Aaron Sorkin é um argumentista com um fraquinho por personagens tiradas à vida real, que furam o sistema e instalam uma nova ordem: o congressista Charlie Wilson em “Jogos de Poder”, Mark Zuckerberg em “A Rede Social”, o “manager” de basebol Billy Beane em “Moneyball — Jogada de Risco”, Steve Jobs no filme homónimo. Na sua primeira fita a realizar, “Jogo da Alta Roda”, Sorkin segue este padrão, mas desta vez tem uma mulher como heroína. Ela é Molly Bloom (Jessica Chastain), uma ex-esquiadora olímpica e estudante brilhante, que aos 26 anos se tornou na “princesa do póquer” dos EUA, organizando, numa “terra de ninguém” legal, jogos particulares em Los Angeles e depois em Nova Iorque. Com paradas altíssimas e frequentados por milionários, empresários abastados, vedetas do desporto, músicos, realeza saudita e actores como Leonardo DiCaprio, Ben Affleck ou Tobey Maguire.

[Veja o “trailer” de “Jogo da Alta-Roda”]

Baseado no livro da própria Molly Bloom, “Jogo da Alta Roda”, é em simultâneo o retrato de uma mulher inteligente, ambiciosa, tenaz e híper-competitiva, que após ter abandonado o sonho de ser campeã olímpica de esqui devido a um acidente numa prova, decidiu impôr-se num nicho de actividade muito específico e exclusivo, totalmente masculino e perigosamente contíguo com o crime organizado; e uma história caracteristicamente americana de ambição, ganância e sucesso. Uma história que, no caso de Molly, acabou por azedar, já que foi presa pelo FBI porque havia membros da máfia russa que participavam nos jogos – alegadamente, sem o conhecimento dela –, viu o seu dinheiro ser todo apreendido, e tornou-se parte acusada numa grande investigação federal ao submundo novaiorquino.

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[Veja a entrevista com Aaron Sorkin e Jessica Chastain]

Tal como Aaron Sorkin aqui a caracteriza, Molly Bloom é, chapadinha, uma daquelas figuras femininas desembaraçadas, afirmativas e ambiciosas das velhas comédias “screwball” dos anos 30 e 40, determinadas a pedir meças aos homens no seu próprio terreno, a mostrar que conseguem ser tão boas ou melhores do que eles, e a conquistarem uma posição cimeira num sistema social ou profissional que eles controlam e onde menina não entra, como no clube do Bolinha. Com a diferença de que em “Jogo da Alta Roda” não estamos num mundo de ficção, mas sim na realidade bruta, feia e injusta, bem personificada pelo primeiro patrão de Molly, o dono do Viper Room de Los Angeles, onde ela teve a sua iniciação aos jogos de póquer para os muito ricos e famosos.

[Veja a entrevista com Idris Elba]

O filme recria a ascensão e queda de Molly, dos dias de fama e poder em que tentava escrupulosamente não infringir nenhuma lei nos jogos de póquer onde se podiam ganhar ou perder milhões de dólares, até á queda em desgraça, quando, sem cheta nem amigos, contratou um advogado, Charley Jaffey (Idris Elba) para a safar da prisão. Sorkin está abertamente do lado da sua protagonista e frisa que apesar dos passos em falso e das provas de ingenuidade que deu, Molly mostrou carácter e ética, ao nunca divulgar aos media, no livro ou àqueles que a investigavam, para ganhar dinheiro ou como moeda de troca, o que sabia sobre as vidas particulares dos jogadores, que muitas vezes faziam dela confidente ou confessora. (Uma das personagens da fita, o Jogador X, interpretada por Michael Cera, é um compósito das estrelas de cinema “habitués” das jogatanas de Molly, embora se diga que muito baseada em Tobey Maguire. A ser verdade, o intérprete do Homem-Aranha não sai nada bem na fotografia).

[Veja a entrevista de Ellen DeGeneres com a verdadeira Molly Bloom]

Aaron Sorkin é um dos mais dotados, ginasticados e coloquiais dialoguistas de Hollywood. Provou-o sobejamente nos filmes antes citados e em séries, caso de “Os Homens do Presidente” ou “The Newsroom”. E volta a fazer gáudio desse talento em “Jogo da Alta Roda”, um filme dominado pelo diálogo, conduzido pela conversa, que tem o verbo como combustível, em que as personagens competem pela medalha de ouro da esgrima verbal. De tal forma, que apesar de Sorkin a doptar um modo de contar reminiscente dos mais febris filmes de Martin Scorsese, com uma narradora omnisciente e muita jiga-joga temporal, o cinema é demasiado serviçal do falatório. E não poucas vezes, ao invés de mostrar por imagens, o realizador conta através das palavras, estralejantes, efervescentes, torrenciais, tornando “Jogo da Alta Roda” muito “explicado”, a rondar a rádio filmada.

[Veja uma sequência do filme]

Quem chama um figo a essa dinâmica superabundância do verbo são os actores, principalmente Jessica Chastain. Ela conquista-nos para a sua Molly Bloom, puxando pela simpatia, pela garra e pela credibilidade da personagem, muito mais vítima das circunstâncias, de um excesso de confiança e de escolhas erradas, do que uma prevaricadora calculista e oportunista. Mesmo apesar das suas falhas e defeitos, mesmo quando a narração vai longe demais e lhe tira o pão da boca, e mesmo apesar de Chastain ser uma daquelas actrizes que põem alguma distância entre elas e nós e com a qual a câmara não tem necessariamente um romance imediato. Em “Jogo da Alta Roda” a parada é muito alta, mas ela não faz “bluff” e põe o jogo todo na mesa.