O esqueleto de ferro vermelho esconde uma caixa de música, um templo da Invicta, no coração da cidade, nas costas do Infante D. Henrique, que aponta para a Ribeira, como quem diz aos turistas “vocês vão para ali, que nós ficamos aqui em cima, a guardar este elixir de vida, que celebra vinte anos de existência”. O senhor Infante, a poucos passos de casa, provavelmente até aponta para o rio, ou melhor, para depois do Douro, onde estava o antigo Hard Club, entre pedras, em Vila Nova de Gaia. São duas casas e uma única história, com festa marcada de sexta-feira a domingo.

“Foi uma coisa extremamente desafiante”, garante Kalú ao Observador, baterista dos Xutos e Pontapés e herói nacional (sim, claro, herói nacional).

“Estava no Johnny Guitar em Lisboa com o Zé Pedro, em 1996, e conheci o Pedro Lopes, que fez surgir a ideia, ‘porque é que a malta do Porto tem que ir a Lisboa ver concertos?’.”

Se o saudoso Johnny em Santos tinha apenas lugar para 300 cabeludos, o novo espaço, em Vila Nova de Gaia, teria que receber no mínimo mil pessoas, para saciar a falta de concertos. “Estávamos a ver os AC/DC, no Estádio de Restelo, e fechámos o negócio, começámos a trabalhar no Hard Club, que abre logo no ano seguinte”.

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É um longo caminho para o topo, se queremos roquenrolar. A ética de trabalho imposta pelos AC/DC podia ter servido de inspiração para o novo estabelecimento, que inaugurou no dia 18 de Dezembro de 1997, com uma multiplicação de problemas iniciais. “Imensas dificuldades”, recorda Kalú: “Primeiro, porque era do outro lado de rio, e o pessoal do Porto tinha preguiça de ir a Gaia; depois, dificuldades com o estacionamento; e sem internet havia muitos problemas de comunicação”. Porém, com muita vontade o caminho nem foi tão longo, e num ano estava tudo afinadinho para tornar o Hard Club numa casa em que a música portuguesa gostava dela própria. “Apesar de tudo, em pouco tempo conseguimo-nos firmar no panorama musical”, recorda o baterista.

Rock in Rio Douro

“Eu já estava na minha vida de concertos, a tocar de um lado para o outro”, diz-nos o sempre solicitado Fred Ferreira, filho de Kalú e baterista dos Orelha Negra, “mas lembro-me do entusiasmo e dedicação do meu pai, ele é a pessoa que ainda hoje vai todas as semanas ao Porto, que tem um carinho e dedicação muito grande ao espaço”. Para Fred, tocar no Hard Club é um family affair, como diria Sly Stone, referência importante da soul, funk e, claro, dos Orelha Negra, que tocam este sábado na celebração de aniversário, às 21h. “Esta programação, juntamente com a exposição de fotografias que conta a história do lado de lá [Gaia], e a passagem e construção para cá [Porto], acaba por ser uma imagem muito realista daquilo que aconteceu nos últimos vinte anos”, assegura o programador da casa, Davide Lobão.

“Quando surgimos, quando aparecem os Xutos e Pontapés, tivemos a sorte ter o Rock Rendez-Vous”, exemplifica Kalú. “Podíamos sair da sala de ensaios e testar de alguma maneira ao vivo as músicas, pois só em cima do palco é que realmente se aprende”.

E no palco do Hard Club, superadas as dificuldades iniciais, criaram as condições para algo semelhante.

Numa sala para mil pessoas, instalada numa antiga tanoaria, paralela ao Douro, tocaram Ornatos Violeta, Blind Zero, Clã, Silence 4, entre tantos outros, colados à parede ancestral que ruiu finalmente no ano passado, pedregulhos com história que agora estão perdidos no rio. No primeiro dia do aniversário, esta sexta-feira, Manel Cruz volta ao palco onde tudo começou, recriado desde 2010 no Mercado Ferreira Borges, seguido dos O Bom, O Mau e o Azevedo e as tradicionais Rubber Sessions.

“O Manuel era das pessoas que frequentava a casa antiga e passou depois para este lado, assim como as Rubber Sessions, malta que até trabalhou lá”, explica o programador. “No fundo era um porto de abrigo, onde as bandas se sentiam confortáveis.” Em 2001, o Hard Club foi o palco da Capital Europeia da Cultura, e já com os Ornatos Violeta perto do fim, estava coroado o importante monumento, não só na música mas também na revitalização da zona. “Sempre apoiámos a música moderna portuguesa”, confirma Kalú, “e as bandas começaram a ter um sítio onde podiam tocar, algumas ficaram, outras desapareceram”.

“Em Gaia, o mais espetacular foi poder ter tocado com os Planet Hemp e os Yellow W Van, e depois ver e conhecer bandas como os Blind Zero e os Zen”, recorda Fred. “Até cheguei a ensaiar lá, quando os Zen acabaram, e fizemos a banda Hiena”.

No dia 17, último da programação especial, toca a banda punk Patrulha do Purgatório (15h), é exibido o documentário “Enterrado na Loucura: Punk em Portugal 78-88” e acontece uma espécie de conversa/conferência com os Zen, importante banda do rock alternativo portuense, que chega a gravar um álbum ao vivo no Hard Club, em 2000. “O Hard Club sempre nasceu de um pensamento punk”, reflete David, “no sentido de fazer algo completamente diferente”.

Em 2006, e para provar como esta casa foi fundamental para o punk e o heavy metal, os Moonspell decidem apresentar o álbum Memorial no Hard Club. Os lugares esgotaram rápido, afinal a banda exigiu que fossem precisamente 666 bilhetes à venda, número da besta. “Outro concerto memorável foi o dos Rammstein”, recorda Kalú, referindo-se à digressão “Sehnsucht Tour” de 97. “Foi um espetáculo completamente diferente, eles eram extremamente profissionais, muito simpáticos, e a casa estava ao barrote”. Nos primeiros anos receberam também os Machine Head com “uma algazarra enorme no camarim”, e um sonho tornado realidade para o baterista dos Xutos: a lenda dos blues britânicos, John Mayall.

“Anda, Tony!”

O gosto eclético, que agendava gente que ia dos The Parkinsons a Jorge Palma, torna-se na marca da casa, contando entre os eventos uma digníssima festa transe e um momento bonito entre pai e filho. “A primeira e última festa transe de que me lembro foi o meu pai que me convidou”, conta Fred. “Decoraram o espaço de forma muito particular, nunca mais me vou esquecer de ver aquilo tudo com cores”. A algazarra teve um único infeliz encontro com a realidade, ou seja, com a autoridade, quando “o Presidente da Câmara queria passar junto ao rio no Porsche mas não conseguiu, pois estava uma grande festa”, revela Kalú, sobre o período em que a casa esteve fechada durante quatro meses.

Sábado, dia 16, é o momento de celebrar o presente, pelas mãos firmes de Fred Ferreira e dos Orelha Negra, assim como Ermo e o Conjunto Corona. “Esta é uma casa de hip hop importante, não só no Porto mas a nível nacional, sempre aconteceram coisas inacreditáveis, também com Orelha Negra, demos no Hard Club alguns dos nossos melhores concertos”, garante Fred, a lembrar que não tocam no Porto desde o D’Bandada, no ano passado. “E claro que para mim é especial poder tocar num sitio que tem tanto amor ali, é uma coisa pessoal saber que tem muita dedicação do meu pai”.

Além da música portuguesa rock nos anos 90/2000, e do punk e heavy metal, o Hard Club é hoje um centro fundamental para a cena hip hop, com presenças habituais de nomes que vão de PZ a Sam The Kid, que assim como os Mind da Gap, Da Weasel e Dealema, chegaram a tocar no espaço original de Gaia. “Todo o movimento aqui no Porto foi por causa do Hard Club também”, concorda Kalú. “É a meca do hip hop em Portugal.” Surge a questão de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, a vontade de fazer hip hop naquela região ou um espaço que possibilitou que fosse apresentado ao vivo?

“Um artista lança um trabalho porque tem a necessidade de o fazer”, matuta Fred, “e depois é a cultura da cidade, do local, que permite ou não tocar, ou seja, é uma coisa que ajuda a outra”.

“A salinha pequena, para 500 pessoas, ainda é a minha favorita”, confessa Kalú, que já tocou nessa sala no seu projeto a solo e na principal com os Xutos. “É muito mais íntimo, com o pessoal a olhar a um metro de ti”. Hoje, o Hard Club faz-se dessas duas salas, do corredor para exposições e de um restaurante.

“Lembro-me de ter visto com o meu pai os Black Rebel Motorcycle Club”, diz Fred. “Foi um concerto muito especial para mim, porque tive um momento bom com ele, aquela coisa de pai para filho.” Emoções, abraços e passagem de testemunho, pois o rock também é lamechas, especialmente quando estamos entre família, sobre um rio que viu passar duas décadas de desventuras na estrada. “Apesar do nome Hard, não tem nada a ver”, diz em despedida Kalú. “Ainda há pouco tempo tivemos aqui os Anjos a tocar, se o Tony Carreira quiser, isto está aberto para todos, anda Tony!”. Vamos lá senhor Carreira, pode trazer o Mickael e cantar “Filho e Pai”, aquela que acaba assim:

“Nesse tempo que por nós passou
Aprendemos até muito mais
Nada pode mudar o amor
De filho e pai”

Veja aqui a programação completa para o aniversário do Hard Club