Reconheço-o: sou um bicho raro. Quem me vê por fora, possante e entroncado, sem me conhecer por dentro, acha que fui feito para a dureza do campo, para um constante sobe e desce de carga atestada entre terrenos férteis e matagal cerrado. Quem me vê por fora, descontraído – sorridente, diria até –, sem me conhecer por dentro, acha que nasci para fazer curvas e desfazer contracurvas rumo a um destino inóspito, de prancha em riste ou de tenda às costas.

Não me interpretem mal: sabe-me bem o ar puro e vou até onde for preciso pela onda perfeita. Mas quem me vê por fora conhecendo-me por dentro sabe que onde me sinto mesmo em casa é na cidade. Troco sem pensar duas vezes uma planície verdejante por um cruzamento engarrafado, o canto das cigarras pelo das buzinas descompassadas, o bucolismo do meio rural pela agitação da vida urbana.

Sou assim desde que nasci, peça a peça em Portugal, e desde que me conheço, no mundo inteiro. Prefiro subir calçadas a subir montanhas, olhar para as luzes a olhar para as estrelas. A rotina não me assusta, desafia-me. Os movimentos pendulares são o pulsar da minha engrenagem, a combustão que me faz mexer. Casa – trabalho – casa? Nada disso. Casa – escola – trabalho – restaurante – trabalho – loja – bar – restaurante – casa. Baralha, reparte e volta a dar. Os destinos podem repetir-se, mas as viagens nunca se repetem.

As cidades também nunca se repetem: não têm dois dias iguais. E é por isso que são apaixonantes. Pelas multidões que chegam e partem, que enchem esplanadas e miradouros, avenidas e transportes públicos. Pelas fachadas bem cuidadas, pelos néons que anunciam bares e restaurantes, pelas lojas antigas e as contemporâneas, pelos museus, teatros, monumentos e, sobretudo, pelas histórias que se contam em cada um deles. Porque são essas as histórias que fazem a história das próprias cidades. Também eu quero ser personagem, também eu quero ser cidadão. Um veículo-cidadão. Sem cartão, mas com carta. Branca e de condução.

Ass: T-Roc

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