O Governo construiu o Orçamento do próximo ano para cumprir as regras europeias “apenas nos mínimos indispensáveis” e evitar vê-lo chumbado pela Comissão Europeia, usando “toda a ambiguidade das regras” para dar a imagem de cumprimento dos princípios das regras, diz o Conselho das Finanças Públicas, que considera que a forma como o Governo está a classificar algumas medidas instrumentais para cumprir as metas não cumprem as regras, algo que já tinha acontecido em 2016. Portugal arrisca-se assim a ser alvo de um procedimento por desvio significativo em maio.

Num parecer particularmente duro no que diz respeito ao cumprimento das regras orçamentais com que Portugal se comprometeu, o Conselho das Finanças Públicas diz que “a Proposta de Orçamento do Estado para 2018 continua sobretudo empenhada em tirar partido da conjuntura favorável e em cumprir as regras apenas nos mínimos indispensáveis para obviar a desaprovação da Comissão Europeia”.

Mas não é só ao esforço orçamental mínimo que a instituição liderada por Teodora Cardoso aponta o dedo. A forma como esse esforço é conseguido contabilisticamente também está na mira dos técnicos. A proposta, dizem, “usa, além disso, toda a ambiguidade das regras, reforçada pelas fragilidades que ainda caraterizam o reporte das contas públicas em Portugal, para aproximar uma imagem de cumprimento dos princípios subjacentes à vertente preventiva do PEC [Pacto de Estabilidade e Crescimento], sem verdadeiramente refletir a sua natureza estrutural”.

O Conselho questiona esta abordagem às regras e diz que o facto de estes indicadores serem falíveis não deve ser usado para os desvalorizar, mas sim para os complementar com mais informação e dar prioridade aos princípios de promoção da sustentabilidade das contas públicas.

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As críticas do Conselho das Finanças Públicas surgem depois de, mais uma vez, a avaliação que o Ministério das Finanças fez das medidas de caráter temporário (que assim ficariam excluídas na avaliação do cumprimento da regra de redução do défice estrutural) diferir daquilo que as regras europeias parecem dizer. Em 2016, a questão já se tinha colocado, depois da UTAO ter acusado o Governo de maquilhar as contas públicas, e apesar da insistência de Mário Centeno, a Comissão recalculou o esforço orçamental e exigiu mais medidas.

O Ministério das Finanças está a contar um conjunto de medidas com efeito negativo no défice do próximo ano como sendo temporárias, ou seja não conta para este défice, mas a avaliação que o Conselho das Finanças Públicas – com a informação limitada que o Governo lhes fez chegar, e que nunca incluiu no Orçamento – faz é que a maior parte destas têm de contar para o défice e que a avaliação do gabinete de Mário Centeno não deve passar no crivo de Bruxelas.

É o caso de uma perda de receita com IRC de 235 milhões de euros que são na verdade uma operação de uma empresa este ano que o Ministério das Finanças não conta que volte a acontecer no próximo ano, dos gastos com a conversão de ativos por impostos diferidos em créditos fiscais (com custo de 120 milhões de euros para os cofres públicos), dos gastos com uma garantia que deverá ser executada para pagamento aos lesados do BES (na ordem dos 150 milhões) e do pagamento de 83,6 milhões de euros à Grécia, resultante de um acordo entre os países do euro.

Estes efeitos, diz o CFP, não podem ser considerados efeitos temporários de acordo com as regras, apesar de o Governo estar a contá-los como tal.

No total, em conjunto com o recalculo do PIB usado para fazer a conta do saldo estrutural em percentagem do PIB que o CFP também fez, o esforço orçamental fica muito aquém do exigido este ano: 0,3% do PIB em vez dos 0,6% exigidos. Nas contas do Governo, seria de 0,5%. A estas contas acresce que no ano passado o ajustamento estrutural também já terá ficado muito aquém do exigido, 0,1% do PIB em vez de 0,6%.

À falta de redução do saldo estrutural ao nível com que Portugal se comprometeu com os seus parceiros da União Europeia, o Orçamento tem ainda outra componente que pode dar dores de cabeça ao Governo português. Segundo o CFP, o desvio do crescimento da despesa primária excede em média 1% em 2017 e 2018.

Caso um destes dos indicadores tenha um desvio superior a 0,5% ao valor recomendado em cada um dos anos, ou em dois anos consecutivos, “pode conduzir à abertura de um procedimento por desvio significativo”, algo que só aconteceria na avaliação que é feita na primavera. Ou seja, o Orçamento poderia ser aprovado nas próximas semanas por Bruxelas, mas chegada a altura de fazer a avaliação em maio, a Comissão pode abrir um Procedimento por Desvio Significativo, que em última análise pode conduzir a sanções ao país.

Outra das regras que este Orçamento parece não cumprir é a da regra transitória da dívida. Saído do Procedimento dos Défices Excessivos este ano, Portugal passa a estar sujeito a outras regras. Em primeiro lugar, o indicador orçamental mais importante passa a ser o saldo estrutural e a sua redução, daí a importância do cumprimento destas regras salientado pelo CFP. Outra é a regra do benchmark da despesa referido acima. Além disso, Portugal vai passar a estar incluído na regra da dívida pública, que implica uma redução de um vigésimo da divida pública anualmente do valor que superar os 60% valor de referência no PEC.

Mas até ter de cumprir integralmente esta regra, Portugal tem um período de transição de três anos desde a saída do PDE até ter de cumprir a regra por inteiro. Ainda assim, Portugal está sujeito ao cumprimento de uma correção mínima ao longo destes três anos, que segundo o CFP, não está a acontecer.

“De acordo com os cálculos do CFP, baseados na evolução do rácio da dívida pública prevista pelo Ministério das Finanças entre 2018 a 2021, não se encontra assegurado o cumprimento da regra transitória de correção do excesso de dívida — o ajustamento estrutural linear mínimo (MLSA) — aplicável durante os três anos do período de transição. No ano de 2018, o ajustamento estrutural linear mínimo necessário para assegurar o cumprimento do critério da dívida nesse ano exige uma variação do saldo estrutural de 0,5 p.p. do PIB, valor que não é atingido pela melhoria do saldo estrutural recalculado pelo CFP”, diz a instituição.

Isto, claro, nas contas feitas pelo CFP. Nos planos do Governo, se a Comissão aceitasse a sua forma de contabilizar medidas temporárias, esse cumprimento estaria assegurado.

Esforço de 2018 nem paga custos que transitam de 2017

A avaliação global do Conselho das Finanças Públicas aponta para que a redução que efetivamente deverá acontecer no défice estrutural em 2017 e 2018 só aconteça devido à redução dos juros. Se os juros não caíssem, o défice estrutural também não seria reduzido. Em 2016 e 2017, esse esforço não só não existiria, como o défice até teria tido um agravamento.

“Não obstante a redução do desequilíbrio orçamental, o esforço orçamental medido pela variação do saldo estrutural sustenta-se no contributo favorável dos encargos com juros. A melhoria prevista para o saldo estrutural em 2018 continuará a beneficiar integralmente do contributo favorável dos encargos com juros, contrariamente ao efeito que resulta de medidas discricionárias tomadas pelo Governo. O efeito cumulativo relativo aos anos de 2016 a 2018 evidencia uma variação positiva de 0,7 p.p. do PIB do saldo estrutural que depende totalmente do contributo dos encargos com juros, suficiente para contrariar o contributo negativo das medidas de política (-0,2 p.p.) adotadas nesses anos”, explica o CFP.

Esta é uma das fragilidades apontadas pelo CFP à estratégia do Governo. O Orçamento do próximo ano, tal como já aconteceu este ano, está muito apostado em reduzir o défice sem na verdade tomar medidas para o fazer, já que o que mais contribui para que o défice seja reduzido são efeitos de conjuntura.

As contas que melhor ilustram esta estratégia são porventura as dos gastos que transitam para o próximo ano. O Governo tomou várias medidas durante o ano em curso – como a eliminação da sobretaxa e o aumento extraordinário de pensões – que ainda têm custos no próximo ano. As medidas de consolidação orçamental que o Governo prevê para o próximo ano não chegam, porém, nem para pagar essas medidas, quanto mais as medidas que irão agravar os custos que o Governo quer implementar – como o descongelamento de carreiras ou as mudanças no IRS.

O contributo das novas medidas de política é, contudo, insuficiente para compensar o impacto líquido negativo de medidas aprovadas no ano anterior. O impacto negativo no saldo dos efeitos carry-over de medidas aprovadas em 2017 (414 milhões de euros) traduz-se numa redução de receita em 260 milhões de euros e num aumento da despesa em 154 milhões de euros. Estes efeitos refletem, no caso da receita, o impacto decorrente da eliminação total e completa da sobretaxa do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) em 2018, enquanto na despesa traduzem o efeito em 2018 da medida de atualização extraordinária das pensões introduzida no Orçamento do Estado para 2017. Os efeitos destas medidas de 2017 anulam o impacto orçamental líquido das novas medidas previstas na Proposta de Orçamento do Estado para 2018 para a redução do défice”, diz o relatório.