Na mais recente série de Seth MacFarlane, “The Orville”, comédia/drama inspirada no universo de “Star Trek”, há um episódio (“Majority Rule”) em que a tripulação aterra num planeta semelhante à Terra, que evoluiu para um entendimento da democracia em que toda a gente é avaliada a qualquer momento num processo de pontos positivos e negativos, uma espécie de “gosto” e “não gosto”, e quando atingem um certo número de pontos negativos são julgados em praça pública, com direito a transmissão na TV em direto. Se não conseguem convencer a audiência que são boas pessoas, são incriminados de má conduta social e sujeitos a uma lobotomia.
Instala-se a ideia de controlo social, de higienização moral e de uma revisitação de “1984” a partir da existência das redes sociais e da ideia de que todos os cidadãos devem participar no julgamento de atos de outros, individuais ou colectivos. O episódio inspira-se em “Black Mirror” para criticar a sociedade do presente. Aliás, a série criada por Charlie Brooker é uma inspiração constante em “The Orville”, há episódios que são decalcadíssimos de “Black Mirror”: “Majority Rule” é uma versão light de “Nosedive” (o primeiro da terceira temporada).
Curiosamente, há um episódio de “Black Mirror” na quarta temporada (a nova coleção de episódios que chega à Netflix a 29 de dezembro), “USS Callister”, em que um jogo permite viver numa simulação inspirada no universo de “Star Trek”. O comum mortal tem finalmente a oportunidade de explorar o espaço e viver aventuras como aquelas que viu ou leu na ficção científica e ser o herói dessa história ou uma personagem secundária, um parafuso naquele universo. É o transporte da vida real para a virtual, mas ali o trabalho não se sente como trabalho, porque é só um jogo, uma simulação. É isso que já acontece em alguns videojogos, sobretudo nos MMORPG (Massively Multiplayer Online Role-Playing Game) e que está bem fundamentado num livro de Steven Johnson, “Everything Bad Is Good For You”: chega-se a casa, depois de dar no duro, e operam-se tarefas aborrecidíssimas e repetitivas nos videojogos, algumas mais desgastantes e limítrofes do que as que se efetuam no trabalho.
[o trailer da nova temporada:]
https://www.youtube.com/watch?v=5ELQ6u_5YYM
“Black Mirror” desmonta os pormenores atrofiantes e alienantes da tecnologia. Para facilitar e porque se está em época de “Guerra das Estrelas”, pode-se chamar de “lado negro”. Uma das razões para ser fácil gostar tanto de “Black Mirror”, e da criação de Charlie Brooker ser uma obra-prima contemporânea, é a tangibilidade com o presente. Os gadgets, as apps, podem ser inventados – embora alguns já estejam próximo da realidade –, mas sente-se que ao existirem, situações como as retratadas nos episódios não demorariam a acontecer. Um mundo com acesso a todas as invenções idealizadas para “Black Mirror” será um terror. E as pessoas que viverão nele sistematizarão a felicidade e serão imortais (num mundo virtual, para onde a consciência será transportada), quer queiram quer não.
A culpa disso, do terror, do “lado negro”, não será um problema da tecnologia. O espelho negro (os telemóveis, computadores, tablets, qualquer coisa com um ecrã) assume-se como um ativador dos desejos mais antigos dos humanos e, também, dos seus comportamentos mais reprováveis e isoladores. Convém lembrar que o primeiro episódio de “Black Mirror”, “The National Anthem”, é sobre a alienação causada pela desgraça, a queda dos que estão lá em cima, como forma de entretenimento. O detalhe do primeiro-ministro inglês ter relações sexuais com uma porca para cumprir a exigência do raptor da princesa é uma distração para o que se vê acontecer nos momentos finais. A princesa é libertada antes da transmissão acontecer, mas ninguém a vê nas ruas, porque está tudo distraído em frente a uma televisão a ver um homem a degradar-se. E a imagem dela a caminhar, desamparada, nas ruas desertas de Londres ainda é um dos momentos mais fortes de “Black Mirror”.
“Black Mirror” somos nós. Tal como éramos nós, noutras décadas, nos livros de Philip K. Dick sobre a Guerra Fria, o confronto com a inovação, as drogas, a alienação como forma última de sobreviver à doença, física e mental (“mental illness isn’t funny”, escreve K. Dick em “Valis”), o vácuo da mortalidade. Desde o escritor norte-americano que ninguém fazia ficção-científica tão alarmante e justificada de uma forma sistematizada como Charlie Brooker. E ele, tal como K. Dick, sabe parodiar os limites da sua criação: que para sobreviver, para ser possível construir à volta disto, “Black Mirror” tem que se alimentar de si mesmo.
A quarta temporada de “Black Mirror” faz algo que já havia acontecido em dois episódios da segunda temporada: homenagear-se. “Black Mirror” a gostar dela própria (tem todas as razões para isso), reconhecendo que a proximidade com certas criações que já aconteceram no universo faz parte da mensagem geral da série: os episódios podem ser independentes mas o nó no estômago é constante. Todos os episódios de “Black Mirror” são uma forma diferente de contar a mesma coisa, nesta quarta temporada isso acontece ao ponto do exagero. Mas atenção: o efeito déjà vu aqui é um estimulante.
[o trailer do episódio Arkangel:]
Charlie Brooker não traiu os seus espectadores, os seus fãs. Está a dar-lhes o que eles querem, só que eles só sabem isso depois de todos os episódios desta quarta temporada terem passado no pequeno grande espelho negro. Os episódios são independentes mas é importantíssimo vê-los pela ordem que têm. Isso sempre foi regra, só que os diversos estilos – de argumento e de cinematografia – utilizados ao longo destes novos capítulos estão a dizer algo por uma determinada sequência. A repetição que se sente nos primeiros (“Arkangel”, “USS Callister”, “Crocodile” e “Hang The DJ”) é importante para a catarse e a alucinação de “Metalhead” e tudo isto é essencial para o melhor episódio onanista de “Black Mirror”: “Black Museum”.
“Black Museum” é um doce para quem fez esta viagem até ao fim. Uma visita guiada a um museu que expõe alguma da tecnologia que se vê em episódios anteriores da série. Há uma boa dose de êxtase em perceber como Charlie Brooker expõe o beco em que “Black Mirror” se enfiou, que ele próprio criou, e o desenlaça sem medos ao longo destes seis episódios: esfregando na cara tudo isso com este “Black Museum”. É a forma de Brooker reconhecer a herança de Philip K. Dick.
Em “Black Mirror” não há o clima da Guerra Fria para alimentar o medo, mas há o medo de existir no presente e reconhecer o abismo da tecnologia para a humanidade como é entendida aqui e agora. É a tal humanidade que deixa de existir quando não se vê o reflexo num espelho negro. É esse abismo que suga, que leva o espectador para armadilha, qual presa de um predador. O monólito negro de “2001: Odisseia no Espaço” deixou de ser uma razão para se partir em direção ao espaço à descoberta; para Charlie Brooker é um Santo Graal invertido que está nas mãos de todos nós.