Ternura dos 40? Algumas já têm a porta aberta há mais de 100 anos. São ourivesarias, camisarias, casas que vendem chás, cafés e chocolates, queijos e enchidos, brinquedos e acessórios de moda. Lisboa está cheia de lojas históricas. São mais de 80 e desde 2015 que o projeto Lojas com História da Câmara Municipal de Lisboa se dedica a classificar os tesouros do comércio tradicional da cidade, pela arquitetura dos espaços, pelos produtos que vende e pelo atendimento à moda antiga, cheios de atenções e requintes que já não se encontram ao virar da esquina.

Em novembro deste ano, o programa virou livro. Lojas com História foi publicado pela Tinta da China e junta dezenas de casas emblemáticas da cidade, a história de cada uma, mas também a de quem há décadas está atrás do balcão.

O livro “Lojas com História” foi lançado em novembro pela Tinta da China e está à venda no site da editora por 29,61€.

Algumas destas lojas procuraram novos produtos e atualizaram serviços. Outras mantiveram-se fiéis às especialidades que sempre venderam. Porque o roteiro de compras de Natal não tem de passar sempre pelos centros comerciais, visitámos nove delas em busca dos presentes perfeitos. Pode chamar-lhe uma seleção vintage, nós chamamos-lhe charme da terceira idade.

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Hospital de Bonecas

Praça da Figueira, 7

Já lá vão quase 200 anos desde que a dona Carlota se começou a sentar à porta para remendar bonecas de trapos. O negócio cresceu e ocupa hoje todo o primeiro andar do prédio. É lá que três cirurgiãs se ocupam a consertar bonecas e brinquedos com pouca saúde. Chega-lhes de tudo, de relíquias de coleção, em porcelana e papelão, aos bebés chorões do século XXI. O que poucos sabem é que na entrada do prédio, o Hospital de Bonecas tem também uma loja. O que é para arranjar vai lá para cima, cá em baixo ficam os brinquedos novinhos em folha. Brinquedos como quem diz, porque muitas destas peças são mais desejadas por colecionadores adultos do que propriamente por crianças, a começar pelas miniaturas com que se mobilam as casas de bonecas. Carrosséis, bonecos de corda e figuras de porcelana vestidas com modelitos feitos na casa enchem a pequena montra voltada para a rua. Nem tudo aqui é antigo. As bonecas londrinas Santoro foram das últimas a chegar, com roupas desenhadas para os tempos modernos.

Além de consertar e restaurar os brinquedos estragados, o Hospital de Bonecas tem uma loja na entrada do prédio onde vende peças novinhas em folha © André Carrilho/Observador

Manteigaria Silva

Rua D. Antão de Almada, 1

Mesas de consoada vazias? No que depender desta casa, fundada no final do século XIX, isso é absolutamente impossível. Enquanto atrás do balcão a azáfama se deve à preparação dos célebres cabazes de Natal da Manteigaria Silva, na porta ao lado a clientela faz fila para comprar bacalhau, bacalhau esse que trouxe o atual proprietário até aqui. José Branco foi em tempos um mero fornecedor da mítica charcutaria e queijaria lisboeta, foi comprando quotas e é hoje quem gere o negócio, juntamente com os filhos. Os queijos são um dos grandes orgulhos da gerência. Provados a cada remessa e curados na casa, não dão azo a tantas filas como o bacalhau, mas quase. Outro dos tesouros da manteigaria é a máquina Berkel de 1923, um Cadillac charcutaria que não perdeu em uma pinga de charme. Funciona e corta presunto a frio como nenhuma outra geringonça do século XXI.

Os queijos, os presuntos e o bacalhau são as especialidades da Manteigaria Silva © João Porfírio/Observador

Ourivesaria Sarmento

Rua do Ouro, 251

Eis uma coisa que já não se vê: tocar à campainha para entrar numa loja. Vale a pena, sobretudo porque esta ourivesaria de família, que já vai na sexta geração, não se ficou pelos talheres e castiçais de prata e chamou para as vitrines uma nova geração de joalheiros portugueses. Inês Telles, Ana Sales, Leonor Soares Carneiro e Filipe Caracol são alguns dos nomes mais promissores da atualidade e têm as suas peças à venda na Ourivesaria Sarmento. Desde 2009 que a a casa se abriu à criatividade contemporânea, através de joias mas não só. Há exposições que se renovam de dois em dois meses e que juntam joalharia e artes plásticas debaixo do mesmo teto. A especialidade traz vários clientes à Baixa, sobretudo porque a maioria destes autores vende apenas online e nesta loja centenária todos podem ver ao vivo e experimentar o que de melhor se anda a fazer em Portugal nesta área. Ainda acha que as lojas históricas não têm bons presentes de Natal?

A Ourivesaria Sarmento tem muito para explorar. Ao fundo da loja, há várias antiguidades e uma coleção particular para descobrir © João Porfírio/Observador

Camisaria Pitta

Rua Augusta, 195

Não tem orçamento para oferecer um fato por medida este Natal? Entre na mesma. Desde que nasceu, em 1887, que a Camisaria Pitta se especializou nas camisas, se bem que os seus alfaiates nunca disseram que não a um fato. Hoje, o rol de possíveis presentes é muito mais vasto, dos pequenos acessórios masculinos à perfumaria. O que é que não mudou? O atendimento cortês e personalizado e a fachada em madeira construída já nos anos 20. Há lenços de seda, cachecóis em caxemira, cintos e sapatos em pele e gravatas, muitas gravadas, exuberantes, discretas e das que quebram o tédio dos fatos cinzentos. A clientela mais fiel continua a vir pelas camisas. Feitas à medida e com iniciais bordadas, vêm do andar de cima, onde trabalham as costureiras de serviço.

O andar de baixo da Camisaria Pitta está reservado ao atendimento mais personalizado, ou seja, é aqui que se tiram as medidas © João Porfírio/Observador

Luvaria Ulisses

Rua do Carmo, 87A

Três clientes e a loja fica cheia, quatro e fica mesmo à pinha. Se há sítio que não podemos julgar pelo tamanho é a Luvaria Ulisses, famosa pelas suas luvas de alta qualidade produzidas em Lisboa. É fácil encontrar clientes a fazerem fila à porta, é difícil imaginar como seria em 1925, ano da inauguração da casa, quando senhora de bem que se prezasse andava sempre de luvas. Mas a loja tem outros ex-libris. As pequenas almofadas sempre sobre o balcão e o esticador de madeira não enganam — quem aqui trabalha é mesmo especialista em luvas. Os modelos clássicos — pretos e castanhos — são os que têm mais saída, mas a casa não abdica de mostrar os tons garridos nas vitrines. Acertos e ajustes também se fazem, vantagens de se trabalhar há 92 anos com oficina própria.

A Luvaria Ulisses nasceu nos anos 20 e continua hoje a produzir as luvas que vende © André Carrilho/Observador

Chapelaria Azevedo Rua

Praça D. Pedro IV, 73

Cartolas, chapéus de coco, panamás e boinas — desde 1886 que a Chapelaria Azevedo Rua providencia tudo o que se trata de agasalhos para a cabeça. Em tempos, a produção de chapéus foi feita na parte detrás da loja, hoje chegam modelos de toda a Europa e também feitos em Portugal. Tal como as luvas da Rua do Carmo, também esta casa viu o uso do seu produto estrela cair a pique. Ainda assim, o chapéu é sempre um acessório bem-vindo e aqui acompanham-se de perto as tendências.

Em tempos, foi a chapelaria real. Hoje, são os turistas que entram e ficam encantados com as vitrines em madeira onde se guardam os chapéus © João Porfírio/Observador

Conserveira de Lisboa

Rua dos Bacalhoeiros, 34

Em poucos sítios se percebe tanto de conservas como aqui. A Conserveira de Lisboa abriu em 1930, mas só anos depois se tornou numa loja especializada. No interior, respira-se história, das prateleiras e do balcão de madeira ao chão em calçada portuguesa. Os rótulos e invólucros contam outra história, a de uma modernização bem conseguida. Tiago Ferreira, neto do fundador, é a cara desta nova fase, fase em que a loja histórica abriu um segundo espaço no Mercado da Ribeira e em que os arquivos de rótulos e cartonagens foram vasculhados de uma ponta à outra para que comprar uma lata destas seja também uma viagem no tempo. O segredo é nunca parar. Ainda este ano, a conserveira lançou as petiscadas, preparados à base de peixe e especiarias prontos a servir na tábua. Através de colaborações com artistas e designers, este negócio de família também provou que uma lata de conserva pode ser uma peça de coleção. Depois de 14 músicos portugueses terem redesenhados 14 latas em 2013, a Conserveira de Lisboa já trabalhou com jovens ilustradores.

Além dos ingredientes e das receitas, são as embalagens, feitas na casa, que tornam estas conservas especiais © João Porfírio/Observador

Casa Pereira da Conceição

Rua Augusta, 102

Independentemente do desfecho da visita, entrar nesta loja já é por si uma experiência, a começar pelo olfato. Os cafés e os chás são uma especialidade da casa desde o primeiro dia. Aberta desde 1933, a Casa Pereira da Conceição mantém uma seleção de cafés puros de Angola, Timor, Brasil, São Tomé e Colômbia e ainda um extenso rol de misturas, um paraíso para os verdadeiros apreciados de cafeína. Ao fundo da loja, os chás perfumam o ar mal se abrem as gavetas. São cerca de 20 e foram feitas para este propósito. Entre outubro e abril, as vendas ao quilo ganham um terceiro ingrediente, o chocolate. A maioria dos bombons é belga, mas há vestígios daquela que é a mais antiga chocolateira portuguesa ainda em funcionamento, a Avianense, fundada em 1914. Há clientes de há anos, mas também turistas encantados com os ornamentos em madeira que cobrem o interior da loja. Fora do campeonato da gula, a Casa Pereira da Conceição tornou-se conhecida também pelos leques. Vêm de Espanha e alguns são pintados à mão.

Avulso ou a peso, há quem venha à Casa Pereira da Conceição só para comprar as três especialidades: chocolates, chás e cafés © João Porfírio/Observador

Sapataria do Carmo

Largo do Carmo, 26

Ela está lá desde 1904, mas os atuais proprietários, sangue novo, chegaram há cinco anos. Desde então que entram sobretudo os turistas, mas os quatro sócios dizem que a quantidade de clientes portugueses está a aumentar. Escusado será dizer que os sapatos que aqui se vendem são todos portugueses. Atualmente, os empresários esforçam-se para que cada vez mais calçado seja produzido com peles nacionais (apenas 10% da pele é portuguesa). Os sapatos feitos por medida ou com ligeiras alterações já fidelizaram dezenas de clientes, dentro e fora do país. Um dos lemas da casa é nunca dizer não, mesmo que isso implique mandar fazer dois sapatos de tamanhos diferentes, o que já aconteceu.

Os sofás e estantes são do início do século XX, os novos proprietários só lhes deram uma nova vida © João Porfírio/Observador