Lembro-me bem. Ali, vi o “Titanic”, apertado entre a tela e as costas da cadeira da primeira fila, esmagado por hectolitros das águas geladas do Atlântico Norte e pelos voluptuosos contornos de Kate Winslet. Durante três horas. Levando à saída com os agudos lancinantes da Céline Dion, como se me quisessem sacar à força uma informação qualquer que, francamente, se soubesse qual era, teria entregado na hora. À época, tudo queria a fita e aquela era a única noite em que a rapariga que andava a tentar impressionar estava livre. Afinal, naquela noite, como em tantas outras, a rapariga salvou o filme. Mais tarde, quando todos fôssemos às nossas vidas, restaria só o “Titanic” na sua objectividade – cheio de Óscares e nenhum apreço particular.

Foi há 20 anos. 20. Menos do que distava entre os filmes de Alain Delon e a voz da minha mãe falando dos filmes de Alain Delon. O tempo do mundo passa depressa – e esse contraste com o tempo do cinema, que eterniza, nunca há-de deixar de nos apanhar de surpresa.

Quem sempre viveu nas grandes cidades talvez não o perceba, mas, de cada vez que começamos a debitar nomes e recordações das salas de cinema históricas a que íamos enquanto crescíamos, isso compara directamente com o país dito “real” onde não havia salas de cinemas históricas nem sem serem históricas; havia UMA sala de cinema. Quando havia. E ou nos interessava o filme que tinham escolhido para o cartaz ou bem podíamos ir dar milho aos pombos.

Nos anos 90, a Recreio dos Artistas era a única sala de cinema de Angra do Heroísmo. Comparada com as cadeiras de madeira e o chão frio de pedra da Fanfarra Operária, que entretanto encerrara, sabia a sala VIP. Ali, onde a geografia nos impedia sequer de pegar no carro e ir a uma qualquer capital de província mais distante e fornecida de oferta, vi “Seven”, “Heat”, “Os Suspeitos do Costume”, “Quatro Casamentos e um Funeral” – uns à noite, a maioria ao domingo à tarde, que era o que uma pessoa fazia antes da invenção da internet e do paddle, da playstation e dos sunsets (sim, pôr-do-sol sempre houve, mas sunsets só depois dos rooftops e das timeouts).

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Anos mais tarde, haveriam de recuperar o Teatro Angrense e fizeram o Centro Cultural de Angra. Houve ali um tempo fugaz no início do século XXI, portanto, em que o cidadão terceirense chegou a poder dar-se ao luxo asiático de escolher, entre duas ou três opções, que filme queria ver. Até que a lógica das coisas voltou a reduzir tudo a uma sala só, a mais forte, que era agora a do Centro Cultural. O Teatro Angrense ficou-se pelo teatro; a Recreio por um lugar indisputado nas nossas memórias adolescentes.

A nobreza do Cine Atlântico, mostra de cinema dedicada às ilhas e ao mar, pode ser toda simbolizada nisto: reabrir pontualmente as portas da Recreio dos Artistas, mesmo que a sala esteja decrépita, mesmo que haja ainda pouco público, para dar aos 50 mil terceirenses uma alternativa de cinema à opção única da estreia comercial semanal. O tempo e a persistência, se deuses e patrocinadores o quiserem, farão o resto.

Organizado pelo Cine-clube da Ilha Terceira, que este ano celebra 40 anos (interruptos) de actividade e vem de um tempo anterior ao VHS, quanto mais ao DVD, VOD e todas as modalidades de ver o cinema que se quiser, esborrachado no sofá, diante de plasmas e LCDs épicos, o Cine Atlântico teve agora a segunda edição. Uma vez mais programado por José Vieira Mendes, uma vez mais inteiramente construído em volta de filmes portugueses, enquanto vai fazendo o caminho para se tornar um verdadeiro festival dedicado ao cinema do mar, das ilhas, da viagem e da aventura.

20 anos volvidos, a Recreio dos Artistas está bastante mais pequena do que costumava ser na nossa memória. A tela do “Titanic” fica, afinal, uns bons metros lá à frente, longe da primeira fila. Está suja e a precisar de substituição urgente, tal como o sistema de som que, às vezes, é só de ruído, umas em estéreo, outras em mono. As cadeiras estão renumeradas por baixo, à mão, com um marcador vermelho, e a napa aqui e ali remendada com despudorada fita-cola da grossa – ainda assim, aguentam-nos as costas durante três sessões diárias sem queixas (problema que não se colocava há 20 anos, mas que, hoje, muita sala modernaça não resolve).

Quando a cena é mais contemplativa ou o silêncio entre as personagens mais pesado, ouve-se a chuva que cai lá fora ininterruptamente por estes de dias de 16 a 19 de Novembro, em que o continente continua à seca. E isso, de uma maneira qualquer muito elementar, reforça dentro de nós o cumprimento daquela função primária da sala de cinema: refúgio e escape ao real.

Isabel Ruth, Leonel Vieira, Rosa Coutinho Cabral e João Monteiro foram aos Açores ajudar a apresentar nove filmes que, mais do que o mar ou as ilhas, acabam por funcionar como uma reflexão sobre o que tem sido o próprio cinema português nos últimos 50 anos. Do clássico “Mudar de Vida”, de Paulo Rocha, ícone do Cinema Novo agora restaurado em cópia 2K, à “Peregrinação” com que João Botelho, com assumidas limitações, revisita a colossal obra homónima de Fernão Mendes Pinto. A meio, está o excelente “Nos Interstícios da Realidade – Ou o Cinema de António Macedo”, documentário com que João Monteiro lembra um cineasta que só há pouco faleceu, mas que pares e críticos tinham há muito condenado ao desaparecimento.

Na verdade, se o mar é presença evidente em quatro dos filmes da mostra – por todo o lado no “Perdidos”, de Sérgio Graciano, no “Coração Negro”, de Rosa Coutinho Cabral e em “Peregrinação”; do lado do perigo e da rebeldia em “Mudar de Vida” – e modesta no futuro anunciado, mas ainda não concretizado no porto de Sines que se vai construindo no “Al Berto” (ou seria Rufus Wainwright?), de Vicente Alves do Ó, é António Macedo a verdadeira ilha. Isolado entre a esquerda e a direita, a vontade de fazer filmes para o grande público e as pretensões da sua geração, os fantasmas dos tiques da ditadura e os da revolução, Macedo foi a maior e talvez mais injusta vítima da eterna esquizofrenia do cinema português, indeciso entre querer ser comercial ou intelectual (o que quer que isso queira dizer).

“Luz Obscura”, documentário em que Susana Sousa Dias, aliás, filha de Macedo, continua a tentar filmar, entre os arquivos da PIDE, justamente os espectros da ditadura, e “Treblinka”, filme-ensaio com que Sérgio Tréfaut venceu a competição nacional do Indie Lisboa, debruçado sobre assombrações mais antigas, vindas dos campos de concentração, completavam uma programação que começara com “A Fábrica de Nada”, porventura símbolo do melhor que o cinema português tem hoje para dar ao mundo.

O filme de Pedro Pinho, vencedor do Festival de Cinema de Sevilha e prémio da crítica internacional em Cannes, é daqueles que, com um pé na verdade e outro na ficção, tem feito um cinema que finalmente ultrapassou os complexos de inferioridade quer perante Godard, quer perante Hollywood. Conta histórias verdadeiras, de um país sem vergonha dele mesmo, desejavelmente visitadas por uns golpes de asa de criatividade, como os fabulosos números musicais na velha fábrica de componentes para elevadores, a lutar por não se deixar morrer.

“O filha da puta do amor, quando é amor, é incondicional”, grita a determinado momento uma personagem de “A Fábrica de Nada”. A frase volta-nos à cabeça quando se acendem as luzes no fim da última sessão e a velha Recreio volta a fechar portas até a uma próxima projecção do Cine-clube. O amor ao cinema, o amor que nos faz querer levar coisas e sentimentos ao grande ecrã, o amor que nos faz querer mostrar filmes e partilhá-los com os outros, o amor que é o melhor dos fantasmas que nos assombram a vida inteira. Filha da puta. E incondicional.

O Cine Atlântico volta para o ano, se tudo correr bem. Um pouco maior e com mais público. Nas ruas de Angra, continua a chover em doses bíblicas. Também daria uma boa programação para um festival nos Açores: a chuva no cinema. Filmes onde chove. Que seria, por exemplo, de “Magnólia” sem ela? Ou do velho Bogart sem gabardine?

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).