Começou por ser uma curta-metragem com sete minutos sobre Van Gogh, feita pela realizadora polaca Dorota Kobiela. Dois anos de preparação e cinco anos de rodagem depois, “A Paixão de Van Gogh”, realizado por Kobiela e pelo inglês Hugh Welchman, transformou-se numa longa-metragem com actores (James Booth, Saoirse Ronan, John Sessions, Aidan Turner, Helen McCrory, enre outros) computadores e inteiramente pintada a óleo, a primeira deste género, por 125 artistas de 20 países, que se dividiram pelos seus 65 mil fotogramas. O filme reproduz fielmente o estilo do pintor e é contado pelos quadros deste, e Kobiela e Welchman expõem a tese segundo a qual Van Gogh não se suicidou mas terá sido assassinado acidentalmente por um rufião adolescente que o costumava atormentar, René Secretan. O Observador falou com a dupla de realizadores de “A Paixão de Van Gogh”, estreado esta semana entre nós.

Este filme pode ser definido como uma história detectivesca sobre um pintor contada pelos quadros do próprio?

DK – Acho que é uma definição perfeita.

HW – Inteiramente de acordo.

Porque é que escolheram Van Gogh e não outro pintor para tema da fita? Por causa da hipótese alternativa sobre a morte dele? Por gostarem particularmente da sua pintura? Por ambos os motivos?

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DK – A principal razão foram os quadros, a obra dele. A arte inspirou a história, que me é particularmente muito querida e porque encontrei consolo na leitura das cartas de Van Gogh numa altura muito negra da minha vida. Fui muito inspirada por ele, pelo facto de ter falhado em quatro carreiras e de súbito, já´quase com 30 anos, ir dedicar-se a algo completamente novo. E o mistério em redor da sua morte veio dos quadros, porque queríamos fazê-los falar, tal como as pessoas que aparecem neles. São retratos fabulosos e queríamos dar-lhes vida. E por outro lado, sabíamos que Van Gogh não ia estar realmente no filme, embora este fosse sobre ele.

HW – Nós lemos o que pessoas como o Dr. Gachet e Adeline Ravoux , que estiveram com ele nas suas últimas semanas de vida, disseram sobre Van Gogh depois dele ter morrido, e são declarações que se contradizem. Portanto, tivemos que tentar perceber quem estava a dizer a verdade, quem estava a lembrar-se mal do que tinha acontecido e quem estava a exagerar o seu papel na vida dele, para se fazer mais famoso. Assim, também começámos como detectives ao tentar perceber quem é que estava a dizer a verdade e quem estava a esconder coisas. E quando estávamos a ler as cartas que Van Gogh escreveu nas últimas semanas de vida, para vermos como seria o seu estado de espírito nessa altura, detectámos hiatos nas cartas e tentámos preenchê-los. Fazia todo o sentido concebermos uma história detectivesca, porque também nós estávamos a fazer uma investigação desse tipo.

Isso traduz-se nos vários pontos de vista que o filme contempla. Nunca estamos muito seguros sobre quem está a falar verdade, ou está mais perto dela.

HW – Sim, e há ainda um par de grandes mistérios sobre Van Gogh que têm que ser resolvidos, caso da natureza da doença de que sofria e como ela o afectou no fim da vida. E as duas grandes discussões que teve, uma com o irmão, Theo, e outra com o Dr. Gachet. Embora quiséssemos falar da vida e dos quadros dele, achámos que esta história era uma boa maneira para mostrarmos os diferentes aspectos da personalidade de Van Gogh e de interessarmos as pessoas nele, fazermos com que depois de verem o filme, elas se interrogassem sobre quem ele era na realidade. Aliás, o nosso director de fotografia, o Lukasz Szal, a meio da rodagem, notou que isto era muito parecido com “O Mundo a Seus Pés”, do Orson Welles. Quando chegamos ao fim do filme perguntamo-nos quem era este homem na realidade e apesar daquele fantástico plano final, a verdade é que nunca chegamos a saber. Foi assim que também nos sentimos em relação ao Van Gogh.

“A Paixão de Van Gogh”: uma investigação passada dentro dos quadros do pintor

O filme também não contempla o cliché do “pintor louco”, que é associado a Van Gogh na imaginação popular.

DK- Foi exactamente isso que quisemos evitar.

HW – Não quisemos ir por aí porque se estivéssemos a fazer um filme biográfico convencional, teríamos que pensar como é que os problemas mentais dele se manifestavam. A Dorota, quando estava a estudar na universidade, fez uma tese de mestrado cujo tema era se a actividade artística pode conduzir a problemas mentais, ou se são os problemas mentais que podem conduzir à arte. Na família do Van Gogh manifestavam-se vários problemas do foro mental, e ele sofreu de depressão durante toda a sua vida adulta. Isto agravou-se quando ele estava em Arles e trabalhava intensamente, pintava um quadro por dia, e aquilo que hoje consideramos ser o inconfundível e emblemático estilo de Van Gogh se manifestou e consolidou. Ele chegava a pintar 14 horas a fio sob aquele sol violento do Sul de França, não bebia muita água e estava a abusar do álcool, comia mal e lia livros e jornais e escrevia cartas enormes ao irmão. Parecia inevitável que iria quebrar mais cedo ou mais tarde, e que essa quebra se terá dado pela combinação de uma susceptibilidade genética específica com esse estilo de vida desgastante.

A teoria sobre o possível assassínio de Van Gogh, que pode ter sido acidental, é muito plausível, e o filme mostra bem porquê.

HW – É muito significativo que o possível culpado, René Secretan, que costumava atormentar o Van Gogh, só tenha quebrado o seu silêncio e referido o assunto numa entrevista, em 1956, dada pouco antes de morrer, como se tivesse querido fazer uma confissão tardia. E há aquele estranho pormenor. que nunca foi resolvido, do desaparecimento do material de pintura do Van Gogh no dia em que ele apareceu alvejado a tiro. Porque é que o material se sumiu? Quem o fez desaparecer? É muito suspeito. Os próprios intérpretes do filme ficaram muito entusiasmados com esta hipótese de crime. A Helen McCrory, por exemplo, que faz de Louise Chevalier, só dizia: “Não tenho dúvidas, o Van Gogh foi assassinado.”

Sempre quiseram fazer “A Paixão de Van Gogh” com estas características, todo pintado à mão e ao estilo do pintor, ou o projecto era diferente no início e sofreu alterações?

DK – O projecto, no início, era filmar uma curta de sete minutos e seria eu a fazê-la sozinha, pintando tudo à mão.

Nunca demoraria dois anos a preparar e cinco a rodar, como acabou por acontecer.

DK – Não, provavelmente demoraria uns dois anos, se eu a tivesse feito sozinha. Mas o conceito do filme foi sempre o mesmo desde o início: contar a história de um artista através dos seus quadros. Só que a escala foi aumentando.

HW – Quando eu comecei a envolver-me no filme, fiquei muito entusiasmado com a visualidade do que a Dorota estava a fazer. Como já trabalhava em animação há dez anos e nunca tinha visto nada assim, e comecei a ler coisas sobre a vida de Van Gogh, convenci-me que era uma história para ser contada em grande escala e que o estilo em que a íamos contar ia interessar às pessoas. E foi uma questão de vermos se tecnicamente, fisicamente, podíamos levar o filme avante. Em 2012, fizemos uns testes connosco em vez de recorrer a actores, e usando uns lençóis em vez do “green screen”. Contratámos também quatro pintores a óleo muito bons e a Dorota quis ver se conseguia treiná-los em animação. Os resultados desses testes convenceram-nos que, do ponto de vista técnico, era possível fazer o que queríamos e só precisávamos de mais pintores.

Foi difícil financiar um filme com estas características?

HW – Foi terrivelmente difícil. Mas o mais difícil foi escrever o argumento e fazer coincidir os quadros com a história detectivesca.

DK – Foi um trabalho muito rígido, muito dogmático, com muitas restrições. Não podíamos fazer o que nos apetecesse, a natureza rigorosa do conceito que preside ao filme impedia-o.

HW – E também foi muito complicado realizá-lo, havia especificações de enquadramentos muito precisas, tinha que ser tudo muito exacto. Acho que o filme nunca teria sido financiado se não tivesse sido o público. O Polish Film Institute deu-nos algum dinheiro para desenvolver o filme mas não podíamos gastá-lo a treinar pintores, por isso conseguimos dinheiro no Kickstarter, o que nos permitiu arranjar os pintores. Mas como depois disso continuávamos a precisar de mais dinheiro, pusemos um anúncio a pedir pintores no nosso “site” e juntámos-lhe um pequeno “trailer”. Um fã de um dos actores que entra no filme partilhou o “trailer” na sua página de Facebook, e em 24 horas, ele tinha tido três milhões de visitas, e em três meses, 200 milhões. E foi graças a isso que conseguimos o resto do dinheiro e que vendemos o filme para muitos países em todo o mundo. Sem este interesse do público, sem esta divulgação nas redes sociais, teria sido muito difícil arranjarmos mais financiamento para o acabarmos. Isto mostrou também que continua a haver muito interesse pela figura de Van Gogh, um apetite para novas aproximações visuais ao cinema e pessoas que com confiança suficiente para investir em coisas novas.

O filme combina actores de carne e osso e pintura a óleo tradicional. Também usaram computadores?

HW – Sim, mas só no início em vez de no fim. Habitualmente, no cinema, os computadores só entram em cena no final da produção, para fazer os efeitos visuais. Nós usámo-los no começo do filme, para dar aos pintores as referências de trabalho. Quanto aos actores, foi uma insistência da Dorota, porque o Van Gogh quando fazia retratos, trabalhava sempre com o modelo à frente dele e não gostava de recorrer à imaginação, preferia imaginar de novo o que tinha perante ele.

Portanto, nada de actores virtuais, sim aos actores reais.

HW – Exacto. E queríamos também que os nossos pintores captassem o poder da interpretação dos actores nos quadros. Por isso, esperamos que os espectadores consigam ver a emoção dos intérpretes, que ela passe através dos quadros. Entre as pessoas do mundo da arte a que já mostrámos o filme, contam-se dois peritos do Museu Van Gogh que são dos maiores especialistas do mundo na obra dele e que nos ajudaram nas pesquisas desde 2013. Felizmente, eles adoraram-no.

DK – As projecções que fizemos em museus de todo o mundo têm tido reacções muito boas, muito positivas. Sobretudo por parte dos artistas, porque percebem que houve ali muitas mãos humanas a pintá-lo.

Este filme é um espantoso exemplo de trabalho colectivo. Os pintores vieram de vários países do mundo, não foi?

HW – Sim, de 20 países diferentes. No princípio, iam ser só pintores polacos, porque há muita gente talentosa na Polónia, mas depois precisámos de mais do que podíamos encontrar lá e houve gente que veio dos EUA, da Austrália, de Espanha, do Japão. E não foi para ganhar dinheiro mas apenas porque queriam fazer parte deste projecto e da paixão que o envolveu.

E agora vão descansar, ou já estão a pensar num novo filme?

HW – Queremos fazer um filme de terror todo pintado, como este, baseado nos trabalhos que Goya fez no final da vida. E a Dorota está a pensar rodar um filme de alpinismo.

DK – Sim, é uma biografia de uma alpinista polaca, que já morreu.

Mas não é de animação?

DK – Não, desta vez será um filme de imagem real. A animação fica para os horrores do Goya.