Ou não sabemos ou esquecemos: essa grande história de amor bissexual e pan-erótica da literatura portuguesa, escrita em 1964 e publicada em 1966, ali mesmo nas barbas da censura e dos outros vigilantes da moral pública que não deram por nada, O Físico Prodigioso de Jorge de Sena. Uma pequena novela, integrada no livro de contos Novas Andanças do Demónio (Portugália editores), situada numa incerta idade média onde um físico e cavaleiro, uma donzela poderosa e um demónio fascinado pela beleza se envolvem em amores trágicos mas redentores.
Em junho deste 2018 passam 40 anos sobre a morte do poeta, romancista, ensaísta, tradutor, monstro absoluto da literatura portuguesa do século XX, pensador polémico, exímio praticante de ataques à pátria, à língua, à política e à cultura portuguesas e a muitos dos seus pares. Dele poderíamos dizer o que Elias Canetti disse de Karl Krauss, “quando a sua época levantou o dedo contra si própria, ele foi esse dedo”. Falha apenas Portugal por ainda não ter feito esse exercício de auto-crítica que dê a Sena o reconhecimento que ele merece. O editor da Guerra &Paz, Manuel S. Fonseca, dá o mote e, fazendo justiça ao carisma provocador de Sena, lançou em dezembro (mesmo a tempo da quadra natalícia), a novela erótica O Físico Prodigioso, numa edição de luxo e com ilustrações de Mariana Viana.
Em 1964, ano da publicação original, nem todos souberam ler e decifrar (porque também foi para isso que o autor trabalhou) a abundante simbologia erótica de que é feita esta história sobre a qual, poderíamos dizer, com o poeta Rainer Maria Rilke, todo o belo é o começo do terrível, pois quase o mesmo disse, sobre ela, outro poeta E.M. Melo e Castro: “É belíssima, tenebrosa”.
Foi aliás, graças a Melo e Castro que o conto (Sena gostava de lhe chamar “novela”) saiu da obscuridade a que estava remetida toda a obra do autor e, em 1974, inclui o O Físico Prodigioso na Antologia do Conto Fantástico Português, dando, pela primeira vez, a esta história destaque de “obra-prima”. Considerando também esta uma obra singular, pelo seu experimentalismo formal, mas sobretudo pela forma como aborda diretamente as várias formas de sexualidade, o poeta e ensaísta e amigo de Jorge de Sena, quando questionado pelo Observador sobre a atualidade deste texto, afirmou:
Quanto a mim, a questão do transgénero, atualmente na moda, que leva a que uma mulher escolha ser homem ou um homem mulher (por achar que está no corpo errado) é ainda uma manifestação de uma conceção binária da sexualidade: ter de escolher ser macho ou fêmea. Na novela do Jorge Sena há algo mais complexo que a bissexualidade ou a transgenericidade: há coexistência, por vezes simultânea, em cada um de nós, de vários géneros, várias sexualidades”.
Jorge de Sena não precisou de ir à Islândia buscar inspiração para esta história. Bastou-lhe, como ele deixará escrito,”a sua biografia” e a leitura da obra quatrocentista Orto do Esposo, onde estão reunidos vários contos populares portugueses. E — ele não o diz, mas nós sabemos — de vários mitos gregos e latinos, esses que sabiam tudo antes de nós e, é claro, Camões e a sua Ilha do Amor, que é o primeiro manifesto moderno de uma sexualidade livre, mas também, como lembra Helder Macedo, um outro poema camoneano, Manda-me Amor que cante docemente, que foi o tema da tese de doutoramento de Sena.
Lançar livros eróticos na época natalícia não tem grande tradição no nosso país. Fazê-lo numa edição de luxo, com direito a capa dourada digna de um manto cardinalício, muito menos. Manuel Fonseca desdramatiza: “Nós, ocidentais, temos desenvolvido um gosto extraordinário pela auto-expiação e não nos dá jeito nenhum, para esse fim incriminatório, ver o que há de pan-erótico no cristianismo, a começar no processo que esse extraordinário Deus trinitário arranjou para seduzir – com voz de anjo – a Virgem Maria. Com o seu exército de anjos, arcanjos, serafins, santos e santas em êxtase místico, o cristianismo, e em particular o catolicismo, quase transbordam de ademanes eróticos, o que a profusão de talha dourada, mantos de seda e cheirinho de incenso só reforçam e excitam. Poderia lá existir este texto de Jorge de Sena, este ‘O Físico Prodigioso’ se não tivesse bebido nesse rio de água benta em que se banha o sagrado e o profano, o invisível Espírito Santo e o tão táctil demónio?”
Cada um com o seu contrário
Se Freud afirmava que todo o ser humano nasce bissexual, a mitologia grega, latina, indiana, as histórias populares arcaicas, as festas pré-cristãs como os rituais das Bacantes, o Carnaval, etc, não deixam de nos dar conta que a questão é ainda mais complexa que isso. Ou, como o expôs Camões, o problema é “cada um com o seu contrário num sujeito”. Ou seja, cada um de nós não é uma identidade estanque, imutável, mas somos um vórtice de contrários a viver neste corpo único que temos, quer seja um corpo masculino ou feminino. E ao contrário de muita literatura sobre as questões sexuais, nomeadamente a homossexualidade ou a bissexualidade, no Físico Prodigioso a ambiguidade sexual é vivida não com nostalgia de uma perfeição perdida, mas como prazer. A fragmentação da identidade não é aqui geradora de nostalgia ou de derrocada da psique, mas como gozo e como caminho para uma identidade mais total.
Nesta diablerie, nesta narrativa de bruxaria, de pacto com o diabo, Sena recorre à forma típica da literatura medieval que era o romance de cavalaria (um cavaleiro, uma donzela, um impedimento amoroso, luta, desenlace), mas, num gesto de grande ousadia formal, junta-lhe cantigas de amigo, poemas, vozes do Consciente e do Inconsciente correndo em paralelo na página, descontinuidades espacio-temporais, modificação os símbolos associados ao feminino e ao masculino, ao bem e ao mal, a deus e ao diabo. Atribui às personagens características incomuns para a época, como a insaciabilidade sexual e o poder feminino, a beleza masculina como geradora de conflito (e não o contrário), o demónio que é invisível ( não Deus) e representa simultaneamente o Bem e o Mal… Desde logo, o uso no título da palavra “físico” que tanto era o nome que se dava aos médicos e curandeiros na idade média, como para designar o corpo.
Para dar a ver um mundo às avessas, mas também uma liberdade radical, e uma sátira ao poder da igreja, Sena usa um vocabulário cheio de palavras desusadas, outras que logo associamos aos textos da idade média. A sua linguagem visa, ela mesma, ser erotizante. Não basta ao autor a narrativa, ele procura também erotizar as palavras e as frases entretecendo-as como corpos em fusão apaixonada. Desde a descrição da paisagem à descrição dos corpos, tudo procura traduzir uma ligação sensorial e amorosa e é ela que diz, implicitamente, o que o autor não pode ou não quis dizer de forma mais explicita. Mas aí reside também o grande valor literário da obra: o seu carácter experimental, híbrido: “Pouco do que alguma vez escrevi é tão autobiográfico como esta a mais fantástica das minhas criações”, escreve Sena no texto introdutório deste livro.
Transexualidade ou o eterno retorno
Sem querer fazer revelações, até porque este conto ou novela tem um final demasiado complexo para ser transformado numa série da Netflix e é, em certa medida, irrepresentável, O Físico Prodigioso tem uma carga metafísica que se torna ainda mais densa no seu final filosófico, uma alegoria sobre a incompletude do ser humano só resolvida pela Natureza nos seus ciclos de renascimento e morte.
O físico, cavaleiro dono de bela figura e de longos cabelos loiros, tem, desde que se conhece, o diabo apaixonado por ele, fazendo-lhe a corte ou tentando possuir-lhe o corpo (e não a alma, como é prerrogativa dos diabos). Neste jogo amoroso, o Diabo dá ao cavaleiro poderes sobrenaturais e um gorro vermelho que lhe permite ficar invisível. Num passeio pelo bosque, três donzelas descobrem o jovem físico nu banhando-se no rio e logo se apoderam dele para um devaneio sexual contado como canção de romança, sonho ou lenda (não esquecer que aqui o grande demónio é mesmo Jorge de Sena a querer enfeitiçar os seus leitores).
As donzelas levam o físico ao castelo de D. Urraca, senhora moribunda daqueles domínios onde só habitam mulheres. Pedem-lhe que a salve, o que ele faz mergulhando-a numa tina onde verteu o seu próprio sangue (inversão dos símbolos, o sangue regenerador, normalmente é associado ao feminino como o sangue menstrual, aqui passa a masculino). É o homem que faz o sacrifício de sangue e não a mulher, como habitualmente acontece nos mitos. Mas o regresso à vida só é realmente feito depois do enlace sexual entre o físico e D.Urraca e o omnipresente mas invisível demónio (afinal um escravo da sua paixão pelo físico).
Quando o físico parte, as donzelas em fúria despedaçam e comem-lhe o cavalo, o físico descobre que elas têm por habito devorar sexualmente todos os homens que chegam ao castelo e cujos restos mortais jazem numa grande vala comum (aqui novamente a sexualidade feminina a ser investida de um poder muito superior à masculina e não o contrário). De novo o físico ressuscita aqueles mortos e tudo entra numa harmonia primaveril até o jovem que não envelhece nem pode ser maculado pelo tempo ou pela vida, começar a sentir falta de uma outra parte de si mesmo e se tornar finalmente amante assumido do demónio…
A segunda parte da novela ganha contornos mais tenebrosos pois o físico e D. Urraca são presos, julgados e mortos pela igreja. E só aqui aparece Deus, não como entidade do Bem mas como um mero nome que serve para ultrajar os homens. Do que foram seus corpos nascerá uma roseira de leite e sangue, depois uma multidão e por fim um novo tempo. Jorge de Sena escreveu este conto em 1964, 10 anos antes da revolução de Abril, e este Físico Prodigioso, mais do que uma novela erótica, é o retrato de uma humanidade prometeica e faustica, disposta a tudo para superar a natureza mas sem nunca o conseguir totalmente. Em última instância, é também um texto sobre a Liberdade (não como coisa política) mas como caos, desordem, magias fundamentais ao ato de criação e ao ato de leitura.