A Polícia Judiciária fez buscas nas instalações da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) há cerca de um ano, no âmbito de uma queixa entregue no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa por suspeitas de “apropriação de valores” do ex-bastonário, Domingues de Azevedo, e do atual presidente da Assembleia Geral, o eurodeputado socialista Manuel dos Santos. Em causa está uma alegada ilegalidade no pagamento de certas remunerações a estes responsáveis e a acumulação de salários com pensões ou subvenções vitalícias de políticos, pagas a ex-titulares de cargos públicos e que o Governo de Pedro Passos Coelho impediu, ainda em 2014.

A denúncia entrou no DIAP em maio do ano passado, assinada por Vítor Martins, um contabilista inscrito naquela ordem e apoiante da lista A — encabeçada por Paula Franco –, uma das quatro listas concorrentes nas eleições para a OCC que decorrem no dia 20 de dezembro. No documento, aquele profissional sustenta que, “no exercício e âmbito das funções exercidas” por aqueles dois responsáveis “existiu uma apropriação de valores para os quais não se entende justificativo legal”. Ouvido pelo Ministério Público, Vítor Martins faria ainda referência a eventuais ilegalidades no que respeita à acumulação dos salários na Ordem com as subvenções vitalícias de Domingues de Azevedo e de Manuel dos Santos – ex-deputados à Assembleia da República eleitos pelas listas do PS. Em causa estaria, assim, a falta de base legal para o pagamento de compensações a responsáveis da Ordem e a acumulação ilegal de rendimentos.

Meses depois de o contabilista formalizar a denúncia, a bastonária Filomena Moreira — que sucedeu a Domingues de Azevedo na liderança da Ordem quando este morreu, em setembro do ano passado –, deixava no ar a mesma suspeita: a própria dirigente enviou à Caixa Geral de Aposentações uma lista exaustiva dos membros remunerados pela Ordem. Essa decisão da bastonária levaria a uma cisão entre responsáveis da Ordem e à criação de duas das listas que se apresentam a votos nas eleições agendadas para a próxima quarta-feira.

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Ao Observador, a Procuradoria-geral da República confirma a existência do inquérito, instaurado em agosto do ano passado. O processo “encontra-se em investigação e sem arguidos constituídos”.

Os valores pagos a antigos e atuais responsáveis da Ordem dos Contabilistas estão a gerar controvérsia com a aproximação das eleições do sucessor de Filomena Moreira. Todos os órgãos sociais da Ordem têm direito a um salário — uma situação a que todas as candidaturas querem pôr um ponto final –, havendo casos, como o de Rui Rio, candidato à liderança do PSD, que recebe 21 mil euros brutos por ano como vice-presidente da Assembleia Geral da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) para, na prática, ter estado presente na condução de três reuniões do órgão alargado da ordem em 2016 e outras duas já este ano.

Responsáveis tinham de devolver compensações

O Observador sabe que os inspetores da Polícia Judiciária estiveram nas instalações da Ordem dos Contabilistas em novembro do ano passado. Pediram para que lhes fossem entregues documentos comprovativos de pagamentos a funcionários da Ordem e as tabelas salariais de todos os ex-funcionários públicos que desempenhassem funções remuneradas na instituição. Também terão pedido documentos que dessem cobertura legal ao pagamento de uma parcela compensatória a Domingues de Azevedo e Manuel dos Santos pelos rendimentos que deixaram de poder receber em 2014, em virtude de uma medida do Governo de Pedro Passos Coelho que impedia a acumulação de pensões e subvenções vitalícias do Estado com outros vencimentos.

O eurodeputado Manuel dos Santos esteve recentemente envolvido em polémica: chamou “cigana” a uma camarada socialista e António Costa ameaçou-o com a expulsão. SAMUEL KUBANI/AFP/Getty Images)

A denúncia que deu origem às buscas, e a que o Observador teve acesso, refere que “no dia 05.04.2016, foi solicitado, através de carta dirigida ao Sr. Bastonário e ao Conselho Diretivo, a entrega de suporte documental no qual se justificasse a referida despesa mensal intitulada ‘reposição de valor perdido’” para, “desta forma, poder verificar-se a legalidade da referida despesa e motivo justificativo da mesma”. Mas esse pedido nunca terá tido resposta, segundo Vítor Martins.

O mesmo documento acusa os dois responsáveis, Domingues de Azevedo e Manuel dos Santos, de terem beneficiado de despesas aprovadas pela Ordem “que [reverteram] a favor destes sem para tanto demonstrarem o seu enquadramento legal”. Casos que, a confirmarem-se, podem configurar a prática do crime de “peculato”, afirma o autor da denúncia. Domingues de Azevedo, concretiza a denúncia, terá recebido 14 mil euros brutos por mês — além de um salário de 10 mil euros brutos, recebia pouco mais de quatro mil euros mensais por “reposição de valores perdidos”.

No caso de Manuel dos Santos, ao salário de dois mil euros acresciam três mil euros que compensavam a subvenção que tinha deixado de receber e que a Ordem dos Contabilistas aceitou passar a pagar-lhe. Portanto, um total de cinco mil euros mensais.

O impedimento de acumulação de salários com pensões, decidido pelo Governo PSD/CDS, foi anulado no início de 2015 pelo Tribunal Constitucional. Em setembro do ano passado, o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social garantia ao Público que os valores tinham voltado a ser pagos, com direito a retroativos. Numa resposta a Vítor Martins, com data de 23 de março de 2016, o serviço de contabilidade da Ordem refere que a atribuição das compensações aos dois responsáveis “estava condicionada a uma decisão que poderia vir a ser ressarcida pelo Estado” e que, nessas circunstâncias “também os titulares que viram os seus rendimentos aumentados por esse efeito estão obrigados a devolver aqueles valores à instituição, logo e se os receberem” dando-se por terminado o pagamento dessa verba extra.

Ao Observador, fonte ligada ao processo refere que Manuel dos Santos já terá sido ouvido pelo Ministério Público no âmbito deste processo. Mas, contactado pelo Observador, o eurodeputado recusou prestar mais esclarecimentos, alegando que até à realização das eleições na Ordem dos Contabilistas Certificados não falará. O Observador também questionou a própria Ordem sobre a forma como foi aprovado o pagamento de parcelas extra salariais ao ex-bastonário e ao presidente da Assembleia Geral e quais os intervenientes nesse processo, mas não obteve resposta até à hora de publicação deste artigo.

Rui Rio recusa mais esclarecimentos e diz que não eram só três reuniões anuais

Na sequências das novas informações que recolheu, o Observador voltou a contactar Rui Rio, mas o vice-presidente da assembleia geral da Ordem dos Contabilistas não quis dar mais esclarecimentos. “Nas respostas que deu ontem ao Observador, o Dr. Rui Rio esclareceu as questões da OCC que, a ele, possam dizer diretamente respeito. Não há, pois, mais nada a acrescentar“, afirmou fonte oficial da candidatura, por escrito.

O ex-autarca apenas quis esclarecer um aspeto da notícia em que era visado, para dizer que o cargo de presidente da assembleia geral “não implica apenas três reuniões anuais como, por lapso, é referido”. E explicou: “Para lá das assembleias gerais propriamente ditas, há as reuniões da própria mesa da assembleia geral, as reuniões com os outros órgãos sociais e as solicitações que o Bastonário Domingues Azevedo regularmente fazia”. Rui Rio recebe 21 mil euros brutos por ano e, no máximo, só tem três reuniões efetivas da assembleia geral por ano. Em 2017 foram apenas duas. Nas outras ordens profissionais, cargos similares ou não são remunerados ou não têm vencimento mensal que é o caso das grandes empresas. Na Galp e na EDP, uma função equivalente à de Rui Rio vale três mil euros anuais.

O Observador quis saber se o candidato à liderança do PSD tinha conhecimento da queixa no DIAP e das buscas da PJ e se foi na sequência da investigação que foi informado da chamada “reposição de valores perdidos”, que Rio diz apenas ter conhecido após a morte do bastonário. O ainda vice-presidente da assembleia geral da ordem também não quis explicar se sabia qual a forma legal e estatutária de como foi definida a sua remuneração e a dos outros membros dos corpos sociais. Na resposta de ontem ao Observador, o social-democrata disse que foi “quem de direito”, sem dizer quais foram os órgãos — uma vez que a maneira como foram decididas as remunerações é um dos aspetos que está a ser investigado.

Rui Rio também não quis responder à pergunta sobre se chegou a tomar alguma posição interna quando soube da existência de compensações para o bastonário e para Manuel dos Santos, nem se alguma vez as remunerações foram discutidas em assembleia geral.