Estamos na recta final para a noite de consoada e portanto trato de atalhar caminho e pormenores. Em Junho de 1914 o nacionalista bósnio Gavrilo Princip abateu a tiro o arquiduque Franz Ferdinand (os dois primeiros álbuns são os melhores) e precipitou impérios para uma guerra mundial. A primeira digna desse nome. A partir daí, os índices do mortandade e de crueldade a que os exércitos foram sujeitos e a que sujeitaram os seus inimigos atingiram níveis inéditos, sobretudo no teatro de guerra europeu.

As potências em conflito mobilizaram meios para uma guerra total, instigaram o ódio entre povos, fizeram dos seus soldados verdadeira carne para canhão na luta por mais um metro de terreno. Para uma boa síntese do absurdo levado a cabo neste conflito aconselha-se o visionamento da quarta temporada da série britânica Black Adder. Está lá tudo, incluindo receitas de rat au vin.

E no entanto, no primeiro ano de conflito, aconteceu algo de extraordinário. No Natal de 1914, aquilo que começou como um acender de velas nas trincheiras, dando nota da época festiva, transformou-se num momento insólito em teatro de guerra. Em várias zonas da frente, e com especial significado na região belga de Saint-Yves, soldados britânicos, alemães e franceses abandonaram as posições e deslocaram-se até à tristemente famosa Terra de Ninguém onde milhares de vidas foram ceifadas. Só que desta vez fizeram-no para distribuir cumprimentos, para conversar.

Trocaram prisioneiros e rações, enterrarem mortos com a decência que a violência não tinha permitido, ofereceram cigarros. E fizeram peladinhas de futebol, num clarão de boa vontade que rapidamente se apagaria — no ano seguinte os altos-comandos proibiram as confraternizações e recomendaram bombardeamentos de artilharia nesta data — mas que deixaria imagens notáveis para a posteridade. Boches e tommies acendendo cigarros uns dos outros. Tropa macaca fardada (mais ou menos a rigor) a disputar um lance áereo de futebol. Soldados fustigados pela metralha cantando Christmas Carols. E bola, muita bola.

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À época, o cartoonista, ilustrador e capitão de infantaria Bruce Barinsfather, ao serviço do exército de Sua Majestade britânica, anotou no seu diário uma série de momentos extraordinários inspirados pela trégua natalícia. Nomeadamente, a oportunidade de posar para uma câmara fotográfica alemã na companhia de outros camaradas ou o momento em que um dos seus operadores de metralhadora (e cabeleireiro amador) aparou o cabelo à tesoura a um soldado alemão ajoelhado no chão. Momentos que as lideranças dos países em conflito haveriam de deplorar, insistindo antes numa matança que só terminaria muito depois, em Novembro de 1918, e sem que houvesse mais jogos amigáveis ou tentos de honra. Aliás, a humilhação dos derrotados haveria de afundar a Europa de forma ainda mais grave, mas é como dizia lá atrás, a consoada está aí à porta e é preciso atalhar texto e caminho.

O Natal e o futebol são duas manifestações populares dominantes que naturalmente geram alguma acidez, por boas e más razões. Pela ausência de memórias gratas, por reacção ao totalitarismo temático e mediático ou simplesmente falta de interesse. Acontece que, a espaços, estas duas manifestações podem ser sinónimo sincero de harmonia colectiva, de inspiração, de partilha.

Numa era em que o cinismo impera, aliado às críticas naturais ao consumismo e à compaixão de circunstância (já para não falar da violência das claques ou da opacidade dos negócios do ludopédio), os soldados da Tríplice Entente e dos Impérios Centrais regressam nesta época na pele de fantasmas do Natal passado, com um óptimo exemplo de inspiração e esperança. Calaram-se as armas, pontapeou-se uma bola, comeram-se as azevias lá do sítio (provavelmente sabiam a carne enlatada). Em suma, feliz trincheira de neura para todos.

Pedro Vieira é guionista, apresentador de televisão e ilustrador relutante