Quatro anos depois, Colin Kaepernick volta a ser capa da GQ. Em 2013, no rescaldo da presença no Super Bowl (a final da Liga de futebol americano), o quarterback, que usava cabelo curto, era colocado como um dos jogadores do momento e um exemplo para os mais novos; agora, com um cabelo bem volumoso, merece destaque por outras razões: o cidadão do ano é “o homem que se tornou um movimento” e que serve de exemplo para todos.

“Existem cerca de 90 quarterbacks inscritos na NFL como titulares ou reservas. Colin Kaepernick é melhor, pelo menos, do que 70. E ainda é, aos dias de hoje, um dos mais dotados quarterbacks na Terra. Ainda assim, foi colocado de lado do jogo que ama apenas por um gesto: ajoelhar-se durante o hino nacional. E fê-lo por uma razão clara: fê-lo para protestar com a opressão sistemática e, mais especificamente, como diz de forma repetida, com a brutalidade policial com pessoas negras”, explicou a revista após lançar online a capa de 2017.

E até as conversas com Kaepernick impressionaram a publicação: desde a primeira abordagem, o jogador disse que participaria no trabalho para resgatar toda uma narrativa de protesto entretanto capturada pela força da conta do presidente Donald Trump no Twitter, mas que não iria fazer declarações. Agarrando nessa ideia, a GQ ouviu uma série de pessoas próximas de Kaepernick e fez das imagens a palavra forte.

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“No final dos anos 60, Muhammad Ali ergueu-se contra a Guerra do Vietname e ficou afastado do desporto durante três anos no auge do seu talento, um pouco como o Colin agora. Continuou a treinar durante esse período, à espera da sua oportunidade para voltar ao boxe. Era conhecido por correr nas ruas e ter miúdos atrás dele – era o Campeão do Povo, impulsionado nos seus piores dias pelos seus verdadeiros fãs. Como o Colin passou um ano como um homem sem equipa, trabalhámos com dez dos mais próximos confidentes – artistas, ativistas, académicos e uma lenda dos movimentos dos direitos civis – que partilharam o que significa o seu protesto para eles e o que deveremos fazer no futuro”, rematou a revista, reforçando o porquê da escolha.

Mas, afinal, quem é Colin Kaepernick, o homem de quem todos falam? A história do quarterback que até começou como defesa e de quem hoje todos falam só pode ser percebida após perceber-se a história do próprio. E que é uma história de crença e de superação, entre pontos baixos e altos dentro e fora dos campos.

Nascido em Milwaukee, foi entregue pela mãe biológica, Heidi Russo, na altura com 19 anos e solteira (o pai biológico abandonou-a ainda antes do nascimento do bebé), para adoção. Teresa, também enfermeira, falou com o marido Rick e decidiram avançar. Colin era um rapaz e o casal já tinha perdido dois filhos por problemas cardíacos. Kyle e Devon ganharam um irmão. E a dor da família, sem desaparecer, ficou diferente.

“Nunca me esquecerei desse dia. Trouxeram-no numa cadeirinha. A mãe biológica estava lá. Olhei para ela, acenou-me com a cabeça e tirei-o da transportadora. Quando agarrei nele, comecei a chorar. Demos um forte abraço. Ela precisou de mais uns minutos e só depois saímos”, contou Teresa Kaepernick à ESPN.

Colin era daqueles miúdos com jeito para todos os desportos. Chegou a sentir os olhares de lado por ser um afro-americano adotado por um casal branco e com irmãos brancos, mas essa capacidade para jogar futebol americano, basebol e basquetebol aumentava a capacidade de integração e resistência às “bocas” dos outros miúdos.

Quando estava no ensino secundário, recebeu inúmeras bolsas de equipas de basebol (em 2009, podia mesmo ter ido para os Chicago Cubs, algo que recusou) e caiu no goto do scouting de formações de basquetebol. Ainda assim, sempre preferiu o futebol americano. E foi para a única universidade que lhe ofereceu uma bolsa: Nevada.

Depois de terminar a licenciatura em Gestão e Administração de Empresas, foi escolhido pelos San Francisco 49ers na segunda ronda do draft de 2011 e não demorou a destacar-se, aproveitando a lesão de Alex Smith para ganhar a titularidade em 2012 e conduzir a equipa ao primeiro Super Bowl desde 1994 no ano seguinte (derrota por 34-31 frente aos Baltimore Ravens, depois de uma grande recuperação nos dois últimos períodos).

Em 2016, de novo como reserva após um período mais complicado com lesões, tornou-se notícia por outros motivos: ficou sentado no banco durante o hino nacional antes de um jogo, algo que, após ter sido apanhado pelas câmaras televisivas, se tornou viral um pouco por todo o mundo.

“Não me vou levantar com orgulho na bandeira de um país que oprime as pessoas negras e de cor. Para mim, isto é maior do que o futebol e seria egoísta da minha parte se visse de outra forma. Existem corpos nas ruas e pessoas que conseguem fugir depois de cometerem homicídios”, explicou na altura Colin Kaepernick.

Mais tarde, começou a colocar um joelho no chão em vez de ficar no banco. E tudo depois de uma conversa com o antigo jogador e militar Nate Boyer. “Os soldados colocam-se nessa posição, com um joelho no chão junto da campa de um irmão falecido, para mostrarem todo o seu respeito. Foi isso que fiz”, salientou, naquela que viria a ficar como imagem de marca do “Movimento Kaepernick”, que teve um impacto brutal em todos os desportos.

A sua camisola passou a ser o equipamento mais vendido da NFL mas as reações foram díspares. Dois exemplos, de polos opostos: os soldados americanos criaram a hashtag #VeteransForKaepernick, os companheiros de profissão no futebol americano votaram nele como o jogador de que menos gostavam. Em 2016, Colin saiu dos San Francisco 49ers. Ficou desempregado. Ao contrário do que se pensaria (incluindo o próprio), assim continua.

Nunca ninguém acreditou que o desinteresse geral estivesse apenas ligado à quebra desportiva dos últimos anos. E isso foi aumentando a onda de solidariedade em torno do jogador (incluindo outros quarterbacks, como Tom Brady, que admitiam não perceber o porquê de não ter equipa). Depois surgiram os tweets de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos que pedia para que todos os que se ajoelhassem durante o hino fossem despedidos ou, pelo menos, suspensos. E a onda de solidariedade em torno do jogador tornou-se ainda maior. Por fim, há um mês, Kaepernick colocou um processo à NFL (Liga Nacional de Futebol Americano) por conspiração com os donos das equipas para o boicotarem. E a onda de solidariedade em torno do jogador atingiu o ponto mais alto.

Se o jogador Colin Kaepernick está desempregado e sem perspetivas de regresso, o homem Colin Kaepernick atinge níveis de popularidade mais altos do que nunca. Por isso, a GQ considerou-o “Cidadão do Ano”. Mas aquilo que ele queria mesmo era voltar a jogar.