Wolfenstein é um nome de peso na história dos videojogos. Não só porque o primeiro título, Castle Wolfenstein, saiu nos tempos longínquos de 1981 mas também porque, em 1992, Wolfenstein 3D definiu muito do que viria a ser o mercado dos shooters na primeira pessoa e “ditou” as regras do crescente mundo dos videojogos nos anos que lhe seguiram. A célebre e sangrenta luta final contra Adolf Hitler mecanizado, é um dos momentos mais memoráveis da história dos videojogos.

O famoso jogo de computador sempre foi sinónimo de violência e de combate aos nazis. Em 1992, foi criado o protagonista da série, B.J. Blazkowicz, o ex-marine americano de descendência polaca que representa parte da resistência contra a ocupação global nazi. Os Estados Unidos da América são o foco da ação, numa trama a fazer lembrar o romance O Homem do Castelo Alto de Philip K. Dick (autor de Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, que deu origem ao famoso filme Blade Runner), que teve recentemente uma adaptação televisiva que pode ser acompanhada em Portugal através da subscrição do serviço Amazon Prime.

Mantendo as “tradições” sob a égide da Bethesda (a gigante que comprou os direitos de Wolfenstein no final da década passada), a violência over the top, as explosões, a raiva e a testosterona de um filme de ação e de guerra repleto de exageros, continuam a ser a tónica presente nestes jogos. E o recém-lançado Wolfenstein II: The New Colossus não é exceção. Continuando o enredo no preciso momento em que o antecessor termina (com o devido recapitular da história para esclarecer quem está a ter contacto com a série pela primeira vez), o novo jogo compromete-se a fazer algo que em grande parte dos meios culturais é uma dificuldade tremenda: equilibrar a violência gratuita e temas sérios de forma coerente, o que nos pode fazer pensar no cinema e em Tarantino.

É exatamente essa linha fina de equilíbrio que Wolfenstein II consegue alcançar — há personagens caricaturais, mas que representam na perfeição os fundamentos dos problemas intrínsecos à sociedade norte-americana até aos dias de hoje. O timing da discussão não poderia ser mais apropriado. Se o antecessor, The New Order, foi lançado em meados do segundo mandato de Obama, este The New Colossus surge em pleno ressurgimento da hostilidade da supremacia branca, associados à presença de como Donald Trump na Casa Branca. Os criadores de Wolfenstein — num plano que é meio estratégia de marketing, meio inflamar do debate político –, até aproveitaram a deixa através de algumas comunicações via Twitter.

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Wolfenstein II: The New Colossus é um jogo para adultos. Isto não se deve apenas ao seu brilhantismo, hiper-realismo visual e extrema violência, mas sobretudo à densidade e peso das temáticas abordadas. Como referimos, o elenco é caricatural, mas é certeiro na representação que faz do tecido social e cultural norte-americano — há os flashbacks da infância do herói — marcada pela violência de um pai abusivo e racista contra si e contra a sua mãe polaca –, que destroem a fachada de good american que apresentava ao resto da sociedade, e a forma como a antagonista Frau Engel se deixa corromper ao ponto de espancar a filha obesa. Todas as personagens, que de uma forma ou de outra, expressam raiva em cada segundo “em cena”.

É esta raiva reprimida e polarizada que parece dominar no mundo contemporâneo e que tem na América a sua maior montra. Ao contrário da obra de Tarantino, em que o gore é mesclado com alguma sátira e humor negro, Wolfenstein foi progredindo nos últimos anos em direção à “seriedade”. O seu tom foi-se alterando à medida que o mundo à sua volta também mudava. Wolfenstein II tornou-se mais “sério” porque a ameaça nazi deixou de ser o papão escondido. Os mantos e capuzes brancos já não estão enclausurados em armários pela América a fora, e Wolfenstein percebeu o papel que devia ter: o de demonstrar que a única forma de o combater é através da resistência plena, mesmo que para isso tenha de recorrer a uma linguagem cinematográfica quase perdida nos anos 1980.

Wolfenstein II: The New Colossus não só é um jogo excelente, desafiante, visualmente brilhante e com uma ação estonteante — consegue cumprir os desígnios políticos e ideológicos a que os novos tempos obrigam. A história de ação ficcional sobre um mundo alternativo, passou a ter uma presença política.

Ricardo Correia, Rubber Chicken