Ponto prévio/dica: aproveitando a chegada do Natal onde costuma haver mais disponibilidade de tempo, aproveite para (re)ver o filme “Cool Runnings”, ou “Jamaica Abaixo de Zero” na versão portuguesa. Vale a pena.

Foi há 30 anos que o impossível aconteceu: uma equipa das Caraíbas constituída por velocistas jamaicanos entrou pela primeira vez numa prova de bobsled, nos Jogos Olímpicos de Inverno em Calgary. Isso mesmo, esse “choque” que está agora a imaginar – o país a quem associamos sol e calor estava num Canadá com temperaturas negativas e neve. Mas aconteceu. E inspirou um filme (o tal “Cool Runnings”).

Imagens da primeira participação de uma equipa jamaicana em bobsled, em 1988 (GEORGES GOBET/AFP/Getty Images)

Pormenores “romanceados” à parte que estão no filme (muitos cómicos, o que dá um caráter mais leve à película de 1993 dirigida por Jon Turteltbau e com Leon Robinson, Doug E. Doug e o saudoso John Candy nos principais papéis), a história real é simples e conhecida: dois empresários viram na ilha corridas de carrinhos parecidos com trenós com rodas (um hobby comum por lá) e levantaram a ideia de uma equipa de bobsled. O recrutamento começou a ser feito, mas o aviso de “perigosos e rigorosos” testes acabou por esvaziar o interesse. Assim, não houve outra alternativa a não ser pedir voluntários à Jamaica Defense Force. E lá se fez a equipa (que teve outro imprevisto em Calgary, que obrigou um elemento que tinha apenas ido apoiar ocupar uma das vagas).

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A de dois elementos, constituída por Dudley Stokes e Michael White, terminou no 30.º lugar em 41 participantes, à frente da Nova Zelândia 2, Bulgária 2, Itália, Austrália 2, Suécia e as duas equipas de México, Ilhas Virgens e… Portugal (isso mesmo, também o nosso país participou nestes Jogos Olímpicos de Inverno, neste caso com Jorge Magalhães e João Pires); a de quatro elementos, a que se juntavam Chris Stokes, irmão de Dudley, e Devon Harris, acabou por não terminar a prova. E todo o sonho acabou por ruir de forma dramática.

Depois da derrota da equipa de hóquei em gelo dos Estados Unidos, criou-se um buraco temporal na programação e todas as atenções televisivas acabaram por centrar-se na equipa da Jamaica. Na primeira corrida, ficaram em 24.º em 26 competidores; na segunda, terminaram na penúltima posição, com um tempo apenas melhor do que o quarteto português (António Reis, João Poupada, João Pires e Rogério Bernardes). O problema não estava no andamento em si durante o percurso, mas nos pormenores na saída, que faziam toda a diferença.

À terceira, foi de vez: o conjunto das Caraíbas teve o sétimo melhor arranque, estava a fazer uma prova irrepreensível, mas Dudley Stokes, que estava lesionado num ombro, perdeu o controlo do trenó, que se arrastou sem controlo muitos metros. Quando parou, os quatro jamaicanos saíram, contaram com a ajuda de uma série de adversários preocupados com o acidente e acabaram por cruzar a linha de meta a pé, numa imagem que se tornou icónica da ideia de superação e perseverança no desporto.

A Jamaica começou a levar mais a sério a partir daí a modalidade, mas nunca mais se encontrou um fenómeno assim nos Jogos Olímpicos de Inverno, dominado por países como Alemanha, Suíça ou Estados Unidos. Aliás, até se pensava que esta ficaria como uma história. Até agora, 30 anos depois: três velocistas nigerianas (que têm também a cidadania norte-americana, onde residem) decidiram também desafiar o impossível e conseguiram fazer um remake para os Jogos de Inverno de 2018, em PyeongChang.

Seun Adigun, de 30 anos, é uma especialista nos 100 metros barreiras nascida em Chicago com nacionalidade nigeriana que foi campeã africana, participou em dois Campeonatos do Mundo (teve aí como melhores resultados um 16.º lugar na estafeta de 4×100 metros e uma 19.ª posição nos 100 metros barreiras) e esteve nas eliminatórias dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012, apesar de ter perseguido sempre um outro sonho de ser a primeira atleta a jogar basquetebol na WNBA. Depois há Ngozi Onwumere, que ganhou a medalha de ouro nos All-Africa, e Akuoma Omeoga. Provavelmente estes nomes ainda não são muito familiares ao ouvido, mas preparam-se para fazer notícias atrás de notícias depois de um inédito feito.

“Ver um mero sonho tornar-se realidade é uma verdadeira bênção”, escreveu a Federação Nigeriana de Bobsled, citada pela CNN. “O seu árduo trabalho foi inspirador e tenho esperança que todos os nigerianos possam apreciar o que tiveram de fazer para alcançar este objetivo”, acrescentou o presidente do órgão, Solomon Ogba. “Somos de um continente que nunca imaginou que se pudesse descer com um trenó no gelo a 80 ou 90 milhas por hora. É algo capaz de inspirar pessoas”, disse Adigun. E a parte desportiva foi a ponta do icebergue.

Para lutar pela qualificação para a grande prova que se realiza em fevereiro de 2018 na Coreia do Sul, o trio de nigerianas a residir nos Estados Unidos precisava de 75 mil dólares, num orçamento que albergava formação, treino, viagens e equipamento, como explica o Washington Post. Faltando patrocínios, arriscaram uma campanha de crowdfunding – e correu melhor do que as melhores expetativas. Entretanto, a Visa juntou-se. E receberam mais do que pediam. “Esperamos ajudar este grupo de atletas decididas a contar a sua história e inspirar todos os atletas do mundo a cumprir os seus sonhos e a nunca desistir”, explicou Chris Curtin, diretor de marketing e inovação da empresa. E assim começou a aventura.

Os treinos começaram com trenós de madeira, as viagens foram muitas (Nova Zelândia, Estados Unidos, Canadá e Coreia do Sul), as aulas também. E houve quedas e acidentes no percurso, nada que alterasse o principal objetivo. No final, conseguiram fazer as cinco provas em três circuitos diferentes que eram necessárias para o apuramento, em Park City (Utah, Estados Unidos), Whistler (Canadá) e Calgary (Canadá).

“Basicamente, comecei no bobsled em 2015, após um pequeno hiato no atletismo. Também soube que a Nigéria nunca tinha estado representada nos Jogos Olímpicos de Inverno, que o próprio continente africano também não tinha estado nuns Jogos de Inverno… Então pensei ‘Ok, é óbvio que será algo na minha cabeça enquanto não me chegar à frente e fizer algo por isso”, contou Adigun, a grande obreira do milagre, à People.

“O único aspeto que é uma grande diferença em termos desportivos é mesmo a parte do Inverno porque, nas pistas, chegamos lá, preparamo-nos, ficamos mentalmente concentradas, entramos na pista e corremos”, rematou Onwumere. O resto da história ainda está por contar.