Nasceu Isabelle, mas um produtor musical acabaria por rebatizá-la France, como o seu país. Nascida em 1947, em Paris, France Gall cresceu numa família de artistas, onde a música dominava. O seu avô materno, Paul Berthier, foi um dos fundadores dos Petits Chanteurs à la Croix de Bois, um conhecido coro de rapazes em França. O seu pai, Robert Gall, compôs músicas para grandes cantores franceses como “Les Amants Merveilleux” para Édith Piaf e “La Mamma” para Charles Aznavour. Aos cinco anos, assegura o jornal Le Figaro, a filha France já sabia tocar piano; aos 11, já pegava na guitarra.

Em 1964, no pico dos anos 60, France Gall tem o seu primeiro sucesso musical, com a difusão de “Sacré Charlemagne”, composta pelo seu pai. Foi nesse mesmo ano que conheceu o enfant terrible Serge Gainsbourg, à altura com 37 anos — France Gall tinha 17. “Eu era um marginal em 1964, a France Gall salvou-me a vida. Ainda mais em 1965, com a Eurovisão”, recordou o cantor e compositor mais tarde, segundo o Libération. Em 1965, Gall interpretou “Poupée de Cire, Poupée de Son”, canção composta por Gainsbourg, em representação do Luxemburgo e venceu o Festival da Eurovisão. A participação no concurso musical, contudo, revelou-se um tormento para a jovem. Na chegada a Itália, onde decorreu o Festival, os ensaios correram mal, conta a Europe 1. Gainsbourg ficou irritado.

Para além disso, os outros concorrentes parecem não gostar dela, mas o público tem outra opinião e Gall vence o concurso. A felicidade é sol de pouca dura: a jovem telefona para o namorado, Claude François, a fim de partilhar a boa notícia e é presenteada com a informação de que François quer acabar a relação. “Empurram-me de volta para o palco e eu estou lavada em lágrimas, mas não tem nada a ver com o facto de ter ganho”, recordaria mais tarde a própria artista. Desde aí, Gall torna-se um ícone: “O seu sorriso infantil e a sua doce voz representaram de 1960 a 1990 a doce emancipação das raparigas francesas do pós-guerra”, ilustra o Figaro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Após o Festival, a colaboração com Gainsbourg continua. A canção seguinte é “Les Sucettes” (“Os Chupa-chupas”), de letra sugestiva e imagens promocionais em biquíni. Gall admite mais tarde que na altura não entendeu o duplo sentido da letra. Mais tarde, assegura sentir-se “humilhada”, recusa-se a voltar a cantar a música e termina a colaboração com Gainsbourg.

De menina a mulher, um percurso marcada pela tragédia pessoal

O famoso Gainsbourg sentiu-se inspirado pelo ar de Lolita de France Gall, mas não foi o único homem a escrever canções para esta mulher. Claude François, o ex-namorado que terminou tudo pelo telefone em plena Eurovisão, escreveria também uma canção sobre a separação dos dois, intitulada “Comme d’Habitude”. O jornal The Guardian recorda que a letra fala num homem que regressa “só” à sua “cama vazia”, mas que é menos conhecida do que a sua versão inglesa: “My Way”, popularizada por Frank Sinatra em 1969.

Em 1968, “Bébé Requin” é um grande sucesso para Gall, mas a sua carreira estagna após esse período. Nos anos seguintes, volta a ter novo sobressalto na vida pessoal, após a separação de Julien Clerc, com quem viveu cinco anos. O Le Monde conta que também Clerc acaba por dedicar-lhe uma canção: “Souffrir par toi n’est pas Souffrir”, lançada em 1975.

O amor da sua vida, contudo, seria Michel Berger, que também ajuda a ressuscitar a sua carreira ao escrever “La Déclaration d’Amour”, single de Gall que se torna um sucesso em 1974. “Esta Declaração é uma revelação”, explica o Figaro. “A perversa ingénua dá lugar a uma intérprete inspirada pelo amor com A maiúsculo.” Gall e Berger iniciam uma relação, da qual resultariam dois filhos: Pauline, nascida em 1978, e Raphael, em 1981.

A carreira de Gall começa então a tomar um novo rumo, como explica o Libération: “As suas canções anti-racistas, ‘Mademoiselle Chang’ e ‘Chanson d’une Terrienne’, ou de resistência explícita (‘Résiste’) resgatam-na do solipsismo das histórias de amor de trapos.” Em 1987, o álbum “Babacar”, que inclui uma música de tributo a Ella Fitzgerald (“Ella, elle l’a”), é um sucesso.

Em 1992, Gall lança um álbum de duetos com o marido Berger, chamado “Double Jeu”. Mas é nesse mesmo ano que a tragédia atinge a vida da cantora: Berger morre de ataque cardíaco, depois de um jogo de ténis. Tinha apenas 44 anos. Cinco anos depois, é a vez da sua filha Pauline, que morre de fibrose cística . France abandona a música e passa a dedicar-se apenas a projetos humanitários, passando a viver em Dakar. Regressaria apenas em 2015, com um espetáculo com as músicas do seu marido.

Nesse mesmo ano, é-lhe diagnosticado um cancro — o segundo da sua vida, já que tinha ultrapassado a doença em 1993. Agora, em 2017, é uma infeção resultante da doença que acaba por lhe levar a vida. “Ela deixa para trás canções que todos conhecemos em França. E deu um exemplo de uma vida dedicada aos outros”, refletiu o Presidente francês, Emmanuel Macron.

A ministra da Cultura de França, Françoise Nyssen, descreveu-a como um ícone “que não pertencia a uma única geração: foi capaz de se dirigir a todas”.

No entanto, France Gall ficará para sempre associada ao movimento Yé-yé, que perdeu outra figura há pouco tempo: Johnny Hallyday, o “Elvis francês”, morreu em dezembro. Hallyday tinha sido responsável pelo penúltimo regresso de France aos palcos, antes do espetáculo de 2015, quando cantaram juntos “Something from Tennessee” no Olympia, no ano 2000. Menos de dois meses depois da partida de Hallyday, os franceses voltam a estar de luto por uma estrela da sua história musical.