O Parlamento começou a debater o Orçamento do próximo ano e aconteceu o que acontece sempre: a direita considerou que a receita era errada, a esquerda que a receita ainda precisa de mais ingredientes, enquanto o Governo se convence a si mesmo de que tem a receita certa.

Seja qual for o partido que estiver no Governo, a discussão nunca muda muito quando se chega a outubro/novembro. Há sempre quem ache que se deve gastar mais, e quem diga que não há dinheiro que chegue. Quem está no Governo está para temperar os excessos, sejam eles da esquerda ou direita, mas sem maioria absoluta no Parlamento, tem de mostrar alguma abertura.

Foi isso que fez esta quinta-feira António Costa. Perante as perguntas dos deputados, do CDS ao Bloco de Esquerda, sobre as alterações no IRS que podem prejudicar os trabalhadores independentes, António Costa admitiu fazer alterações no processo de especialidade que se avizinha para que isso não aconteça.

O primeiro-ministro mostrou ainda abertura para rever na especialidade outras matérias, como o dinheiro que será atribuído pelo orçamento à Proteção Civil e luta contra incêndios, disse ao deputado do PAN que iria analisar com abertura as 13 propostas que André Silva disse que iria apresentar, isto no mesmo dia em que o Bloco de Esquerda disse que está a negociar com o Governo um novo apoio aos pensionistas que se reformaram antecipadamente entre 2011 e 2015.

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Numa altura em que as próprias garantias dadas pelo Governo ao PCP e Bloco de Esquerda não são claras – ambos reclamam o corte no subsídio de desemprego acabe, que a derrama estadual aumente e que mais alunos tenham direito a manuais escolares gratuitos — António Costa tenta não fechar portas, sem dizer bem quais ficarão totalmente abertas.

Esquerda com avisos: despesa orçamentada é para executar (e não cativar)

A esquerda continua a somar exigências neste Orçamento do Estado e recusa dizer que está satisfeita. O PCP tem sido mais duro nas palavras e foi assim também nesta primeira metade do debate da proposta do Governo da generalidade, com o deputado Paulo Sá a acusar mesmo o PS de “impor a si mesmo” um “espartilho” que não permite ir mais longe.

O aviso-maior à esquerda foi mesmo para o nível de cativações. PCP e Bloco de Esquerda fizeram questão de sublinhar que o que a despesa que está orçamentada é para executar. Catarina Martins, líder do Bloco, até admitiu: “Todos queremos contas públicas certas”. Para logo depois somar o aviso: “Mas fragilizar funções estruturais do Estado é um caminho perigoso”, “há sectores asfixiados ano após ano. Queremos uma dupla garantia: que em 2017 não há razão de força maior para que a despesa que está no OE não seja mesmo executada e que o Orçamento tenha um investimento que é mesmo para ser executado”.

Já no PCP, foi Paulo Sá que, já na intervenção final, carregou nas tintas em relação ao Governo para avisar que “nem só o Orçamento do Estado se deve libertar dos constrangimentos e espartilhos da soberania imposto pela União Europeia. Também a execução orçamental, incluindo cativações”.

Os comunistas chegaram até a perguntar diretamente a Costa sobre o reforço de contratações para a Administração Pública, mas o primeiro-ministro refugiou-se numa máxima: “As necessidades são ilimitadas, mas os recursos são limitados. É uma opção política a escolha que fazemos sobre a alocação de recursos”. E ainda se desdobrou em explicações, misturando com isto a reposição de rendimentos e os esforços já feitos pelo Governo em matéria de função pública neste Orçamento. Não disse diretamente que não, mas não vai dizer que sim.

Além disso, a esquerda deixou ainda um extenso caderno de encargos que quer ver o Governo aceitar no debate do Orçamento na especialidade.

  • Fim do corte do subsídio de desemprego;
  • Alterações ao regime dos recibos verdes;
  • Mais contratações na Administração Pública;
  • Fim do fator de sustentabilidade para as carreiras contributivas mais longas;
  • Aumento da derrama do IRC para empresas com lucros elevados;
  • Incluir no descongelamento de carreiras na função pública os professores;
  • Resposta orçamental ao problema dos incêndios, que tem de ser vista na especialidade;
  • Aumento geral dos salários e aumento do salário mínimo nacional para 600 euros já em 2018.

Para já, António Costa só admitiu poder ir mais além em matéria do regime simplificado dos recibos verdes. Costa afirmou que está disponível para “responder e melhorar” a proposta sobre o fim do regime simplificado dos recibos verdes, mas deu conta dos princípios que já estão acautelados na proposta do Governo: “O governo aceita que haja redução das despesas até ao limite de 25% do rendimento bruto anual, mas introduzimos alterações como o mínimo de existência, que asseguram que 90% dos trabalhadores não terão qualquer alteração ou serão mesmo beneficiados na sua tributação. Todos os rendimentos até 16.416 euros por ano não precisam de apresentar qualquer despesa para serem afetados por esta alteração”, explicou. Ainda assim, nos poucos casos que não são acautelados, Costa mostra abertura para melhorar.

Diabo não veio, direita até concorda com devolução de rendimentos, mas critica “a pior estratégia possível”

Propaganda eufórica de uns ou frustração de outros, há sempre dois lados para a mesma história. A primeira parte do debate do Orçamento do Estado ficou também marcada pelas críticas que PSD e CDS fizeram à estratégia orçamental do Governo. A ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque até admitiu que concordava com vários aspetos do Orçamento, como a reposição dos rendimentos, o descongelamento das carreiras ou a atualização das pensões decorrente da lei, mas depois não poupou críticas àquela que diz ser a “pior estratégia possível”.

Num quadro económico bastante favorável, o deputado do CDS João Almeida criticou o atual Governo por não estar a aproveitar os ventos favoráveis que sopram de Bruxelas para gerar riqueza sustentada, limitando-se a distribuir aquilo que já existe. Maria Luís tinha também seguido a mesma tese para dizer que o Governo só cumpre as metas por causa das “surpresas positivas” que vêm do BCE. Ora, o que PSD e CDS querem é, acima de tudo, que o Governo aproveite a oportunidade para “olhar para o futuro” e não apenas para o presente. Ou seja, que não se limite a “satisfazer os interesses” dos eleitores do BE e do PCP. Que não confunda interesse público com interesse do seu público, disse Telmo Correia.

Os partidos da direita, sobretudo o PSD, insistem no argumento de que o atual governo é “recordista” da carga fiscal em percentagem do PIB, sublinhando que o Governo que tem o ciclo económico mais favorável desde a adesão ao euro não devia estar a aumentar impostos — e está. Não a aumentar impostos sobre o rendimento, mas a aumentar impostos indiretos sobre os combustíveis ou os produtos alimentares com alto teor de sal, por exemplo. António Costa ainda ensaiou uma explicação: “É que sobre o rendimento do trabalho ninguém pode escolher se paga ou não paga [impostos], mas a escolha do que compra ou não compra, cada um pode escolher”. O argumento, contudo não colhe junto da direita, que lembra que os impostos indiretos não são progressivos, uma vez que até quem não tem rendimentos para serem tributados em sede de IRS tem de comprar comida e gasolina.

Outro ponto de honra dos partidos à direita, em especial do CDS, são as cativações. Cecília Meireles acusou o Governo de estar a fazer cortes ao aplicar níveis históricos de cativações, e lembrou um caso noticiado de um investimento do IPO bloqueado por Mário Centeno que estaria a limitar a sua capacidade de fazer cirurgias oncológicas. António Costa respondeu com a cartilha do costume: as cativações são um instrumento de gestão normal, nunca podem resultar em cortes e a questão do IPO não se coloca neste contexto, porque é na verdade a tentativa de antecipar um investimento previsto para o próximo ano. Mas com uma cedência: o INEM vai deixar de ser alvo de cativações.

Posto isto, se o PSD acusou Costa de “otimismo inconsciente” e de “propaganda eufórica”, Costa respondeu que o PSD só via euforia na medida da sua “frustração”. Frustração por não ter vindo o Diabo, como se diz que o PSD sempre antecipou. “O diabo não está cá, e o PSD não consegue esconder a enorme frustração”, disse. O take 1 da discussão orçamental terminou, mas segue-se a segunda parte já esta sexta-feira, com deputados e ministros a defenderem a sua razão. O orçamento será votado, e aprovado também esta sexta-feira, na generalidade, seguindo-se depois a discussão medida a medida, ministério a ministério.