O filme “120 Batimentos Por Minuto” traz o movimento Act Up francês ao presente. Durante a década de 1990, levaram o corpo para as ruas, fizeram as suas batalhas para serem ouvidos, para quebrar o silêncio em relação à sida. Tinham de sair cá para fora, não podiam continuar a ser ignorados. Robin Campillo juntou-se ao movimento em 1992 porque, tal como os outros, precisava daquilo para viver. Caso contrário, explodia. Este seu filme que agora está nas salas portuguesas é a história dessa explosão, da emergência de agir, de ser ouvido. É um filme sobre a Act Up, sobre a sida, sobre os movimentos dos 1990s, a França dessa década, mas também sobre o agora, sobre lutar e viver.

Saiu de Cannes com o Grande Prémio do Júri e estreou-se esta semana em Portugal. “120 Batimentos Por Minuto” é mais real do que outra ficção que já trouxe estes movimentos ao grande e pequeno ecrã. Antes da entrevista começar, Robin dizia que esteve há dias na Ucrânia e de como lá a sida é uma epidemia em crescimento, por causa da guerra e dos soldados que têm relações com jovens que se prostituem. De seguida falámos de Portugal e rapidamente faz referência à grande diferença entre o Reino Unido e a França na contenção deste problema: no primeiro foram pragmáticos, promoveram o uso do preservativo, enquanto que em França a pílula era o método contracetivo preferencial. Já estávamos a falar de “120 Batimentos Por Minuto” sem sequer estar a falar no filme.

[o trailer de “120 Batimentos por Minuto”:]

A Act Up em França teve um papel ativo e forte, causou algum impacto na sociedade francesa. Foi o movimento mais forte do género na Europa durante os anos 1990. Porque é que acha que teve uma presença tão significativa?
Tivemos a revolução em 1968 e surgiram muitos movimentos gays e lésbicos com a revolução, que ainda existiam no início dos 1980. Esses movimentos estavam a ficar maiores e maiores ao longo dos 1970s, tivemos o gay pride, por exemplo. Havia uma certa aceitação da homossexualidade na sociedade. Em 1982 eu tinha 20 anos e estava numa espécie de armário, a minha família não sabia, mas os meus amigos todos sabiam. Estávamos numa realidade Oscar Wilde, enfiado seu próprio armário, com uma pose dandy. Achávamos que era incrível ter esse tipo de segredo, de clandestinidade. Mas com a sida e a crise em volta da doença, percebemos que não era uma situação ideal. Não éramos livres. Os nossos amigos, amantes, estavam a morrer.

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O meu primeiro namorado morreu e nunca chegámos a ser um casal, se considerares os padrões da sociedade. Estávamos a ficar mais e mais irritados com essa situação. E claro, a esquerda estava no poder, com François Mitterrand, e havia uma aceitação, mas não havia mais nada além disso. No filme, aparece um artigo sobre os primeiros homens a morrerem nos EUA, um artigo que dizia que aquela epidemia seria a principal causa de morte dos homens. Nunca vimos uma compaixão, qualquer tipo de sensibilidade e atenção vindos na nossa direção. Éramos as vítimas e ninguém estava a falar connosco. E isso deixou-nos enfurecidos. E a herança da revolução de 1968 disse-nos que era possível fazer algo. Durante os anos 1980, por causa da epidemia da sida, os movimentos gay ficaram mais fracos, praticamente desapareceram por causa do medo, da vergonha que existia. No final da década de 1980, a Act Up é criada, inspirada pela Act Up de Nova Iorque. Muita gente como eu, que conhecia o sexo antes da epidemia, sabia que a vida que vivia era uma grande mentira. Com a sida não vivíamos as nossas vidas, porque estávamos no armário. Acho que ficámos loucos.

E quando é que se juntou à Act Up?
Juntei-me 1992. Pensei… sabes, quando andava na rua e via um tipo com uma t-shirt da Act Up, eu parecia mais fraco do que ele. Ele até parecia mais sexy. Porque estava tão orgulho dele mesmo, a confrontar a doença, a epidemia. Juntei-me ao clube porque estava zangado, porque o meu primeiro namorado morreu de sida e eu não estava autorizado a vê-lo no hospital. Foi horrível. Tudo isso é horrível. Não foi uma geração inteira, éramos entre 100 a 200 pessoas. Éramos uma minoria. E foi a primeira vez em França em que alguém apareceu a usar palavras como minorias, comunidade, este tipo de coisas… estas palavras em francês são insultos para a república francesa. Estávamos a agarrar nessas palavras que vinham dos Estados Unidos e a metê-las no mundo da política francesa.

Referiu que durante a década de 1980 os movimentos gay perderam visibilidade por causa da vergonha. Mas não acha que também estavam a perder esse poder porque as prioridades eram outras, porque a prioridade era a epidemia?
Não acho que seja verdade, mas talvez eu esteja errado.

Eu sei que é uma pergunta muito ingénua…
E também darei uma resposta ingénua, não te preocupes com isso. Se não estamos a ir a clubes, a divertirmo-nos, as pessoas começam a ter medo. Estávamos distanciados uns dos outros, porque tínhamos tanto medo de ouvir más notícias. Tens de imaginar isso. Não queríamos ouvir que a pessoa com quem tivemos sexo há quatro anos estava no hospital. Tínhamos medo da informação. E a Act Up começou por existir porque queríamos saber tudo. Que deveríamos cantar juntos, deveríamos estar em contacto com os doentes e saber o que se andava a passar. E teríamos de parar de ter medo. Esse foi o projeto principal da Act Up. Precisávamos de visibilidade, de aparecer, isso era importante para nós.

O realizador Robin Campillo

A forma como mostra a Act Up no seu filme tem um lado de performance. O título do filme relaciona-se com movimento, com dança. Vê esse lado da Act Up a confrontar as pessoas e os políticos como uma performance? Pela forma como protestavam, a forma como agiram?
Claro. Éramos completamente agitprop, eram happenings. É muito importante isso. Por exemplo, o Sean [Nahuel Pérez Biscayart], no meu filme, pode ser um militante, mas precisa de ter distância teatral. Que consiga interpretar o doente com SIDA em frente da polícia, da instituição. E quando a doença se torna mais forte, ele deixa de ter essa distância teatral. Acho que fazia parte do Act Up. Havia sempre uma contradição, tensão, no nosso grupo, porque não sabíamos o quão longe poderíamos ir na representação da doença e como poderíamos aparecer no palco.

Quando estava em Cannes… levei o filme ao festival logo após terminar a montagem. Não tinha qualquer distância em relação ao filme. Uma das boas coisas de Cannes é que estás tão aborrecido com o teu filme que podes aproveitar a festa para sair desse estado. E eu percebi que funcionávamos de uma forma específica. Por exemplo, imagina que as instituições são um palco de teatro, tens aquela cena no filme, quando eles atiram uma bola de sangue à cara de uma pessoa. Ou a cena no congresso. São como cenas teatrais, com atores que vêm dos bastidores e aparecem em cena, atuam, sempre com novas palavras, diálogos. Foi uma espécie de happening, de performance. E tinhas imensos jornalistas e artistas na Act Up, tal como existia na Act Up Nova Iorque.

Porque queriam passar a mensagem para os políticos, mas também para os franceses, para o mundo?
Sim, existiam muitos jornalistas na Act Up que sabiam exatamente o que fazer para que as câmaras estivessem presentes nas nossas ações e que filmassem aquilo tudo. Havia muita estratégia na Act Up e tento mostrar isso no filme. Penso que o filme foi um sucesso em França porque, sabes, as pessoas não gostavam muito de nós na altura, mas sabiam que éramos legítimos. Isso é verdade. E mesmo os jornalistas da televisão tinham o mesmo sentimento. Mesmo que eles não gostassem de nós, estavam lá para nos filmar. Estava a acontecer algo político, pelo menos.

O modo como filma torna a Act Up com uma atitude muito presente. Não estamos nos 1990. Estamos no agora, como se aquilo ainda fosse muito real, vívido, hoje. Não está só a contar uma história, ou a Historia, queria também falar do presente?
Para mim o cinema é a arte do presente, fazer coisas agora. Claro que aquilo aconteceu há 25 anos. Odeio quando as pessoas dizem que é tributo para as pessoas que morreram. Penso mais nos sobreviventes do que nas pessoas que morreram, porque essas de facto morreram. As pessoas que sobreviveram são mais importantes. E as pessoas jovens que não conhecem esta história. Não queria fazer um filme sobre fantasmas, queria fazer um filme sobre os jovens que éramos. Para fazer isso teria de encontrar jovens atores gays, que percebessem isso, porque seria muito triste se fosse um filme sobre fantasmas. Mesmo com o guarda-roupa, não quis ser muito específico com a roupa. Queria isso porque não queria que o espetador se sentisse fora da história. Queria que sentisse que está a entrar neste grupo agora. Para mim é impossível fazer um filme com sentimentos que já não existem. Quando estava na Act Up, estava no presente. É uma espécie de máquina do tempo, não é um filme sobre o passado, queria que o espectador respirasse o Act Up, que estivesse lá no meio.

A ficção norte-americana em volta destes movimentos, como por exemplo a série “When We Rise”, tem um sentimento muito nostálgico por estes movimentos. Não é real, não é presente. O seu filme é o oposto, pela forma como filma, o movimento…
Sim e porque não tenho nostalgia por estes tempos. Estou muito agradecido à pessoa que criou a Act Up, mudou a minha vida, fez-me um melhor realizador e uma série de outras coisas. É difícil de explicar. Mas… está ligado ao que estavas a dizer, que estávamos a criar coisas, estávamos a reinventarmo-nos neste grupo. Mas não posso ser nostálgico… foi um período muito negro, difícil. Claro que sou nostálgico pela minha juventude, isso não é estranho, mas não por esses tempos.