: por exemplo, o rendimento ganho pelos profissionais liberais é considerado apenas em 75% devido à aplicação de um coeficiente de 0,75 que se traduz numa dedução automática de 25%.

Na proposta do Orçamento do Estado para 2018 (OE2018) são introduzidas alterações que limitam as deduções automáticas decorrentes da aplicação daqueles coeficientes, não podendo daqui resultar um rendimento tributável inferior a 4.104 euros (correspondente à dedução específica dos rendimentos do trabalho dependente) ou à dedução das despesas relacionadas com a atividade.

Em entrevista à Lusa a propósito do OE2018, Manuel Faustino deixou várias críticas a estas mexidas ao regime de tributação dirigido aos trabalhadores independentes, onde se incluem os profissionais liberais (como advogados, tradutores e lojistas) mas também agricultores, comerciantes e industriais.

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Um dos aspetos que o primeiro diretor dos serviços do IRS do Fisco criticou é saber qual o rendimento considerado para determinadas atividades: “No caso de um agricultor, qual é o salário que lhe vão considerar para efeitos de determinar qual é o lucro que apura na atividade agrícola e para que ‘e-fatura’ é que isso vai? O que é que tributam na atividade agrícola? Tributam o rendimento de capital, isto é, o rendimento do que a terra produz? Ou o rendimento de capital e o do trabalho?”.

Também o intelecto é um campo relativamente ao qual Manuel Faustino identifica particularidades que não se compadecem com as alterações agora propostas: “Será que posso afetar o meu cérebro à minha atividade e atribuir um valor a esse intangível? Posso ir fazendo uma amortização anual a título do que vou gastando?”, afirmou, acrescentando que estas situações “não têm tradução em papéis e em faturas”.

Além disso, o fiscalista referiu-se à dificuldade de imputar as várias despesas dedutíveis aos diferentes tipos de rendimento, o que, no regime simplificado, é relevante porque o IRS atribui coeficientes diferentes a cada tipo de rendimento: por exemplo, o dos profissionais liberais é de 0,75 (o que lhes confere uma dedução automática de 25%), mas o da venda de mercadorias e produtos é de 0,15 (atribuindo-lhes uma dedução automática de 85%).

O problema é que a categoria B “é uma categoria plurifuncional do ponto de vista das atividades que nela podem constar para uma mesma pessoa”: por exemplo, um profissional liberal pode simultaneamente ter uma exploração agrícola e ter uma loja e a cada um destes rendimentos é atribuído um coeficiente de presunção de despesas distinto.

“Então [neste caso] vou ter em cada um deles um limite diferente? O senhor secretário de Estado diz que posso comprar o saco das batatas para cozinhar em casa [e deduzir essa despesa no regime simplificado], mas tenho de fazer a imputação se tiver três atividades. Como é que imputo [esta despesa] aos [rendimentos] profissionais, agrícolas e comerciais?”, lançou.

Também o critério para definir quais as despesas que poderão ser consideradas no novo regime – que será um requisito de relação (e nao de indispensabilidade) com a atividade — foi criticado por Manuel Faustino.

“Se eu comprar ‘Os Maias’, do Eça de Queirós, porque preciso de fazer uma citação numa peça [jurídica] que estou a escrever, é uma despesa relacionada que equivale ao Código Civil que preciso de ter atualizado ou não é relacionada?”, exemplificou.

O fiscalista entende que, da forma como estão feitas, as alterações são “uma aberração jurídica”: “O regime juridicamente como está construído, e peço desculpa a quem formulou a proposta, mas, se é jurista, sabe que é uma aberração jurídica”.

Isto porque “está a aproveitar a parte que quer da presunção [de despesas] para a pôr num limite” e faz com que “a presunção que o contribuinte até agora tinha a seu favor e, portanto, não precisava de provar nada, vai ter de a provar”, o que se traduz na “inversão do ónus da prova numa presunção legal, o que é outra novidade”.

Para o advogado, não faz sentido que se continue a usar uma presunção legal de gastos para estabelecer o limiar máximo das despesas aceites no regime simplificado, defendendo que, “se se quer atingir o princípio constitucional da tributação pelo rendimento real, então, se a pessoa comprovar mais despesas do que os 25% [da dedução automática a que agora tem direito], que se lhe conceda essa dedução” pela totalidade.

Sublinhando que o novo regime proposto “é tão simplista que não resolve nada”, Manuel Faustino apela a que, se não se acabar já com estas mudanças ao regime, “pelo menos que se passe de algo que já está legislado para uma autorização legislativa para estudo” pelo Governo.