Ruben Östlund, o realizador de “O Quadrado”, já em exibição em Portugal, começou a ser conhecido fora da sua Suécia natal com “Play”, em 2011. A este seguiu-se o muito elogiado “Força Maior”, em 2014, distinguido, entre outros, com o Prémio do Júri da secção paralela Un Certain Regard, no Festival de Cannes. O seu novo filme, “O Quadrado”, uma sátira social em que Östlund parte de uma obra de arte conceptual com o mesmo título, e de um aparentemente inócuo assalto numa rua de Estocolmo, para mostrar o conflito entre as boas intenções humanitárias e os discursos idealistas, e a realidade inesperada e bruta, valeu-lhe a Palma de Ouro em Cannes este ano. O Observador conversou com o cineasta sueco sobre o filme e os temas que põe em cena, caso do politicamente correcto, dos limites da tolerância nas sociedades modernas, como o nosso verniz civilizacional pode estalar a qualquer momento com a força das nossas pulsões e instintos irracionais, ou ainda o que Östlund pensa quando o comparam com Michael Haneke ou Lars von Trier (não gosta). E também explicou o que faz um chimpanzé em casa da personagem da jornalista interpretada por Elizabeth Moss.

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A sequência que dá origem ao enredo de “O Quadrado”, em que roubam o telemóvel e a carteira a Christian, o curador do museu, podia ter saído do seu antepenúltimo filme, “Play”, que é sobre miúdos que roubam na rua recorrendo a encenações. É uma coincidência, ou fez de propósito, para remeter a esse filme?
Eu tinha noção disso quando estava a rodar “O Quadrado” mas a sequência existe porque roubaram o telefone e a carteira a uma amiga minha exactamente dessa maneira. E eu tinha que a usar no filme. Aliás, ela fez o mesmo que o Christian, imprimiu 50 folhetos e foi ao prédio onde estava o ladrão e pôs um folheto em cada caixa de correio. Foi uma coincidência.

Mas em “Força Maior”, o seu filme anterior, há um telemóvel que é essencial à história, e aqui isso sucede de novo. São os telemóveis que lançam ambos os filmes.
Sim, é verdade. Isso é porque os telemóveis estão no centro das nossas existências neste mundo em que vivemos, não porque quisesse chamar a atenção para alguma coisa em especial. Não se trata de um “gimmick” narrativo.

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É verdade que na origem da história deste filme está uma instalação que fez com um amigo?
É, sim. “O Quadrado” começou mesmo por ser uma instalação. Prefiro até chamar-lhe um sinal de trânsito humanista. Queria compará-lo com uma passagem de peões, que é uma magnífica invenção. Com umas linhas pintadas na rua fizemos um acordo segundo o qual os condutores têm que ter cuidado com os peões. E podemos criar um novo contrato social. Com o Quadrado, podemos concordar que temos de cuidar uns dos outros e mostrar responsabilidade e confiança. Esta ideia surgiu quando rodei o “Play”, em 2011. Depois do “Força Maior” comecei a pensar no filme que queria fazer a seguir, e achei que seria interessante fazer algo em redor do Quadrado. E foi aí que comecei a escrever o argumento.

“O Quadrado” é um filme muito provocador. Toca em coisas como o politicamente correcto, põe em causa a validade da arte contemporânea, e foca sobretudo o abismo que há entre o que as pessoas dizem e a forma como depois se comportam quando são confrontadas com situações que testam discursos e convicções.
Sem dúvida, e a intenção é mesmo essa. Pessoalmente, não tenho nenhum problema com o facto de termos um ideal ou uma noção especial sobre quem somos e depois falharmos quando postos perante a realidade. Isso é humano. Mas eu queria ter uma personagem principal que acreditasse sinceramente naquela obra chamada O Quadrado, com o seu altruísmo, a sua ideia humanista utópica, e queria desafiar esse tipo a nível individual. O filme funciona nesses dois níveis: no da sociedade, com a ideia veiculada pelo Quadrado, e no individual, quando ele tenta lidar com quem é enquanto ser humano confrontado com o real.

E isso acontece um pouco por todo o filme. Nas sequências com os pedintes, por exemplo.
Não estamos muito habituados a ter pedintes na Suécia. Isso começou com os romenos, aqui há uns dez anos. A princípio, as pessoas perguntavam-se porque é que eles estavam nas ruas e porque é que o Estado não tratava delas. mas rapidamente a coisa passou a ser posta ao nível individual e já não social. E começámos a pensar: somos pessoas boas ou más conforme lhes dermos ou não dinheiro? Enquanto indivíduos, ficámos sem saber o que fazer ao vermos pessoas naquele estado nas ruas. Como é que eu posso mudar a vida de alguém assim? Pessoalmente, meteu-me impressão termos deixado de falar no problema ao nível global, da sociedade, e passado a encará-lo ao nível pessoal. Foi como se de repente essa noção socialista ou social-democrata que orienta a sociedade escandinava tivesse desaparecido e estivéssemos em tempos muito mais individualistas.

Uma das sequências mais brilhantes do filme é a do homem com a Síndrome de Tourette que perturba a conversa pública com o artista que está a expor no museu. Ninguém na sala se atreve a pedir para ele sair porque está a incomodar toda a gente. Há até um sujeito que pede para o desculparem, porque é um doente. Alguma vez assistiu a uma situação semelhante?
Eu adoro situações incómodas. E adorei essa situação porque na sociedade em que vivemos, a ideia de tolerância é muito importante. Mas quais são os limites dessa tolerância? Quando é que dizemos a uma pessoa assim que lamentamos mas ela não pode estar na mesma sala connosco, e tem que ser obrigada a sair? E eu vivi uma situação semelhante num teatro de Estocolmo. Nesse teatro, deram luvas de algodão a um espectador que tem o Sindroma de Tourette, para que não se ouvisse o bater das mãos. E sempre que ele vinha ao teatro, informavam os actores antecipadamente, para que eles se pudessem preparar mentalmente para ouvir os palavrões e insultos durante a representação. Como o teatro é público, a direcção decidiu que o sujeito com Tourette devia ser autorizado a frequentá-lo.

Essa sequência embaraçosa e incómoda é depois amplificada na do jantar de gala no museu em que o “performer” russo que faz de macaco aterroriza a sala inteira.
Exactamente. Eu queria que os comensais fossem muito sofisticados e depois no final se portassem como animais selvagens, porque perderam o verniz civilizacional. E quis que o filme passasse em competição no Festival de Cannes, porque ali seria visto por uma audiência de “smoking”, que se confronta como pessoas vestidas da mesma maneira na tela. Como num efeito de espelho.

Terry Notary, o actor que interpreta o “performer”, é especialista neste tipo de interpretações? Li que ele entrou nos filmes da série “Planeta dos Macacos”.
Sim, ele trabalha com “motion capture”, é extraordinariamente bom. Vi um “clip” no YouTube em que ele interpretava um chimpanzé e o seu comportamento, a maneira como se movimentava, era exactamente igual. Foi aí que decidi que o queria usar no filme. Muita gente poderá pensar que ele é mesmo um “performer”, mas não, é um actor. Espero que este filme lhe traga mais trabalho, porque ele é mesmo formidável.

O filme sublinha várias vezes a tensão existente entre o nosso lado irracional instintivo e o nosso lado social, e como muitas vezes aquele se sobrepõe a este. Isso foi deliberado?
Foi, sem dúvida. Eu tenho uma aproximação muito comportamental, por assim dizer, a todos os temas e situações dos meus filmes. Nós somos todos animais, temos instintos e necessidades, e ao mesmo tempo construímo-nos e vemo-nos como seres civilizados, sociais. Mas quando há um choque entre os nossos instintos e necessidades, e quem nós tentamos ser em sociedade, acontecem sempre coisas muito interessantes. Como na cena no museu em que o “chef” vem anunciar o menu do almoço e toda a gente se levanta e dirige para a sala antes dele acabar, como um rebanho. Vamos, malta, vão servir comida (risos)!

“O Quadrado” tem um sentido de humor muito peculiar, como se pode ver na cena do diálogo entre Christian e Anne, em que aquela instalação das cadeiras faz barulho a intervalos regulares e há uma guarda do museu sentada a olhar para eles e a tentar ouvir o que estão a dizer.
Eu gostei muito da ideia da instalação que faz aqueles barulhos e eles têm que fazer pausas no diálogo. E quando ela está a dizer muito séria, “Tu estiveste dentro de mim”, lá vem o som das cadeiras a abanar. Acho que é de morrer a rir!

O filme foi rodado num museu verdadeiro, ou em estúdio?
Neste filme, a Suécia é uma república, o rei já não vive no castelo real e eu transformei-o num museu de arte contemporânea. Daí chamar-se X-Royal.

Isso é um toque de ficção científica.
Sim, talvez a história se passe numa Suécia de um mundo paralelo. Mas o museu do filme foi criado em estúdio. O nosso director artístico fez um excelente trabalho.

“O Quadrado” tem dois actores de língua inglesa, a Elizabeth Moss no papel da jornalista e o Dominic West, que interpreta o artista. Como é que eles aparecem no elenco?
O Dominic está a interpretar o Julian Schnabel (risos). Tenho que falar com ele e dizer-lhe que está no filme. A Elizabeth e eu temos o mesmo agente e marcaram uma reunião quando eu estava em Londres. Eu queria um actor de língua inglesa para interpretar o artista, mas não a jornalista. Mas acabei por fazer uma improvisação com a Elizabeth, com ela a fazer de Anne e eu de Christian. E ela saiu-se tão bem que tive mesmo a usar.

Claes Bang, que interpreta Christian, é um actor muito conhecido na Suécia?
Não, nem sequer na Dinamarca, de onde é natural. O Claes fez agora 50 anos e é muito bom para a carreira dele que tenha entrado num filme que está a ser tão bem recebido como este. A Elizabeth é muito mais famosa do que ele, mesmo na Suécia e na Dinamarca.

O Christian não é um “cliché” com pernas, é um tipo muito humano Tanto nos rimos dele nalgumas alturas como nos identificamos com ele noutras, está muito próximo de nós, com as suas qualidades e falhas. Foi assim que o concebeu originalmente?
Sim, foi. Eu gosto muito de sociologia. E acho que a sociologia gosta muito quando os seres humanos falham. E não tenho problema nenhum com as falhas da minha personagem, gosto dela na mesma. Falhar faz parte da vida e todas as personagens dos meus filmes são humanas, falham. Estou farto de ter sempre que haver um protagonista que é bom, tem sempre razão e temos que torcer por ele, e um antagonista que é mau, está errado e que temos que vaiar. É uma maneira muito simplista de pôr as coisas e de as explicar.

Do ponto de vista cinematográfico, “O Quadrado” é um filme muito diferente de “Play” e sobretudo de “Força Maior”, que é mais “clássico”, por assim dizer. Gosta de ter uma estratégia visual diferente em cada filme?
Quando fiz o “Play” acho que estava a levar ao limite um certo tipo de estética dogmática. E depois decidi que nunca mais o faria porque tornou o filme muito difícil de montar. O “Força M;aior” era mais clássico, sim. Com este foi diferente. Por vezes faço planos prolongados para dar a ideia de tempo real, mas combino-os com a possibilidade de criar mais dinâmica e mais rapidez, e também ambientes contrastantes.

A sequência do chimpanzé em casa de Anne é uma das mais insólitas do filme. Tanto mais porque o Christian nunca lhe pergunta o que está o animal ali a fazer. O chimpanzé estava no argumento desde o princípio?
Não, não estava. Aí dois meses antes de começarmos a filmar, estava eu ainda a escrever o argumento, quando senti que faltava ali qualquer coisa. O filme era muito seguro, precisava de algo surpreendente, fora do vulgar. E aí pensei que talvez a Anne pudesse ter um chimpanzé. E se os espectadores estivessem a ver o filme e de repente vissem aparecer um chimpanzé, ficavam a pensar: “Cá está um filme onde pode acontecer qualquer coisa!” (risos).

Como é que o filme foi recebido na Suécia? Bem? Com hostilidade? Dividiu as opiniões?
Muito bem. Houve uma grande polémica quando rodei o “Play”. As pessoas pensaram que o filme era racista e isso causou um grande debate. Sucedeu o mesmo com o “Força Maior”. Com “O Quadrado”, houve algumas pessoas que o odiaram e foram muito agressivas em relação ao filme, mas a maioria tem gostado.

Há quem o compare a Michael Haneke ou a Lars von Trier. Acha-se influenciado por algum destes realizadores ou rejeita tais comparações?
Acho sinceramente que há muitos críticos que não percebem os meus filmes. Dentro de cinco ou seis anos, eles olharão para trás e sentir-se-ão um bocadinho envergonhados. No caso deste filme, acho que se sentem provocados e depois não sabem como lidar com ele. Não tenho problema nenhum em ser criticado pelo filme, mas parece que alguns críticos, pela forma como estão a escrever sobre ele, estão mais a proteger-se do que a tentarem compreendê-lo. E gosto muito do Michael Haneke e do Lars von Trier, mas na Suécia costumo é ser comparado com o Roy Andersson, por exemplo.

É influenciado por algum realizador em especial?
Eu diria o Buñuel, nalgumas coisas. Gosto muito da aproximação satírica dele. E o melhor título de um filme de todos os tempos é dele: “O Charme Discreto da Burguesia”. Fabuloso.

Já está a pensar no próximo filme?
Sim. A minha mulher é fotógrafa de moda e contou-me muitas história divertidas sobre a indústria da moda e da beleza. O filme chama-se “Triangle of Sadness”, que é quando temos uma ruga entre as sobrancelhas e ela pode ser tirada com cirurgia plástica?

Geometria de novo, depois de “O Quadrado”?
Sim (risos)! É coincidência, mas a minha mulher e eu já fazemos piadas sobre isso. Primeiro houve este “Quadrado” da confiança. Agora vem aí o triângulo da tristeza e a terceira parte desta trilogia geométrica chamar-se à “Octagonal Confusion” (risos). E será um filme que nunca conseguirei acabar, porque é uma confusão!

Estava à espera de ganhar um prémio em Cannes? Saiu de lá com a Palma de Ouro.
Estava, sim. Pensava que ia ganhar o Prémio de Melhor Realizador. E que era ainda muito novo para ter a Palma de Ouro. Mas afinal enganei-me.