A fuga para a Bélgica do presidente destituído da Generalitat, Carles Puigdemont, juntamente com alguns dos seus ex-conselheiros, podia não passar apenas disso: uma fuga. Mas o presidente do governo regional da Catalunha não quer que assim seja. Por isso, nos últimos dias, reforçou em diferentes ocasiões que o seu executivo é o “governo legítimo da Catalunha”.

Foi essa a expressão que usou numa publicação na sua conta de Twitter, horas depois de os seus ex-conselheiros que ficaram em Espanha terem sido colocados em prisão preventiva. Partilhando uma fotografia tirada na Bélgica, onde aparecia sentado com os ex-conselheiros que o acompanharam na fuga até Bruxelas, escreveu: “O legítimo governo da Catalunha foi preso pelas suas ideias e por ter sido leal ao mandato aprovado pelo parlamento da Catalunha”.

E, quando falou pela primeira vez publicamente após a ida para Bruxelas, manifestou o seu desejo para o futuro próximo: “Queremos continuar a trabalhar como governo”.

Carles Puigdemont não utilizou a expressão “governo no exílio” mas, na prática, é precisamente isso que ele deseja pôr em prática — mesmo que tenha acedido concorrer às eleições de 21 de dezembro, convocadas por Mariano Rajoy. Na versão em inglês da Wikipedia, a Catalunha já aparece no artigo dedicado a “Government in exile”.

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Aqui, lembramos os casos de três governos no exílio que ainda hoje mantêm atividade, mesmo que de forma reduzida. Um europeu, outro lusófono e o último asiático — e nenhum deles parece estar perto de poder vingar no território que acredita ser seu por direito.

Bielorrússia, o governo no exílio mais antigo

Na Bielorrússia, não há sombra de dúvidas: quem manda no país é Alexander Lukachenko. É assim há 23 anos, muitos deles com mão de ferro, o que lhe tem valido o título de “Último Ditador da Bielorrússia” — um cognome da autoria da ex-secretária de Estado norte-americana Condoleeza Rice. Porém, para muito poucos, o verdadeiro e legítimo líder é uma mulher chamada Ivonka Survilla.

É esse o nome da Presidente da República Popular da Bielorrússia, fundada em 1918 após o colapso da Rússia de Nicolau II às mãos da revolução bolchevique, de Lenine. A Bielorrússia, que fora em grande parte um campo de batalha entre a Rússia e a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, tinha então uma oportunidade para respirar de alívio: Moscovo e Berlim acabavam de assinar a paz, firmada no Tratado de Brest-Litovsk. Foi assim, com a paz reposta, que foi criado o Conselho da República Popular da Bielorrússia, um órgão composto por vários setores da sociedade bielorrussa. O objetivo de muitos dos seus membros era a formação de um Estado livre e independente da Rússia — e foi precisamente isso que declararam, a 25 de março de 1918.

Jan Sierada, o primeiro Presidente do Conselho da República Popular da Bielorrússia, tentou persuadir Lenine a aceitar a independência da Bielorrússia, mas o líder bolchevique não se deixou convencer

O nome do Presidente era Jan Sierada, mas Lenine não o reconheceu como tal — nem sequer achou que a Bielorrússia, território que pertenceu à Rússia Imperial e em tempos também ao Grão-Ducado da Lituânia, era um território independente. Mais tarde, no contexto da Guerra Civil da Rússia (1917-1922), onde “vermelhos” se bateram contra “brancos”, o destino da Bielorrússia acabou por ser aquele que já tinha sido o seu durante a Primeira Guerra Mundial e o que viria, mais tarde, a acontecer durante a Segunda Guerra Mundial — serviu de campo de batalha entre forças beligerantes. Foi precisamente isso que aconteceu quando os “vermelhos” de Lenine combateram os “brancos” que vinham da Polónia e da Ucrânia, num esforço (que se revelou ser em vão) para impedir a formação da União Soviética.

O governo da República Popular da Bielorrússia exilou-se logo em 1919, quando o reduzido poderio militar que tinha ao seu dispor se revelou inútil para fazer frente aos “vermelhos”. A fuga foi protagonizada por Piotra Krečeŭski, o segundo Presidente da República Popular da Bielorrússia, que se refugiou em Praga, na República Checa. O governo no exílio mudou de coordenadas já com o seu quarto Presidente, Vincent Žuk-Hryškievič, que se fixou em Toronto, no Canadá, em 1956. Depois, com outro Presidente, Jazep Sažyč, a República Popular da Bielorrússia passou a funcionar a partir dos EUA. Em 1997, voltou para o Canadá, quando o governo no exílio da Bielorrússia passou a ser chefiado, pela primeira vez, por uma mulher. Trata-se de Ivonka Survilla, atualmente com 81 anos, a atual líder. Além de Presidente da República Popular da Bielorrússia, trabalhou como tradutora no serviço nacional de saúde canadiano e é pintora nas horas vagas.

Ivonka Survilla é presidente do governo no exílio da Bielorrússia desde 1997. Vive no Canadá e é tradutora reformada

Atualmente, a República Popular da Bielorrússia é o governo no exílio há mais tempo em atividade. No seu site oficial, a última comunicação foi feita esta quarta-feira, 1 de novembro, para assinalar os 80 anos da execução em massa de mais de 100 políticos e intelectuais bielorrussos, vítimas das purgas de Estaline. Segundo a nota publicada na quarta-feira, “a repressão política continua a ser uma realidade da Bielorrússia de hoje em dia”.

Cabinda, os separatistas que quase mataram Adebayor

Cabinda é uma zona especial de Angola. Primeiro, porque é um enclave, mantendo fronteiras com a República Democrática do Congo e com o Congo. Depois, porque é muito rica em petróleo, a matéria-prima que move grande parte da economia angolana. Mas se, em parte, o petróleo angolano é associado ao apelido dos Santos — por ser Isabel dos Santos a presidente da Sonangol e por Angola ter sido governada quase 38 anos pelo seu pai, José Eduardo dos Santos — ela poderia ser associada aos Nzita. É essa dinastia — iniciada por Tiago Nzita e continuada por Emmanuel Nzita — que marca o governo no exílio de Cabinda., sediado em Paris e com representação em Brazaville.

Para entender a história da formação do governo no exílio de Cabinda, é preciso recuar a 1963. Foi nesse ano, já em plena guerra colonial, que foi fundada a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC). Ainda assim, apesar do ambiente bélico vivido um pouco por toda aquela então colónia portuguesa, Cabinda foi poupada à destruição que assolou outras partes do país. “Os sucessivos governos de Luanda, os seus apoiantes estrangeiros e as companhias petrolíferas concordaram que era imperativo proteger o fluxo de petróleo”, escreve Ricardo Soares de Oliveira no livro Magnífica e Miserável — Angola Desde a Guerra Civil (Tinta-da-China, 2015). “As fações revoltosas de Cabinda, por seu turno, recebiam pagamentos das petrolíferas e, diz-se, do Estado, e não incomodaram o sector do petróleo.”

A maior parte da produção de petróleo de Angola, que depende fortemente daquela matéria-prima, é proveniente do enclave de Cabinda (MARTIN BUREAU/AFP/Getty Images)

Durante os anos da Guerra Civil, a FLEC estabeleceu um governo no exílio, diretamente de Kinshasa. O seu líder era Nzita Tiago. Depois, em 1975, já depois da libertação das colónias portuguesas, a FLEC declarou a independência. Esta, porém, não teve efeito. A Guerra Civil de Angola tomou conta do país e a FLEC não contava com mais do que uns “guerrilheiros insignificantes”, segundo Ricardo Soares de Oliveira. Durante a Guerra Civil, a FLEC foi dilacerada por uma cisão que deu origem a duas frentes: FLEC-Renovada, que se afastou em desacordo com Nzita Tiago; e a FLEC-FAC, que permaneceu sob a orientação daquele líder separatista.

Com a vitória na Guerra Civil por parte do MPLA de José Eduardo dos Santos em 2002, continua aquele académico, “Cabinda foi invadida por trinta mil militares, numa demonstração de força por parte das FAA [Forças Armadas de Angola] que resultou numa subida acentuada do número de vítimas mortais e em violações dos direitos humanos”. Em 2006, a FLEC-Renovada chegou a acordo com o Governo de Angola e rendeu-se de forma incondicional. A FLEC-FAC, com representações em Brazaville e também em Paris, não renunciou à luta armada.

Em 2010, a FLEC foi falada em todo o mundo, depois de a fação FLEC-PM ter reivindicado a autoria de um ataque terrorista contra o autocarro da seleção nacional do Togo, onde jogava Emmanuel Adebayor, a maior estrela da história do futebol togolês. O veículo deslocava-se para Cabinda, onde ia disputar os jogos da fase de grupos da Taça das Nações Africanas, quando foi fulminado por tiros de metralhadora. Ao todo, morreram três pessoas — um treinador adjunto, um jornalista togolês e o condutor do autocarro, de nacionalidade angolana. Só em 2017, em junho, André Rodrigues Mingas, dirigente da FLEC-PM, foi condenado a cinco anos de prisão efetiva em França (onde vive) pelo crime de “apologia do terrorismo”.

O governo da República de Cabinda no exílio foi liderado por Nzita Tiago entre 1975 e 2016, ano da sua morte, nos subúrbios de Paris. Foi sucedido pelo filho, Emmanuel Nzita. Igual ao seu pai, o atual líder oscila entre umas declarações que deixam adivinhar um apaziguamento com Angola e outras que recrudescem a retórica separatista. Enquanto isso, no terreno, continua a haver um braço armado das FLEC. Em junho de 2016, garantiam ter matado seis soldados angolanos — informação que o Governo de Luanda não confirmou.

Tibete, o exílio político e religioso que deu um Nobel da Paz

Se o nome da Administração Central Tibetana pode escapar à maioria das pessoas, o mesmo não se pode dizer do Dalai Lama, o líder espiritual budista. Ora, durante muitos anos, um e outro foram praticamente sinónimos, numa região onde o líder espiritual foi até há pouco tempo o líder político.

Em 1950, pouco depois da fundação da China comunista de Mao Tsé-Tung, as tropas chinesas marcharam sobre Lhasa e ocuparam a região do Tibete. Nesta altura, o Dalai Lama, à altura com apenas 15 anos, deu autorização a representantes do governo tibetano para negociarem um acordo com a China. Destas discussões resultou o Acordo dos 17 Pontos, que essencialmente consumou a soberania chinesa no Tibete.

Durante os anos que se seguiram, o regime de Mao apertou o cerco ao culto religioso na China. O Tibete não só não foi exceção como foi um exemplo que Mao procurou dar. Foram queimados mosteiros e templos e, ao contrário do que era prometido no Acordo dos 17 Pontos, o culto religioso foi, na prática, banido. Em 1959, eclodiu a Revolta Tibetana, que resultou num conflito de três anos, ao longo dos quais os norte-americanos da CIA prestaram apoio logístico e treino aos tibetanos. Porém, a ajuda de pouco serviu.

Logo em 1959, o Dalai Lama fugiu para a Índia, mais propriamente para Dharamshala. Ali, com o beneplácito do então primeiro-ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, instituiu o governo no exílio do Tibete. Desde então, Dharamshala tornou-se no maior centro de acolhimento de refugidos tibetanos — segundo números oficiais, há 94.203 em toda a Índia — e é ali que a cultura tibetana continua a garantir a sobrevivência. Grande parte desse esforço deve-se a um sistema de educação onde é ensinado o dialeto tibetano e a história daquela região, ainda hoje sob domínio da China.

Dalai Lama, quando recebeu o Prémio Nobel da Paz, em 1989 (AFP/Getty Images)

Em 1989, trinta anos depois da fundação da Administração Central Tibetana, o Dalai Lama foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz, tornando-o numa figura mundialmente reconhecida. O prémio foi-lhe atribuído pouco depois de os confrontos na praça de Tiananmen, em Pequim, terem prejudicado internacionalmente a imagem do regime chinês. O Comité Nobel norueguês destacou a sua “constante resistência em usar a violência na luta pela reconquista da liberdade do seu povo”. Além disso, comparou-o a Mahatma Gandhi, dizendo que aquele prémio era também um “tributo” à memória do líder indiano.

A preponderância do Dalai Lama sobre a política da Administração Central Tibetana diminuiu quando, em 2001, foram celebradas as primeiras eleições onde os refugiados tibetanos de todo o mundo foram chamados a escolher o governo no exílio — cujo líder, até à data, era o próprio líder espiritual.

Já em 2011, o Dalai Lama renunciou à sua autoridade perante a Administração Central Tibetana — sobre a qual exercia um papel equiparável ao de um Presidente num sistema parlamentar. Desde essa altura, o cargo mais alto do governo tibetano no exílio passou a pertencer ao primeiro-ministro, Lobsang Sangay.